A defesa da Amazônia e a alienação da mídia
22/06/2004
- Opinión
"Uma notícia tá chegando lá do interior
Não deu rádio, no jornal ou na televisão
Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil
Não vai fazer deste lugar um bom país" (Milton Nascimento e Fernando Brant) É curiosa a relação da mídia nacional e internacional com a Amazônia. Há enorme capacidade de descrever suas riquezas, de apresentar dados comparativos surpreendentes, dimensionando um potencial enorme de possíveis soluções para grandes problemas sociais a partir daquele tesouro. Suas descrições encantam o mundo, de tal modo a provocar um sentimento, aparentemente justo e generoso, de que a Amazônia é patrimônio da humanidade, como se por detrás desta fórmula que supõe "uma vaga responsabilidade coletiva" não se exercitassem ideologias e iniciativas de parte poderosos interesses mundiais, com voracidade e capacidade suficientes para anexar este vasto território, submetendo sua população e privatizando/desnacionalizando recursos tais como água, biodiversidade, nióbio, silício, petróleo, ouro, manganês, alumínio. Frente a esta possibilidade que se projeta como real, olhando a história de pilhagens e rapinas territoriais das grandes potências, desvenda-se a incapacidade da mídia brasileira, sintonizada com interesses supra-nacionais, em cumprir minimamente o seu papel de defensora dos valores da brasilidade, da cultura, da nacionalidade, entre os quais desponta inquestionavelmente a integridade territorial. Esta conduta da mídia pode ser explicada como uma das expressões do que o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães entende como vulnerabilidade ideológica, a seu ver "estreitamente relacionada com a crescente hegemonia cultural americana na sociedade brasileira, que se exerce em especial através do produto audiovisual, veiculado pela televisão e pelo cinema, articulado com a imprensa o disco e o rádio"(1). No dia em que a União Soviética foi invadida pela máquina de guerra nazista, em junho de 1941, a manchete do Pravda era sobre a descoberta de um novo componente astronômico. Os oficiais do Exército Vermelho que advertiram Stalin para uma eminente intervenção nazista foram punidos como agentes do trotskismo e sabotadores do acordo de não-intervenção selado entre Hitler-Stalin, em 1939, e muitos deles fuzilados. Um terço da frota aérea soviética foi destruída em terra, indicador de que não se preveniu, porque não se acreditava na intervenção alemã. Neste episódio, não se tratava exatamente da mesma vulnerabilidade ideológica que registramos aqui, fruto talvez de uma obtusidade política expressa na credulidade frente ao tal acordo, apesar da desenvoltura com que o nazismo se movimentava e os sinais bem nítidos do que preparava. Diferenças à parte, distinções de etapas históricas e de atores, temos, mesmo assim, sinais de que algo de sinistro se trama contra a Amazônia, muito embora uma atitude crédula da mídia frente aos valores emanados dos países hegemônicos a impeça de oferecer à sociedade uma visão real sobre a gravidade dos fatos. Um choque de realismo informativo é absolutamente antagônico com a linha editorial de vassalagem diante dos valores do neoliberalismo, tratados como entes sagrados por uma mídia agora ainda mais vulnerável ao controle externo, graças à emenda constitucional que permitiu a entrada do capital estrangeiro no setor. Se controle já havia via anunciantes internacionais que dominam o mercado publicitário, agora, com a abertura aos trustes da mídia mundial, ainda que supostamente limitada a 30 por cento do capital, permitir-se-á o controle absoluto. O inexplicável é que toda esta operação neoliberal teve o apoio do PT e do PC do B! Com esta base de sustentação financeira, não é difícil entender a atitude da mídia frente a alterações tão importantes na economia brasileira, muito menos que não esteja disposta a explicar à sociedade a relação existente entre a transferência de 16 milhões de hectares de território brasileiro (a maior parte na Amazônia), já repassados ao capital externo via privatização da Vale do Rio Doce e a abertura da mídia ao capital externo com o apoio de segmentos da esquerda, tal como o Fórum Nacional de Democratização da Comunicação, que defendeu a abertura ao capital