V Celam - Aparecida no contexto da pastoral indígena

13/05/2007
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Depois de tantos escândalos de corrupção, que desmistificaram as instâncias legislativas, judiciárias e administrativas da vida pública no Brasil, não é difícil explicar o movimento quase messiânico e a leitura mitológica que a visita do papa está desencadeando no Brasil. É verdade, a mídia do capitalismo neoliberal estimulou essa simpatia que é rentável por causa do IBOPE e da simulação de um noticiário aberto, independente e pluralista. Desde a porcelana do café da manhã até a sobremesa e os aposentos da noite quase tudo vimos daquilo que foi preparado para receber o papa e que tem pouca importância. A culpa não é de Bento XVI, que é pessoalmente a simplicidade em pessoa e muito avesso a todas essas encenações. A aparição de uma figura mítica além do bem e do mal, em Aparecida, é criação da mídia e está sendo explorada por interesses de determinados segmentos sociais. O mito não fortalece a análise histórica e faz sombra para a razão da viagem do papa, que é a abertura da V Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe, no dia 13 de maio.

Tema e lema da Conferência visam fortalecer a identidade católica no mundo globalizado e incentivar o espírito missionário perante a perda de um número significativo de fiéis nos últimos anos: “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida. Eu sou o Caminho, a verdade e a Vida” (Jo 14,6). A preocupação com a identidade dos fiéis e a essência missionária da Igreja procede. “É um fato que a maior parte daqueles que batizamos na Igreja católica não estão sendo por nós evangelizados devidamente”, declarou o então secretário-geral da CNBB, D. Odilo Scherer (25.9.2006). O Cimi, incentivado por seu então presidente D. Franco Masserdotti, que faleceu cedo demais, procurou trabalhar os dois eixos da “identidade” e da “missão” em seu Plano Pastoral, de 2006.

O dia da abertura da V Conferência, o dia 13 de maio, é um dia carregado de fortes simbolismos. Primeiro, pela abolição oficial da escravidão no Brasil (Lei Áurea, 1888), segundo, pela aparição de Nossa Senhora de Fátima (1917). Finalmente, o mesmo dia 13 lembra o atentado a João Paulo II, na Praça de São Pedro, de Roma, em 1981. A devoção mariana de Aparecida, o alinhamento com o antecessor e a passagem significativa pela Fazenda da Esperança, em Guaratinguetá, uma obra social empenhada na superação da escravidão de droga, álcool e Aids, e inspirada pelo Movimento dos Focolares, assumem esse simbolismo.

O que não pode ser dito simbolicamente e nas entrelinhas, o papa vai dizer, em seu estilo afável, através de palavras claras, curtas e explícitas, como mostrou em seu pronunciamento aos núncios latino-americanos (17.2.2007). Muitas recomendações do discurso do papa aos núncios são relevantes para a causa indígena. A advertências contra o “proselitismo das seitas”, por exemplo, nos lembra que esses grupos fundamentalistas nunca favoreceram as culturas dos povos indígenas. O “testemunho de uma fé amadurecida“, mencionada pelo papa, resiste contra todas as formas de paternalismo, assistencialismo e sacramentalismo apressado. A “imensa potencialidade missionária e evangelizadora” dos jovens como “discípulos e missionários de Jesus Cristo” vai encontrar na pastoral do Cimi um vasto campo de atuação.

Nesse discurso, porém, Bento XVI constata uma “feliz fusão entre a antiga e rica sensibilidade dos povos indígenas com o cristianismo e com a cultura moderna”. Em conseqüência dessa “feliz fusão” afirma que o encontro entre as culturas indígenas e a fé cristã “foi uma resposta interiormente esperada por tais culturas”. O encontro positivo com o cristianismo “criou a verdadeira identidade dos povos da América Latina”. Como prova dessa afirmação, o papa aponta para o fato de que “a Igreja Católica é a instituição que goza do maior crédito por parte das populações latino-americanas (...) por causa do trabalho que realiza nos âmbitos da educação, da saúde e da solidariedade para com os mais necessitados. A assistência aos pobres e a luta contra a pobreza são e permanecem uma prioridade fundamental na vida das Igrejas na América Latina”. Aparecida vai tocar em muitos pontos nevrálgicos da pastoral indigenista.

A afirmação de que as culturas indígenas esperavam a Igreja Católica e sua mensagem da fé é historicamente sem provas documentais e teologicamente é uma regressão aos tempos pré-conciliares. A cultura do conquistador e o cristianismo embutido nela destruíram muitos referenciais de identidade dos povos indígenas e não contribuíram para a construção de uma “verdadeira identidade” sobre uma supostamente “falsa identidade” anterior. O crédito, que a Igreja Católica hoje encontra entre os pobres, deve ser atribuído à pastoral libertadora pós-conciliar, que rompeu com a missão colonizadora de muitos séculos. Ao falar da “assistência aos pobres” e não da “opção pelos pobres”, percebe-se o ensaio de uma mudança semântica mais profunda, porém não respaldada no episcopado latino-americano.

Aparecida não precisa inventar a roda. Precisa, sim, dar continuidade às decisões tomadas nas Conferências de Medellín (“opção pelos pobres”), Puebla (“comunhão e participação”) e Santo Domingo (“inculturação”). Entre as questões-chave para a causa indígena em Aparecida se impõem novamente a assunção da realidade como ponto de partida de qualquer reflexão teológica e ação pastoral, segundo o princípio do Santo Irineu: “Assumir para redimir” (cf. Puebla 400). Desta assunção da realidade emerge a opção pelos pobres e pelos povos indígenas, incentivando seu protagonismo na construção do Reino. Que vive na proximidade com os povos indígenas constata a urgência de uma ampliação, descentralização e reestruturação dos ministérios para que na prática pastoral possam responder à diversidade sociocultural, dispersão geográfica e necessidade espiritual dos povos indígenas. A assunção da realidade terá também uma incidência sobre a formação dos agentes pastorais. Será uma formação para a luta e na luta pelas causas do Reino. Nessa formação inculturada, as “matérias” da teologia índia, do diálogo ecumênico e inter-religioso devem ter um destaque privilegiado.

Somos discípulos de Jesus numa Igreja missionária para testemunhar, no meio dos crucificados, um Deus crucificado e ressuscitado, que fez o ser humano à sua imagem e semelhança, e que se deu “para nós” e “para todos”. Procuramos viver esse aspecto de doação pelo reconhecimento do outro, pela gratuidade da presença, pela diaconia eucarística, na luta e na contemplação. Na mística da militância missionária brecamos a lógica do sistema: contra a exclusão propomos a participação, contra a acumulação, a partilha, e contra a exploração, a gratuidade. Na gratuidade se concretiza nossa resistência contra essa lógica da rentabilidade e do lucro. A Igreja missionária no meio dos povos indígenas é uma instituição vulnerável por ser uma instância de apelação, de contestação, de reconciliação e de graça. Ela nasceu na festa do Espírito Santo que é Deus no gesto do DOM. A gratuidade aponta para a possibilidade de um mundo para todos.

“Que Nossa Senhora, Maria Aparecida, nos acompanhe nessa caminhada missionária de místicos militantes! Imaculada Conceição, não de berço esplêndido; não nega as origens humildes de seu nascimento e de sua imagem, que é de barro cozido e escurecido pela longa permanência nas águas do rio. Desde as profundezas das águas da nossa realidade, do nosso imaginário e subconsciente, onde convivem pobreza e realeza, nos convoque e nos lembre que somos todos itinerantes a serviço do Reino!”

Paulo Suess é Assessor Teológico do Cimi
https://www.alainet.org/es/node/121075

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