O FNDC defende o conceito de rede pública e única e a garantia à população de acesso universal a uma oferta de vídeo, voz e dados. Historicamente, reivindica a realização de uma Conferência Nacional das Comunicações democrática e plural.
Os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens (rádio e televisão terrestres) são os meios de comunicação social de massa que mais se fazem presentes na vida da população brasileira. Seja pela abrangência de cobertura de suas redes físicas, pela facilidade de recepção de seus sinais, pela percepção de gratuidade do serviço ou pela facilidade com que seu conteúdo é percebido por cidadãos de todas as idades e classes sociais.
Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 91,4% dos mais de 53 milhões de lares do País possuem pelo menos um aparelho receptor de televisão e 88%, de rádio. Ao mesmo tempo, apenas 8% possuem assinatura de televisão a cabo ou por satélite e 14,4% têm acesso à rede mundial de computadores (internet), apesar de 18,6% possuírem computador. Estas estatísticas servem para mostrar que a introdução da tecnologia digital nos serviços de radiodifusão precisa ir muito além do simples avanço tecnológico da infra-estrutura de um serviço prestado em caráter público.
A implantação e o desenvolvimento do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) foi uma oportunidade única para não apenas melhorarmos a definição e dar maior robustez ao sinal que chega a milhões de domicílios. Foi uma brecha que permitiria incluir digitalmente a população por meio do acesso a uma gama inimaginável de serviços interativos e outras aplicações. Seria uma válvula de escape para um meio que até hoje mantém o cidadão como consumidor passivo de uma programação cuja produção é concentrada no eixo Rio-São Paulo e cuja distribuição é dominada por seis redes privadas comerciais.
Para cumprir seu papel sócio-cultural, observando as definições estabelecidas pela Constituição Federal, o SBTVD deveria ter sido planejado e implementado de modo a atender as seguintes demandas de conteúdo da população brasileira:
a) Entretenimento e Lazer – programação que proporcione condições para que os indivíduos tenham opções de divertimento e de ocupação em seus momentos não-produtivos, de acordo com seus interesses, concepções e valores;
b) Formação Cultural – programação que crie condições de acesso às fontes, presentes e passadas da cultura nacional e ao patrimônio cultural da humanidade;
c) Educação e Capacitação – programação que disponibilize, sistematicamente ou não, informação destinada a contribuir para que os indivíduos compreendam a realidade social e natural ou orientada que estes tenham acesso a conhecimento relevante para o desenvolvimento de capacidade para o exercício de funções determinadas ou para a aquisição de habilidades específicas.
d) Promoção da Cidadania – programação que disponibilize informação e interpretação sobre os mais variados aspectos da atualidade da vida social e dos negócios públicos, com estímulo à capacidade crítica, ao desenvolvimento da autonomia intelectual e ao exercício dos direitos e deveres inerentes à cidadania.
A convergência no Brasil deve ser planejada considerando-se o contexto das diversas plataformas tecnológicas de comunicação social – que envolvem distintas possibilidades e limites para o acesso dos cidadãos ao conteúdo digital e recursos de interatividade – e visando a otimização de suas decorrentes possibilidades econômicas, políticas e culturais. Seu planejamento deverá especificar as definições e implementações do processo de digitalização que deverão ser adotadas conjuntamente pelas diversas plataformas de comunicação social, notadamente as de radiodifusão sonora e as três modalidades de TV por assinatura – TV a Cabo, MMDS e DTH.
A especificação dos recursos de interatividade a serem proporcionados precisa ser definida a partir da identificação do conjunto das possibilidades de acesso, pelos diversos estratos da população, às facilidades já disponibilizadas ou disponibilizáveis, em bases econômicas, pelas plataformas existentes de comunicação social, de telefonia fixa e móvel e de outras modalidades de telecomunicações. Tal especificação precisa levar em conta as melhores alternativas tecnológicas e econômicas, de modo a possibilitar que as facilidades da banda larga e os recursos de interatividade fiquem acessíveis ao maior contingente possível da população brasileira, através da adequada mobilização das diversas plataformas tecnológicas.