externo através da Lei da TV a Cabo, juntamente com os parlamentares petistas e comunistas. Sinais Amazônia é a terceira palavra mais citada em todo o mundo tamanho o interesse da mídia internacional, onde tem freqüência elevada. O interesse humanista de organizações não- governamentais estrangeiras pelos índios amazônicos é inversamente proporcional ao interesse das mesmas pelos contingentes de pobres no Nordeste, ou pelos camponeses na própria Amazônia. A Amazônia registra uma das mais baixas densidades demográficas do mundo, mas, apesar disso, ali corre muito sangue pela posse da terra, na luta pela reforma agrária, em particular no Pará. Enquanto isso, cresce o controle de bancos, mega-empresários e madeireiras sobre vastas regiões territoriais da Amazônia, não sem o uso de expedientes ilegais, incluindo a grilagem de terras, a falsificação cartorial, o trabalho escravo etc. Sobre isto há silêncio das ONGs: sua preocupação volta-se para a preservação da floresta ou para o apoio a teses de autodeterminação de nações indígenas. Há diferenças de tratamento pela mídia entre um tema e outro. Na mídia internacional, episódios como suposto massacre de índios yanomâmis, na realidade um conflito sem grandes proporções ocorrido em território venezuelano, ou o incêndio em Roraima, encontram repercussão máxima, cobertura prioritária, sempre acompanhadas de mensagens subliminares ou explícitas, de que cabe aos poderes mundiais o papel de colocar "uma nova ordem na região". Qual ordem e quem são os poderes? Na mídia nacional, registra-se uma hostilidade sistemática para com movimentos sociais que pugnam legitimamente contra uma estrutura agrária arcaica, e uma benevolência extrema para com as oligarquias, seus privilégios e seus crimes de lesa patrimônio público, sempre superados com novas e ilimitadas formas de assaltos aos cofres públicos. A dose de sensacionalismo varia, mas está presente. O que não se altera é a ausência no comportamento da mídia, de um conteúdo que expresse brasilidade, civismo, noção de conjunto sobre os riscos corridos pelos países possuidores de riquezas naturais estratégicas. Cobiça confessa ou paranóia? Em 1919, o presidente Epitácio Pessoa foi peitado pelo presidente dos EUA, Woodrow Wilson, exigindo-lhe que promovesse a internacionalização da Amazônia. Mais recentemente, em 1981, o Conselho Mundial das Igrejas Cristãs expediu declaração em que considerava a Amazônia "um patrimônio da humanidade", acrescentando que a posse dessa imensa área pelos países sul-americanos é "meramente circunstancial". Margareth Thathcer, chefe-de-estado britânica, afirmou em 1983 que "se os países subdesenvolvidos não conseguem pagar suas dívidas externas, que vendam suas riquezas, seus territórios e suas fábricas". Al Gore, ex-vice-presidente dos EUA, afirmou em 89 que "o Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia". No mesmo ano, o Presidente José Sarney, convidado à reunião do Grupo G7, testemunhou ter recebido proposta das grandes potências para ceder determinados direitos para a exploração de ecossistemas na Amazônia(2). Mais claro que o Primeiro-Ministro da Inglaterra, John Major, ainda não houve, quando afirmou que "as nações desenvolvidas devem estender os domínios da lei ao que é comum de todos do mundo". E acrescentou, com ainda maior gravidade: "As campanhas de ecologistas internacionais a que estamos assistindo, o passado e o presente, sobre a região amazônica, estão deixando a fase propagandística para dar inicio a uma fase operativa que pode definitivamente ensejar intervenções militares diretas sobre a região". Poucos anos antes desta declaração, as forças armadas da Inglaterra haviam intervido nas Malvinas. Nova rodada de ameaças e confissões se deu mais recentemente. Kissinger, em 1994, asseverou que "Os países industrializados não poderão viver da maneira como existiram até hoje se não tiverem à sua disposição os recursos naturais não renováveis no planeta. Terão que montar um sistema de pressões e constrangimentos garantidores da consecução dos seus intentos". Foi seguido por declarações do General Patrick Hugles, chefe do Órgão Central de Informações das Forças Armadas dos EUA:" Caso o Brasil resolva fazer uso da Amazônia , pondo em risco o meio ambiente nos Estados