Setúbal e a luta de classes
02/05/2005
- Opinión
Do alto dos seus 82 anos o senhor Olavo Setúbal é um homem sábio. Em entrevista para a Folha de São Paulo em 15/04/2005, ele afirma, com razão, que a distribuição de renda no Brasil "gerou dois países: um rico e um pobre". O país rico, composto pela classe média e pelos ricos propriamente ditos, "não quer pagar para que os pobres atinjam um nível maior de desenvolvimento". Isto porque "a classe média não agüenta mais tanto imposto" e os ricos "são muito difíceis de tributar". Só faltou dizer que são os pobres que estão pagando a conta da erradicação da pobreza no Brasil. Sim, pois é exatamente isso que está acontecendo no país.
Senão vejamos, há consenso a respeito de algumas verdades sobre a nação, encontradas nos estudos do IPEA sobre o tema: 1) o Brasil não é um país pobre, pois, apesar de pertencer ao Terceiro Mundo e ter uma economia dependente, sua renda per capita o coloca no terço mais rico dos países do mundo: 77% da população mundial vive em países com renda per capita inferior à do Brasil; 2) apesar de sua população não ser das mais pobres do planeta, o Brasil é um país injusto, pois tem uma quantidade de pobres muito acima da média dos países com renda per capita similar: nossa "quota" de pobreza deveria ser de 8% e não de 34%; 3) este "excesso" de pobres se deve à concentração de renda no país, pois o Brasil tem um dos mais altos índices de desigualdade do mundo: os 10% mais ricos do Brasil se apropriam de 50% da renda nacional; 4) esta extrema desigualdade é responsável pela maior parte da pobreza no país: se o Brasil tivesse a distribuição de renda semelhante à do Uruguai, a pobreza brasileira diminuiria em dois terços; 5) esta desigualdade não só é intensa, mas também é persistente, pois tem se mantido estável nas últimas décadas em torno do coeficiente de Gini de 0,60; 6) a pobreza no Brasil é estrutural, devido ao seu vínculo com a desigualdade na distribuição de renda, não se trata de uma pobreza temporária ou residual, daí o caráter apenas paliativo das políticas sociais focalizadas nos mais pobres; 7) a magnitude desta pobreza tem crescido, dado que o número de pobres vem aumentando, apesar da pobreza estar diminuindo proporcionalmente em relação ao total da população; 8) esta redução em termos percentuais tem sido produto do crescimento econômico e não de políticas redistributivas.
Na verdade, desconhecemos qualquer tipo de política redistributiva séria. Isto se torna evidente quando sabemos que não somente o 1% mais rico da população tem renda superior aos 50% mais pobres, o equivalente a 17% da renda nacional, como também possui mais de 50% dos ativos financeiros e quase metade dos ativos físicos, incluindo mais de 60% das terras e 85% do patrimônio líquido das empresas, totalizando 53% do estoque líquido de riqueza privada do país. Ou seja, se a concentração de renda é grande, a concentração de riqueza é maior ainda.
Ora, se o Brasil está reduzindo a pobreza - em termos percentuais, é bom frisar - isto se deve ao crescimento econômico, ou seja, ao trabalho da população brasileira ao longo dos anos. São os próprios pobres que estão pagando a conta da erradicação da pobreza. Trabalho árduo, sem dúvida. Principalmente demorado: com um crescimento do PIB contínuo e sustentado em 2% ao ano, levaríamos 120 anos para erradicar apenas a pobreza extrema (indigência). Na década de 90, o crescimento médio da economia brasileira foi de 1,73%. Reparem no que digo: com um crescimento semelhante ao da década de 90 levaríamos mais de 120 anos para alçar à categoria de "pobres" os mais de 20 milhões de brasileiros que podem ser classificados como "indigentes". Não creio ser necessário fazer a conta de quanto tempo levaríamos para tirar da categoria de "pobres" 50 milhões de brasileiros para desaconselhar o crescimento do PIB como único caminho possível para erradicar a pobreza.
É preciso redistribuir renda neste país. Diminuir a desigualdade na distribuição de renda é fundamental para diminuir a pobreza no Brasil. Sem redistribuição de renda e riqueza a erradicação da pobreza é uma quimera. Nada mais falso do que a afirmação de que o crescimento econômico vai erradicar a miséria. Crescimento econômico é sempre bem vindo, mas para erradicar a pobreza é preciso redistribuir renda. Dito de outra forma: no seu combate cotidiano contra a miséria os pobres trabalham sem sucesso. Não há no horizonte a mínima possibilidade de superarem conjuntamente a pobreza sem que haja um processo de redistribuição de renda.
Mas, segundo a sabedoria do senhor Setúbal, a classe média não tem mais condições de pagar impostos e os ricos são muito difíceis de tributar. Como então os pobres podem sair da situação em que se meteram? Vontade de sair dessa situação eles têm, pois trabalham todos os dias para o Brasil crescer. Mas agora sabemos que é um esforço infrutífero. Crescer só não basta. É preciso redistribuir. Mas como redistribuir, se a carga de impostos está no limite e a capacidade da classe média de pagar suas próprias contas também? Como redistribuir se é muito difícil tributar os ricos?
Trata-se de um enigma difícil de resolver, pois, vejam bem, os pobres não podem pagar a conta, a classe média não quer pagar a conta e os ricos, bom, os ricos são muito difíceis de tributar. Temos uma oportunidade de uma reforma tributária à nossa frente, mas os pobres não têm recursos para aportar, a classe média já não agüenta mais tanto imposto e os ricos são muito difíceis de tributar. O 1% mais rico da população brasileira, aquelas 400.000 famílias ou 1,5 milhão de pessoas que detém 17% da renda nacional, 50% dos ativos financeiros, mais da metade dos ativos físicos, incluindo aí 60% das terras e 85% do patrimônio líquido das empresas, totalizando 53% do estoque líquido de riqueza privada do país, é muito difícil mesmo de tributar. Como então redistribuir renda para acabar de vez com a pobreza, o que todos nós queremos? Sim, porque há consenso de que é preciso acabar com a pobreza. Há consenso também de que para acabar com a miséria, além de crescer economicamente, é preciso redistribuir. Claro. Não há dúvida. Mas como?
Sinceramente, creio que todos nós estamos paralisados diante da dificuldade da situação. Não se pode responsabilizar mais os pobres, por razões óbvias. Não se pode exigir da classe média um sacrifício que ela não está em condições de fazer. Também não podemos tributar os ricos porque é muito difícil. Não dá mesmo. Como diria Lênin, que fazer? Lênin, como sabemos, tinha suas dúvidas. Nós não. Nós queremos decididamente erradicar a pobreza. Recapitulemos. O Brasil não pode mais conviver com 50 milhões de pobres. Para acabar com a pobreza é preciso redistribuir a renda e a riqueza. Crescer só não adianta. Os pobres lutam todos os dias para que este Brasil cresça e eles possam sair do círculo perverso da miséria e estamos onde estamos. A classe média, coitada, não consegue pagar mais impostos. Os ricos? Ah, é muito difícil tributar os ricos. Resultado do sábio raciocínio: a classe média e os ricos não querem pagar para que os pobres atinjam um nível maior de desenvolvimento. Realmente, estamos sem saída. Prestemos então nossos tributos ao aniversariante Olavo Setúbal. Tarefa difícil, pois é muito difícil tributar os ricos.
- Luis Estenssoro, 37, é doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo.
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