Sistema elétrico: uma analogia
Se por um lado a convergência é inexorável, por outro, deve ser controlável. O momento que vivemos na área das comunicações se presta a uma analogia com o estabelecimento do sistema nacional de energia elétrica. Ao contrário da radiodifusão e das telecomunicações, o sistema elétrico nasceu convergente uma vez que sua cadeia de valor sempre esteve interligada e desempenhou um papel estratégico e social para o País. Por isso, tornou-se estatal logo após sua implantação por empresas privadas estrangeiras. Ao mesmo tempo, sua regulação posterior permitiu a universalização dos serviços de forma mista a partir de um controle por parte do Estado que tratava separadamente, mas ao mesmo tempo considerando-os complementares e interligados, os operadores das atividades econômicas envolvidas na geração, transmissão e distribuição de energia. Não podemos esquecer que o próprio sistema de radiodifusão se estabeleceu, e é suportado até hoje, com um aporte fundamental do Estado. Prova disso é o sistema de retransmissão de televisão, onde mais de um terço das licenças ligadas às redes privadas nacionais ainda são mantidas por prefeituras ou instituições públicas ligadas direta ou indiretamente a governos estaduais.
No caso das comunicações, estamos vivendo simultaneamente o momento histórico que o setor elétrico viveu no início e no final do século XX. A necessidade de universalização dos serviços de comunicação, que é recente, apesar de sinalizada nos programas de inclusão digital propostos em várias esferas do Poder Público, parte de uma percepção das determinações que as comunicações exercem sobre a cultura, a economia e a política. Mas esbarra na crise do modelo de financiamento dos sistemas de informação e comunicação. Ainda fazendo a comparação com o sistema elétrico, a intervenção do Estado nas comunicações precisa garantir a universalização, impedindo que a exclusão do acesso se dê pela barreira econômica, e ao mesmo tempo assegurar uma concorrência equilibrada entre os agentes econômicos, regulando vigorosamente a formação de monopólios e oligopólios.
Foi este impasse que forçou a entrada do Estado na implantação e oferta dos serviços públicos de eletricidade e de abastecimento de água ao longo dos anos 20 e 30, fazendo com que aos poucos as empresas privadas estrangeiras se retirassem do negócio. O mesmo ocorreu posteriormente com a telefonia, que passou pelo processo de estatização na década de 60. Nas três áreas, os grupos privados estão de volta, mas agora submetidos a metas de universalização que os impedem de não atender o consumidor que só pode pagar pela tarifa básica.
Ao deixarmos de fora as comunicações do princípio de bem público que rege os demais serviços, permitimos que o sistema de financiamento via publicidade se tornasse insuficiente e os serviços privados, excludentes. É inconcebível imaginar que uma família precise desembolsar um terço de um salário mínimo se quiser ter um pacote básico de serviços de comunicação em seu domicílio. Precisamos ter coragem de repensar as bases de sustentação financeira deste novo sistema de comunicação (comunicação social digital e telecomunicações) valendo-nos não apenas dos exemplos vigentes no exterior como concebendo caminhos adequados à realidade social e econômica dos cidadãos brasileiros.
Por isso, a proposta do FNDC se sustenta em dois pilares: a noção de rede pública e única e a oferta de um pacote de vídeo, dados e voz acessível às mais diferentes faixas de renda da população (o people play). Um eixo sustenta e garante o outro. De um lado, uma rede com desagregação de serviços, interconexão e compartilhamento de infra-estrutura racionaliza os custos de operação, reduzindo os preços para permitir o people play. De outro, o financiamento do sistema em grande escala permite a expansão das redes para os grotões de um Brasil continental. Sem um dono, o sistema tornar-se-á realmente público e democrático também no sentido do acesso, permitindo que qualquer brasileiro disponibilize conteúdos dos mais diferentes formatos sem que haja alguém controlando a “porteira” de entrada. Em outras palavras, é preciso que o people play esteja ao alcance de qualquer domicílio que possa pagar um preço mínimo mensal pelos serviços, sem que uma família de baixa renda fique a mercê do interesse econômico de uma empresa em atender ou não determinada comunidade ou classe social.