Unidos, temos que estar prontos para interromper este processo imediatamente". Por fim, Madeleine Allbright, ex-secretária de Estado dos Eua, lembrou que "quando as questões são de meio ambiente, não existem fronteiras". Diante de tantos e tão graves sinais de cobiça confessa, é mais do que estranha a alienação da mídia sobre este quadro, especialmente quando tenta também passar uma imagem de paranóia a todos aqueles venham a questionar, diante de um quadro de crescente hostilidade e intervencionismo militar em escala mundial, os riscos de uma intervenção estrangeira na Amazônia. Por isto mesmo, é sensível a conclusão a que chega o General Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, ex-comandante militar da Amazônia, em depoimento prestado na Câmara dos Deputados: "A principal ameaça sobre a Amazônia é a campanha que se conduz no âmbito internacional de forma sistemática, insidiosa e permanente, buscando convencer a opinião pública internacional de que as questões da região são do interesse da humanidade e não do Brasil" O general advertiu ainda para o alto grau de elaboração da campanha, que atinge todos os públicos, de forma direta ou subliminar, seja através de revistas em quadrinhos, filmes infantis, filmes de guerra etc. Como exemplo, mostrou neste depoimento cartões postais e camisetas onde estampam os dizeres" Figth for the Forest! Burn a brazilian" (Lute pela floresta! Mate um brasileiro!)(2) Che Guevara e Ho-Chi-Mim na Amazônia. Muito embora sejam fartos e vastos os sinais de que a cobiça sistemática sobre a Amazônia pode passar para uma nova fase onde se registrem operações concretas de intervenção, a exemplo que nos últimos anos vem ocorrendo em vários países com riquezas naturais significativas (Yugoslávia, Iraque, Afeganistão, Timor Leste etc), até o momento não se registra da parte da mídia uma atitude construtiva para fomentar uma reflexão da Nação acerca das ameaças que nos cercam. Tais ameaças agravaram-se nos últimos tempos após a eleição de George W. Bush e dos mal explicados atentados de 11 de setembro, em Nova York, supostamente de responsabilidade de organização terrorista que foi sistematicamente apoiada material e financeiramente pela CIA desde o início dos anos 80. A política externa norte-americana já ultrapassou a linha dos procedimentos de "defesa de nossas matérias-primas", ainda que elas estejam localizados em território alheio, para ação prática de instalação de dezenas bases militares em território latino- americano, inclusive com a presença militar já na região amazônica pertencente à Colômbia, Equador e Peru. Neste país andino, chega-se ao requinte de entregar o controle do espaço aéreo a comando militar norte-americano. A mídia, da mesma forma que "não consegue" difundir informações sobre tantos e tão relevantes indícios de uma espécie de preparação de assalto à Amazônia - lembrando a obtusa imprensa soviética de 1941 - também é incapaz de identificar mudanças substantivas na conjuntura política que podem significar que, paradoxalmente à alienação midiática, setores importantes da sociedade tomam consciência da gravidade da situação. Prova mais evidente desta consciência da ameaça está na preparação dos militares brasileiros pelo Comando Militar da Amazônia, em cursos de técnicas de guerrilha nos quais são empregados textos de Ernesto Che Guevara, Ho Chi Min e do General Giap. Surpreendente, mas é exatamente este o conteúdo das aulas teóricas no recém criado Centro de Treinamento de Guerra na Selva. Mais surpreendente ainda é o claro sentido de que esta preparação de guerra de guerrilhas leva em conta que o inimigo mais provável seja exatamente o aliado histórico tradicional, os Estados Unidos. De acordo com matéria do jornalista português Miguel Urbano Rodrigues, publicada na Revista Sem-Terra (3), um grupo de parlamentares foi convidado a conhecer o Centro instalado em Manaus, e nada menos que o ex- guerrilheiro José Genoíno, hoje parlamentar, foi convidado a discursar perante um "batalhão de guerrilheiros", agora parte integrante do Comando Militar da Amazônia. Não há grande divulgação de fatos tão marcantes na mídia brasileira. Do mesmo modo, a instalação do SIVAM que pode ser entendida como uma clara resposta às crescentes operações militares