Armadilha?
11/09/2006
- Opinión
A maioria das famílias beneficiadas pelos programas de reforma agrária do Banco Mundial no Brasil não lê o contrato que assina, não sabe quantas parcelas terá de pagar para receber a posse definitiva de suas terras e nem os juros a que está submetida. Além disso, quase um terço das famílias não pôde escolher onde ficaria sua nova propriedade e quase metade não produz o suficiente para seu próprio consumo.
Essas são algumas das conclusões de uma recém-lançada pesquisa de oito anos da Rede Terra de Pesquisa Popular (que agrupa, entre outras, o Movimento dos Sem Terra e a Comissão Pastoral da Terra) sobre as iniciativas da instituição financeira internacional relacionadas à redistribuição de terras no Brasil. O estudo afirma que, apesar de toda a propaganda sobre eficiência, os programas do Banco Mundial são, na verdade, uma “armadilha”. “Os projetos do Banco Mundial se contrapõem à reforma agrária baseada na função social da propriedade, como determina a Constituição brasileira. Esta política promove a compra e venda ‘negociada’ da terra ou a contra-reforma agrária”, diz o texto.
De 1997 a 2005, foram entrevistadas 60 mil famílias de 13 estados que vivem em áreas rurais e participaram de ao menos um dos programas do banco. São eles: Cédula da Terra (1997-2002), Banco da Terra (1999-2006), Crédito Fundiário e Nossa Primeira Terra. A escolha dos entrevistados foi feita por amostragem. "É a primeira pesquisa desse gênero em âmbito nacional", lembra a jornalista Maria Luísa Mendonça, diretora da Rede Social Social de Justiça e Direitos Humanos, entidade que coordenou os trabalhos. Segundo ela, a idéia era fazer uma espécie de "auditoria dos programas de reforma agrária baseados no mercado".
Dificuldades do começo ao fim
A pesquisa demonstra um pouco das dificuldades que os pequenos agricultores precisam enfrentar, mesmo quando conseguem terra. Os números mostram problemas em todas as fases da reforma agrária – da compra à produção. Pouco mais de um terço das famílias (35%) afirma não ter escolhido a terra que comprou e 41% dizem não ter participado do processo de negociação da compra. O índice de não participação chega a 82% na região Sudeste, mas é de apenas 2% na Sul.
"Provavelmente isto está relacionado ao fato de que, nos estados da região Sul, as compras tenham sido, majoritariamente, feitas por compradores individuais, e não por associações comunitárias, como foi nos demais estados. Além disso, no Sul – especialmente no Rio Grande do Sul –, o programa implementado (chamado Banco da Terra) contou com o apoio ativo de sindicatos de trabalhadores rurais ligados à Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag), bem como das associações de municípios. Nos demais estados, o processo de implementação foi distinto", explica o historiador João Marcio Pereira, cuja dissertação de mestrado abordou o modelo de reforma agrária de mercado do Banco Mundial. Seu doutorado, em andamento no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, tem como foco o mesmo assunto.
O estudo da Rede Social também mostra que em metade dos casos de aquisição de terras por intermédio de programas do Banco Mundial a propriedade foi comprada de outra família. De acordo com Pereira, esse é um fato relevante, pois revelaria um aspecto deficiente do programa: a falta de democratização da terra. "Isto não democratiza a estrutura fundiária e não politiza a base da sociedade para a luta pelos seus próprios direitos", critica.
Há ainda suspeitas de que corrupção ou mau uso dos recursos. Dos entrevistados, 16% afirmaram ter suspeitas de casos de corrupção. "Esses são os que tiveram coragem de falar sobre esse tema e souberam apontar onde haveria irregularidade. Ou seja, não foi fruto de imaginação. Provavelmente há outros casos, que as pessoas tiveram medo de relatar. É um índice muito elevado", diz Maria Luísa Mendonça.