Saída da crise: processo regulatório
Pela primeira vez, em quase um século, estamos abrindo a caixa-preta da comunicação brasileira. A lógica histórica de uma apropriação do Estado pelos interesses privados nos levou a uma situação-limite de concentração, verticalização e desregulamentação que neste momento coloca em risco todo o sistema das comunicações. Os impasses em torno da televisão digital e do estabelecimento de um ecossistema de microeletrônica demonstraram claramente que não é possível tratar a convergência sobre a ótica enviesada de uma disputa apenas entre dois setores econômicos concorrentes. A natureza pública da comunicação social, prevista pelo legislador na nossa Constituição, exige uma regulação onde a ênfase esteja centrada na demanda social por conteúdo citada acima e não apenas na exploração do serviço ou de sua infra-estrutura.
Neste sentido, acreditamos que o equacionamento dos diversos interesses aqui listados deverá ser responsabilidade de uma instituição pública não-governamental cuja atribuição principal será a organização dos serviços digitais e o gerenciamento da infra-estrutura de redes nas tecnologias existentes e nas que porventura surjam. Esta figura será criada por regulamentação específica e seguirá o conceito de rede pública e rede única, evitando o desperdício de recursos públicos e privados na implantação de infra-estruturas distintas e paralelas, de forma a não gerar aumento dos custos dos serviços a serem repassados aos usuários e endividamento de empresas. Retornando à analogia, podemos falar que um modelo aceitável seria o do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Sabemos que esse é um assunto polêmico, mas em algum momento ele precisa ser colocado em pauta se queremos realmente falar de universalização e convergência.
Como todos nós sabemos, está em curso uma transformação paradigmática. Estamos presenciando o nascimento de um novo sistema. Logo, sua cadeia de valor e seu modelo de serviços, que embute o modelo de negócios não se esgotando nele, precisam ser debatidos em profundidade. Se a tecnologia da televisão digital acabou sendo submetida a demandas de um único setor e centrada na visão do negócio, não podemos repetir o erro. O mesmo se dá no caso do rádio digital que sequer foi debatido com a sociedade e se encaminha para um desfecho onde o interesse público e sequer os parâmetros regulamentares para os testes com o padrão a ser definido foram respeitados.
O atendimento às necessidades de conteúdo deve ser assegurado, em alguma medida, na atuação de cada operador e, de um modo geral, pelo conjunto dos agentes, em cada área de prestação do serviço. Esta função deve presidir o planejamento e a estruturação de qualquer processo regulatório em torno da convergência como um todo e, particularmente, a complementaridade dos sistemas Privado, Estatal e Público que o integram. Os requisitos de planejamento e de estruturação devem especificar, em linhas gerais, as cadeias produtivas e a base de sustentabilidade dos sistemas Privado, Estatal e Público, como fundamento da economia do novo sistema.
Rádios e TVs comunitárias, universitárias e outros meios de caráter público sem fins lucrativos devem ter espaço assegurado nesta nova estrutura de distribuição e transporte. Não vemos motivos plausíveis para que essa incorporação não seja garantida pelo sistema privado-comercial. Atualmente, empresas de telecomunicações abrem mão de um percentual de sua receita líquida para financiar a universalização do serviço. Salas de exibição financiam cota de tela para o cinema nacional. Operadoras de TV por assinatura carregam em seus line-ups os canais básicos de utilização gratuita. É justo, portanto, que empresas de radiodifusão subsidiem a produção de conteúdo audiovisual de natureza não-comercial, uma vez que também serão beneficiadas pela racionalidade econômica alcançada com a estruturação de uma rede pública e única de comunicações digitais.
