A revolta que não sai no jornal
21/11/2005
- Opinión
“Número de pessoas atingidas por intoxicação no Blue Tree Park chega a
70”
“Mais de 100 pessoas se intoxicaram em hotel”
As manchetes, os titulares correram as páginas dos jornais de todo o
Brasil. Quando este artigo for publicado, é possível que o número de
vítimas ultrapasse o número 250. Todas, número à parte, pessoas, pessoas
como as tomam a sociedade brasileira, de classe média, Juízes de Direito
em maiúsculas, esposas, filhos. Todas, Pessoas, enfim. Haviam ido a um
congresso no Hotel Blue Tree Park, nome muito bonito em Miami, trazido
para o sol do Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco. O Hotel, para quem
não sabe, é um luxo de nobres árabes em versão classe média. Chama-no até
de Resort, na propaganda. Que diz mais: “Cercado por maravilhas naturais
e de frente para um mar de areias brancas e águas cristalinas, o Blue
Tree Park Cabo de Santo de Agostinho oferece um ambiente de requinte e
bom gosto, aliado a uma completa estrutura de lazer e serviços. Situado a
37 Km do sul da cidade do Recife, em frente das piscinas naturais
formadas por arrecifes e a 45 minutos do aeroporto internacional”. Nele
existem apartamentos que atingem 61 metros quadrados de área individual,
e para todos, Pessoas, queremos dizer, piscinas, quadras de tênis, campo
de futebol, ciclovia, pista de Cooper, fitness, windsurf, jet-ski,
fitness center, home theater, kids club.
O primeiro óbito foi o de uma criança de 9 anos, filha de um casal de
juízes. Espera-se que, óbito, seja o último. Mas de um total de 243
participantes do congresso, segundo o Jornal do Commercio, 104 sofreram
vômito e disenteria. Como 600 participaram do inesquecível fim de semana,
é razoável estimar que 256 apresentem os mesmos sintomas. Diante do
escândalo, de Pessoas que jamais pensaram pagar tão caro por um
congresso, o Poder Público foi acionado. Em valores materiais, o que
sempre pesa, o Encontro rendera cerca de Um Milhão de Reais ao Blue Tree
Park, para quatro dias, metade paga pelos juízes, metade paga pela
Associação dos Magistrados. Então o Poder Público tomou suas medidas, fez
o que deveria ser uma rotina: fechou a cozinha, a padaria, o bar e o
restaurante do Resort, porque 35 cuidados obrigatórios de qualidade dos
alimentos não eram cumpridos. Coisas elementares, mas fundamentais, como
o controle da temperatura da câmara frigorífica, estavam desprezadas.
Belo restaurante, maravilhosos apartamentos, mas cozinha pequena, muito
pequena e estreita para o número de empregados e de alimentos, percebe
agora a Vigilância Sanitária. O que vale dizer, e os Vigilantes não
dizem: a criadagem pena aqui atrás para que sorriam lá na frente as
Pessoas de 250 dólares de diária.
Uma outra Vigilância
Uma outra notícia, na mesma semana, vem do mundo das pessoas com p
minúsculo. Do mundo da criadagem, até o limite dos que não ganham 250
dólares por mês. O sítio pernambucano da Rede Globo, o
pe360graus.globo.com, no dia 10 nos avisa: “A emergência cardiológica do
hospital universitário Oswaldo Cruz, no bairro de Santo Amaro, no Recife,
está com seu atendimento comprometido nesta quinta-feira (10) devido à
superlotação. Por conta disso, os médicos estão fazendo uma triagem e
atendendo apenas aos casos reais de emergência, como ocorrência de
enfarto ou parada cardíaca, por exemplo”. O redator, na pressa do on
line, nada nos esclarece das circunstâncias precisas em que alguém pessoa
deve procurar a emergência, se antes ou depois do óbito. Digamos que na
iminência, nesse autêntico serviço para iminentes. O que quer dizer, por
esse novo critério: na emergência do Hospital Oswaldo Cruz, o indivíduo
ou chega muito cedo ou muito tarde. Na primeira hipótese, não será
atendido. Na segunda, será inútil qualquer atendimento.
Vejamos se o Diário de Pernambuco do outro dia nos explica melhor. Na
página B7 de 11.11.2005, publica-se a foto de uma senhora com uma
legenda: “Aposentada Lídia Abreu voltou novamente para casa, pela quarta
vez, sem realizar um cateterismo”. Não era um caso real de emergência,
com absoluta certeza, porque a senhora andava e prestava declarações.