Passadas as dificuldades para adquirir a terra, chega a hora de assinar o contrato. Decidido o local da propriedade, os agricultores nem sempre têm acesso ao papel assinado por eles próprios – 53% afirmam ter recebido uma cópia. Ou seja, quase metade não obteve a papelada. Os que possuem nem sempre lêem (64% afirmam não terem lido o conteúdo). O resultado é que 42% dos entrevistados não sabem quais são as penalidades previstas no contrato – perda da terra, inclusão do nome no Serviço de Proteção ao Consumidor (SPC), aumento de juros etc. Outras informações básicas também são desconhecidas por grande parte dos agricultores: 36% não sabem em quantas prestações deverão quitar sua dívida e 81% não conhecem as taxas de juros que pagam.
"São pessoas com pouca educação formal e que sempre sonharam em ser donas da própria terra. Por isso não se importam muito com quanto terão de pagar e nem como. Primeiro, compra-se a terra; depois se pensa em uma forma de pagar por ela", explica Sérgio Sauer, professor de Gestão do Agronegócio da Universidade Federal de Brasília (UnB).
Sauer já realizou pesquisas semelhantes para avaliar o impacto de programas federais de reforma agrária e garante que o resultado sempre é parecido. "Em qualquer região do país, a prioridade de um agricultor sem terra é conseguir uma propriedade. Ele está desempregado, tem família para sustentar, só sabe fazer isso. Então aceita qualquer condição". O professor afirma que a culpa, no entanto, não é apenas dos agricultores. Segundo ele, dado o baixo nível educacional dos compradores de terra, faz falta um corpo técnico que possa explicar melhor as condições de pagamento e numa linguagem adequada", critica. Para Mendonça, a propaganda feita para esses programas é muito forte, o que também contribui para a falta de leitura e o desconhecimento das condições contratuais. "Fala-se muito do dinheiro a ser investido e pouco no que deverá ser pago. Os agricultores acabam pensando ser um programa de reforma agrária tradicional, onde a terra é cedida sem custos".
Por outro lado, 59% afirmam ter recebido financiamento para começar a produzir e 47% garantem que, ao menos “de vez em quando”, recebem algum tipo de assistência técnica, sendo que 14% dizem ter esse tipo de visita sempre. Outros 40% afirmam que nunca receberam qualquer tipo de assistência e 12% admitem já terem recebido, mas afirmam que isso não acontece mais. Ou seja, quase metade dos entrevistados tem apoio para produzir, e tanto Pereira quanto Sauer afirmam a necessidade de acompanhamento da produção por técnicos especializados.
Assistidos ou não, os agricultores começaram a produzir em todos os casos. O problema é que nem sempre a produção é suficiente para o sustento da família, como demonstra o estudo. Apesar de a maioria (53%) afirmar que os produtos geram os recursos necessários para sustentar a família, 46% dizem passar dificuldades, pois o que sai da terra é insuficiente. A conseqüência pode ser vista pelo percentual de entrevistados que dizem passar ou já terem passado fome nas terras adquiridas por meio de algum dos programas: 8% dizem ter fome e 11% afirmam que já tiveram. A maioria (64%), porém, garante não ter esse tipo de dificuldade.
Entre as regiões atendidas pelos programas apoiados pelo Banco Mundial, o Nordeste apresenta os maiores índices de fome – 13%, atualmente, e 17% entre os que já viveram essa situação. No Maranhão, os números são, respectivamente, de 23% e 25%. É o estado com índices mais elevados.
"Tudo está ligado", diz Sauer. "A falta de informação do agricultor gera dificuldades para produzir, assim como a fragilidade da assistência técnica, que não consegue dar subsídios suficientes. Além disso, as terras compradas pelo programa geralmente são pouco férteis, pois as melhores são muito caras. Isso cria um ciclo vicioso inerente ao projeto", afirma Sauer.
A pesquisa também mostra que a maioria dos beneficiados pelos programas do Banco Mundial nunca fez parte de qualquer movimento social. Apenas 34% deles participavam quando o questionário foi aplicado e 62% dizem que não se organizariam em algum movimento para ocupar terra. A principal razão para não participar é o fato de serem contra invasões, motivo alegado por 30% dos entrevistados. Outros 16% dizem considerar arriscado demais. Ou seja, essas iniciativas atendem, principalmente, agricultores não ligados a movimentos sociais como o dos sem-terra.