Em igualdade de condições, os agentes da comunicação social disputarão o imaginário do povo brasileiro apenas pela qualidade da oferta de bens simbólicos gerados pelo engenho ou capacidade de articulação de talentos dos produtores. Ações afirmativas para garantir o financiamento da produção independente e a programação regional passam longe de qualquer tentativa de censura ou controle da opinião pública. Em qualquer democracia liberal, cabe ao Estado atuar no sentido de impedir que interesses empresariais não submetam o interesse público. Vivemos uma realidade onde os habitantes de uma pequena localidade do interior do Brasil financiam o sistema de comunicação social eletrônica da mesma forma que os moradores de condomínios de luxo do eixo Rio-São Paulo. Entretanto, a programação que lhes é entregue não contempla suas necessidades de conteúdo nem o cotidiano de sua comunidade. Em outras palavras, vivemos um municipalismo na arrecadação de recursos e um federalismo na sua distribuição.
No momento em que as fronteiras físicas dos suportes de comunicação social e interpessoal se apresentam diluídas pelo advento da convergência, precisamos buscar um processo regulatório que subordine a economia e a tecnologia à cultura. Esta deve ser entendida como o conjunto das produções materiais e simbólicas constituidoras de uma identidade nacional, composta pelas diversidades de um povo.
Além disso, para estabelecer os parâmetros da reestruturação dos sistemas e mercados de comunicação, precisamos reconhecer que todos os sistemas de comunicação social – e suas redes e aparatos tecnológicos - são desenvolvidos fundamentalmente para o transporte e a distribuição de conteúdo. Precisamos afirmar o primado da finalidade de atendimento às demandas sociais de conteúdo. Isto de ser feito através do planejamento e da implementação das tecnologias digitais de transporte e distribuição de conteúdo, constitutivos dos novos serviços digitais de comunicação.
Qualquer legislação, ou conjunto de normas, que desconsidere essas premissas estará fadada a privilegiar uma ou outra parte interessada em uma regulamentação casuística. Existe um perigo a ser enfrentado em um Brasil patrimonialista onde imperam situações de fato: processos desregulamentadores e aniquilamento dos parcos marcos regulatórios existentes. É o que vem ocorrendo neste momento com a lei do cabo. Atacada por todos os agentes privados que irão lucrar com sua extinção, seus princípios e os avanços democráticos alcançados correm o risco de serem enterrados sem o mínimo de debate. Até o momento, o governo e o Congresso Nacional não se pronunciaram assumindo o compromisso de atualizar os dispositivos que nela estão anacrônicos, preservando suas conquistas. Se nada for feito, imperará a lei do mais forte e o mercado, ao contrário do momento de sua elaboração, definirá as bases da nova regulamentação da TV por assinatura, apenas acomodando interesses dos grupos privados estrangeiros.
Conferência: democrática e plural
Estas ameaças cotidianas ao pouco de democracia alcançada na área das comunicações nos últimos 15 anos só serão estancadas pelo estabelecimento de um processo regulatório de normas articuladas entre si para dar conta de uma convergência que não seja apenas tecnológica ou mercadológica. E por um pacto entre Estado, mercado e sociedade para que os acordos advindos de qualquer negociação sejam respeitados. Tarefa de tamanha monta só pode ser alcançada com apoio majoritário da sociedade civil brasileira e dos próprios agentes do mercado.
O FNDC, assim como outras entidades do movimento pela democratização da comunicação, acredita que somente um processo de consulta em bases democráticas poderá legitimar qualquer esforço no sentido de definir como o País estabelecerá diretrizes para consolidar a convergência sem gerar mais exclusão social. Mais do que uma consígnia, a noção de que o grau de pluralidade e cidadania de uma sociedade pode ser medido pelo grau de democracia existente nos meios de comunicação é uma realidade para o caso brasileiro.
Estamos empenhados historicamente na construção de uma Conferência Nacional das Comunicações. Desde o início da década de 90, quando propomos e implantamos Conselhos Municipais de Comunicação em diversas cidades brasileiras, sabíamos da importância de estruturarmos espaços onde o Estado poderia ouvir a sociedade sobre os assuntos de comunicação. Apesar de novamente obstruído por interesses políticos, que adiaram sua instalação por 14 anos, o Conselho de