Entremos então no texto: “A superlotação na emergência cardiológica do
Hospital Universitário Oswaldo Cruz – problema crônico que se arrasta há
anos na unidade – obrigou ontem o setor a restringir drasticamente os
atendimentos. Dos habituais 70 pacientes recebidos durante o período da
manhã, somente 13 foram admitidos ontem. O principal problema, segundo os
médicos, é a falta de leitos e de infra-estrutura para atender à demanda
de doentes que procuram o hospital. No início da tarde de ontem, os sete
leitos disponíveis no setor abrigavam de fato 38 pacientes, o equivalente
a mais de cinco vezes a sua capacidade....”. Sim, mas como 7 leitos
abrigam 38, como é possível? Então vem o que parece uma explicação, para
essa média de 5,43 pessoas por cama: “...Foi o caso do vigilante Luiz
Ferreira, 60, diabético e hipertenso. Internado na unidade com um
princípio de enfarte (negrito nosso), ele estava há mais de 48 horas
acomodado em um banco...”. Ah, bom, na unidade somente se deita quem
estira e estica em definitivo o corpo. Ou quem tiver a sorte de morrer
primeiro.
O leitor já vê que entrar no mundo das pessoas com p minúsculo é o mesmo
que derrubar todo e qualquer projeto de um escritor com e pequeno. Quando
lemos essa notícia, nós imaginávamos ressaltar, no momento da escrita, os
poderes extraordinários dos médicos do atendimento público. Agora vemos
que isto é insuficiente. Os médicos não têm outra escolha. Eles decidem
lá, numa lógica infernal, quem deve ser defunto e quem pode adiar o fim.
Pensávamos antes que os médicos, nessa conjuntura, seriam Deus. Não, eles
têm a força do Diabo. O seu poder não é bem o de salvar, mas o de
condenar. Matam sem revólver. O paciente se salva por força inexplicável
do próprio organismo.
Onde as notícias se encontram
Nós, que estamos à margem da louca produção, podemos ligar as notícias e
vê-las com os olhos da experiência. A não ser a última hora para enviar o
texto, hora soada e tocada por Jesús Gómez e Luiz Egypto, nada nos
apressa. Daí que podemos melhor ver, longe dos prazos da indústria da
notícia. E vemos: há uma revolta silenciosa, há uma surda vingança dos
excluídos no Brasil. Nada patológica, nada absurda, nada que espante,
ainda que nos choquem e nos causem repulsa os efeitos dos monstros que
criamos. Ainda que não desejemos, ainda que não nos faça bem a vista e a
notícia das vítimas encarnadas em Pessoas com P, bem compreendemos que
elas também sejam atingidas. Uma expressão do que chamam distribuição de
renda no Brasil poderia dizer que a massa de excluídos respira e se
sufoca no meio do fausto. Ora, no caso da intoxicação geral do Blue Tree
Park ninguém, ninguém se pergunta ou perguntou por que os empregados do
Hotel não foram também intoxicados. Era e é natural. Se eu, empregado,
nado com fome em meio ao filé, por que dele também não retiro um pedaço?
Mas não, até aqui, não se sabe de vítimas entre cozinheiros e garçons. É
natural. A hipótese mais provável é que do cardápio servido não comeram
para matar a fome. Com a minha experiência, digo que certamente provaram,
furtaram pequenos, muito pequenos nacos, tão pequenos quanto as suas
pessoas de pessoas com p. Mas comer, comer e se envenenar à farta, não.
Isto ficou para os Doutores. E por isso escaparam.
Escrevemos fausto, e emendamos, fausto, que fausto, menos, bem menos.
Temos visto em pequenos restaurantes como a nossa classe média trata a
pessoa com p que lhes serve. Que desprezo! O cidadão de direitos não olha
para o empregado que existe sem nenhuma garantia. Dirige-lhe, melhor
dizendo, rosna, vocifera o prato escolhido e se mantém raivoso, hostil,
perigoso e áspero a qualquer aproximação. Pelas carnes gordas e
carantonha tais Pessoas nos lembram sempre um buldogue, sem coleira
sentado em frente à mesa de um circo. Imaginamos sempre a mágoa que fica
num homem tratado assim por um cão, que usufrui a superioridade de uma
sociedade de classes.
Menos que imaginamos às vezes. Vemos, percebemos, sentimos. Quando vamos
comprar frios, queijos, sentimos. E aqui a nossa experiência particular
deve ter algo de universal. É flagrante a má vontade com que um empregado
ou empregada nos atende, é acintosa a indiferença e dificuldades que põe
a qualquer consideração sobre tipo ou maciez do queijo escolhido. “Só tem
este.... Tem não ... Acabou”, diz-nos, a custo. É grande a pena, a
mesquinhez com que corta fatias que, sobrepostas, muito demoram a atingir
o peso pedido. Isto em nós, em lugar de causar alguma raiva, muito nos
envergonha. Porque sabemos que o empregado nos serve o que não poderá
comer. A não ser por furtos, por pequenos e miseráveis furtos, como se
fosse um mísero e pequeno roedor.
Tem não é pouco.
https://www.alainet.org/es/node/113586
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