Programa existe desde 1997
A política de compra de terras para fazer reforma agrária em âmbito nacional tem ajuda do Banco Mundial desde 2000, quando um empréstimo de US$ 202 milhões foi concedido ao governo federal, que se comprometera a disponibilizar a mesma quantia como contrapartida. Os recursos serão liberados até o fim deste ano, sob o nome "Projeto de Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural", e foram direcionados para os estados do Nordeste e do Sul, além de Minas Gerais e Espírito Santo. A medida é complementar a outros programas e tinha como meta atingir 50 mil famílias. Antes do projeto nacional, foram realizados dois pilotos, um apenas no Ceará e outro, o Cédula da Terra, em outros cinco estados nordestinos. "O argumento de tais programas é que dão acesso à terra mais rapidamente e mais condições de escolhê-la", analisa Sauer. "O problema é que eles acabam competindo por recursos com outras iniciativas, já que demandam contrapartida. Daí afetam ações de desapropriação e outros financiamentos".
De acordo com o Banco Mundial, os projetos demandam uma forte participação popular, além de apoio de governos estaduais e municipais e de associações de trabalhadores. O programa Cédula da Terra, de 1996 a 1999, período em que foi realizado, atendeu 23 mil famílias – oito mil a mais do que a expectativa da instituição financeira, de acordo com dados dela própria. O custo médio por hectare foi de R$ 193 e, por família, de R$ 4.759. Até então, não havia recursos previstos para assistência técnica, o que foi previsto para a nova etapa do programa de crédito fundiário.
Apesar do alegado sucesso, ele tem recebido diversas críticas. Para João Marcio Pereira, os programas de crédito fundiário do Banco Mundial são "uma verdadeira caixa-preta". "Não se trata de "reforma agrária", mas sim de um programa de compra e venda de terras entre agentes privados (trabalhadores e proprietários), financiado e intermediado pelo Estado, que remunera os proprietários em dinheiro a preço de mercado. Já a reforma agrária consiste, basicamente, numa redistribuição significativa do estoque de terras monopolizado por uma minoria de grandes proprietários, num intervalo de tempo suficiente para beneficiar a geração que a vivenciou, de tal maneira que a estrutura agrária de uma sociedade seja democratizada. A indenização aos proprietários deve ser feita em títulos resgatáveis a longo prazo, a preço abaixo do de mercado", diz.
De acordo com Klaus Deininger, economista do Banco Mundial e um dos idealizadores do programa de crédito fundiário da instituição, o objetivo de tais programas é aumentar o envolvimento do Estado com a reforma agrária. "O Banco Mundial claramente não pensa que o mercado, sozinho, possa lidar com desigualdades de raízes profundas na América Latina. O debate não é sobre presença do mercado ou não, mas sobre a maneira mais efetiva de fazer o governo se envolver nessa questão", afirma.
Deininger diz ainda que o Banco Mundial está aberto a críticas e que é do interesse da instituição ter seus programas avaliados. A instituição contrata consultorias universitárias no Brasil para medir o sucesso de seus programas e, segundo o economista, os resultados foram positivos. "Eles mostram fortes melhorias no bem-estar dos beneficiários, assim como um alto índice de pagamento", comemora. A instituição, para averiguar essas afirmações, está conduzindo uma outra pesquisa, de acompanhamento*.
Nenhum representante do Banco Mundial no Brasil foi encontrado para comentar a pesquisa ou as críticas. De acordo com a assessoria de imprensa da instituição, o responsável pela área está de férias.
*Parágrafo incluído para abrir espaço à argumentação do Banco Mundial, cujas respostas chegaram apenas no dia seguinte ao fechamento desta edição.
Rets, Sexta-feira, 01 de Setembro de 2006.
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