Por que os velhos se tornam reacionários?
08/06/2006
- Opinión
Na idade da descrença, quando crescem e se avolumam as desilusões, é natural que brote o conformismo. No desfibramento, na senectude, nasce a flor morta da conformação. A luta pelo futuro cede o lugar à desesperança porque, para um velho, o futuro é a própria, vizinha, imediata morte. O futuro passa a caber em uma porta estreita e mesquinha. Porta, passagem para lugar nenhum. Aristóteles, essa referência a que sempre teremos de voltar, no Livro Segundo da Arte Retórica já chamava a atenção para o caráter dos velhos: "Os velhos são mais inclinados ao cinismo do que à vergonha ... Vivem de recordações mais que de esperanças, porque o que lhes resta de vida é pouca coisa em comparação do muito que viveram; ora, a esperança tem por objeto o futuro; a recordação, o passado. É essa uma das razões de serem tão faladores; passam o tempo repisando com palavras as lembranças do passado; é esse o maior prazer que experimentam...". Aqui se unem o psicológico, o histórico, o social, o orgânico simples da vida e a experiência em uma só pessoa. Se essa união se aplica a qualquer homem, do nascimento à velhice, com mais propriedade se aplica aos velhos. Neles há com mais propriedade a experiência. Neles se mostra mais às claras o "orgânico simples da vida". Neles se encarna o histórico vivido em só existência. É claro que circunstâncias extraordinárias transformam essa linha geral da vida. (Pensamos nos velhos revolucionários.) Dizendo melhor, condições inesperadas fazem uma variante do caminho cruel.
Existem alguns doidos, desequilibrados, que tentam, e conseguem, à sua maneira, fugir da lei universal. (Pensamos em Tolstói, em sua luta contra o status quo até os últimos dias. Pensamos em Tolstói a correr louco por estações nas últimas horas de vida.) Existem uns românticos empedernidos que resistem numa luta desigual contra o destino da biologia. Pensamos em Goethe: "A crença em nossa imortalidade vem do conceito de atividade, pois se eu me conservo ativo ininterruptamente até a morte, a natureza vê-se obrigada a conceder-me uma nova forma de existência logo que o meu espírito não possa suportar mais a minha atual forma corpórea". Goethe, que aos 74 anos clamava pelo amor de uma jovem de 19: «.... Para mim perdeu-se o Todo, eu mesmo me perdi, que há bem pouco fui o preferido dos deuses; À prova me puseram, deram-me Pandora, De bens tão rica, mais rica ainda de perigos; Impeliram-me para a boca dadivosa, Separaram-me dela, e assim me aniquilam.» Mas se dele já se disse que viveu uma puberdade tardia, o mesmo não se pode escrever sobre outros indivíduos, ainda que excepcionais. Para nada falar de Vargas Llosa, da sua última política, ou de García Márquez a ostentar como um novo-rico uma amizade com Bill Clinton (os que amam a literatura sabem que deveria ser o contrário), falemos de José Saramago, do Saramago desses últimos dias. Está em um despacho da Agência Lusa, de 1.6.2006: " 'Não vale a pena o voluntarismo, é inútil, ler sempre foi e sempre será coisa de uma minoria. Não vamos exigir a todo mundo a paixão pela leitura', afirmou..... 'O estímulo à leitura é uma coisa estranha, não deveria ter que haver outro estímulo além da necessidade de um instrumento que permita conhecer', opinou. 'Mal vão as coisas quando é preciso estimular. Ninguém precisa de estímulos para se entusiasmar com o futebol', disse, lembrando que por trás do esporte há uma 'operação de propaganda fabulosa'". As palavras entre aspas falam por si. Não precisam sequer da simplificação dos titulares que correram mundo, que buscam o excêntrico, o sensacional, a todo e qualquer custo. Anunciavam uns: José Saramago diz que ler é hábito de uma minoria. Afirmavam outros: Saramago: voluntarismo no estímulo à leitura é "inútil".
Melhor vendo, bem poderíamos dizer que os titulares dos periódicos foram até razoáveis, pois havia e há um conteúdo mais letal nas palavras do escritor. Porque ele disse: a) que o voluntarismo, de um programa de incentivo à leitura, é inútil; b) que ler sempre foi e será um hábito de minoria; c) que, portanto, não devemos exigir de todo mundo a paixão pela leitura; d) e que mal vão as coisas quando precisam de estímulo. Como isto se deu numa fala, e não numa escrita, e sabedores da pressa da imprensa, poderemos passar ao largo da confusão que se faz no começo entre voluntarismo e vontade. Mas não do mais devastador, que não sofreu qualquer correção ou ajuste do romancista nos dias seguintes. Ou seja, que o hábito de leitura é uma ocupação de minoria, por natureza do hábito, e da minoria, por supuesto.
É um erro grave, para um criador, o projetar o futuro a partir do que existe, do que ele vê, todos os dias. Um norte-americano, por exemplo, poderia imaginar que toda civilização do mundo é branca e fala inglês. E que o futuro do mundo seria de asnos escuros a carregar os civilizadores às costas. (Os criadores do Pentágono pensam assim, o que já é uma maravilha, se pensamos que eles pensam.)
Mas o que dizer da frase "ler sempre foi e sempre será coisa de uma minoria", em um escritor que fez os anos da sua formação entre comunistas? A primeira impressão é que o escritor se referiu a um mundo específico, ao mundo da sua província, aos poucos trabalhadores que gostavam e gostam de ler. Saramago se referiu à memória pessoal, à própria experiência, de modo superficial e bem satisfeito, acreditamos. Pior, ele não desceu na própria experiência em busca da solução de um enigma: por que as coisas eram assim? Ele sequer foi à campanha de fundação de bibliotecas públicas na Espanha da resistência ao fascismo, ele sequer atentou para as tiragens de livros em Cuba, ele não viu ou não procurou ver o número de pessoas que liam na Alemanha Oriental, na União Soviética. E, nesse particular, a memória do escritor claudica, porque tudo isto é da história passada durante os anos da sua vida. O que vale dizer, a história, para ele, passou a ser a que se encarna nos sinais vitais do próprio corpo. Ele bem poderia, como uma pessoa pública que é, com o vigor que lhe resta para a compreensão do mundo, com a sua experiência de leitor, indicar caminhos para o estímulo à leitura, criticar o modo como o governo português pretende estimular a leitura, denunciar se nisto há boas negociatas com a indústria editorial, e que livros, que formadores de leitura deveriam existir. Mas não, preferiu o mais fácil, o caminho da frase polêmica, que já vem pronta para os títulos da imprensa.
E misturar o resmungo ao óbvio, o natural ao artifício, o lógico ao absurdo. "Não vamos exigir a todo mundo a paixão pela leitura", é claro. Não se deve impor a ninguém nada, muito menos uma paixão. Mas atrair, estimular, despertar para o mundo da escrita, para a escrita do mundo, tentar a transformação da ignorância em pessoas pensantes, o que dizer de tão boa, alta e necessária tarefa? Parece que aqueles anos de ardor por uma nova humanidade se tornaram caducos conforme a caducidade do criador. Afinal, Saramago parte para completar 84 anos. Um bom romântico, em lugar da pergunta "por que os velhos se tornam reacionários", perguntaria: por que os homens envelhecem? - Porque não morreram antes, poderia responder, com humor à portuguesa, o escritor. Voltemos portanto a Aristóteles: "Os velhos são mais inclinados ao cinismo do que à vergonha".
https://www.alainet.org/es/node/115501
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