norte- americanas na Colômbia, considerada pelos militares brasileiros como uma intervenção indireta na Amazônia, jamais mereceu pela mídia o destaque sobre seus principais objetivos, muito além do controle sobre incêndios na floresta, permitindo o rastreamento do volumoso fluxo de vôos a serviço do narcotráfico. Entretanto, de nada adiantará a plena operação do SIVAM se não for regulamentada legislação que permite a interceptação de avião ilegal, atualmente impedida por pressão dos EUA, que desejam que as operações aéreas na região sejam controladas pela Drug Enforcement Agency (DEA), como ocorre no Peru, com notória participação da CIA. Espantosa a situação vivida hoje pelo Brasil: possui as condições técnicas e militares para deter o fluxo aéreo ilegal do tráfico de drogas e de armas, ou talvez de aeronaves destinadas à operações de biopirataria, ou mesmo, por que não? , de guerra bacteriológica. Mas, em linha de coerência com a submissão à política neoliberal das privatizações, de submissão ao FMI, não há regulamentação de uma lei já aprovada, o que torna na prática as fronteiras brasileiras, em boa medida, sem controle do Estado, portanto, com soberania limitada. É na prática uma extensão da política econômica de destruição do estado à esfera da redução de nossa capacidade de defesa. Como contrapartida, há o crescente poderio militar norte-americano, a multiplicação de seu orçamento militar, a expansão de suas operações militares fora o território, e até mesmo o anúncio de que exige imunidade caso dispositivos militares norte-americanos realizem operações em território alheio. Nada disto interessa á mídia, cuja programação, em grande parte está hoje dedicada à baixaria organizada, ao embrutecimento cultural, à desinformação sistemática da sociedade, envolvendo-a numa atmosfera que inibe a compreensão da grave situação nacional e internacional a que estamos inevitavelmente ligados. É notório que os militares brasileiros, embora demonstrem realismo ao decidirem-se pela preparação de uma forma de defesa já experimentada com sucesso pelos vietnamitas em confronto com a força militar norte-americana, ainda restringem o debate a um círculo militar. É paradoxal a situação: os militares preparam- se para resistir a uma intervenção armada de um país que é exatamente o mais favorecido pelas políticas econômicas praticadas nos últimos anos. Os mesmos militares que durante décadas sustentaram um regime ditatorial que favoreceu, de modo acintoso, os interesses econômicos norte-americanos, são agora portadores de uma súbita mudança de consciência, reconhecendo, sobretudo pela dura lição dos anos pós-guerra-fria, que o gigante do norte não se prepara para uma convivência pacífica com a comunidade internacional. Ao contrário, a ameaça, a agride com sucessivos exemplos de prepotência, o que permite prever como agirá quando a escassez de matérias-primas, em particular suas reservas de petróleo, em fase de esgotamento, minguarem em definitivo. Segundo especialistas, isto não está longe de acontecer. As ameaças ao Iraque e as manobras para a desestabilização da Venezuela dizem muito sobre isto. Programa Os vietnamitas venceram a poderosa máquina de guerra norte- americana porque, além do apoio da URSS, realizaram uma guerra de todo o povo, envolvido num programa de transformações sociais para expulsar o invasor, mas, ao mesmo tempo, alterar as estruturas injustas deixadas pelo colonialismo no Vietnã. Se os militares brasileiros baseiam-se no exemplo vietnamita, nas guerras de guerrilhas, também é necessário notar que, simultaneamente, se trava uma guerra social. Os militares conhecem diretamente a situação de penúria em que vivem as comunidades na Amazônia como resultado do debilitamento do poder público. E sabem que a soberania nacional não pode ser sustentada se não se der também um fim à política de entreguismo do patrimônio público, esperança que o voto popular em Lula indicou. E para tal, é preciso também recuperar as riquezas desnacionalizadas, tais como as imensas jazidas de nióbio e silício da Vale do Rio Doce, por exemplo, transferidas de modo ilegal e a preços de doação para empresas transnacionais. É definitivamente imperativo que se realize uma reforma agrária, com alteração do modelo e da política agrícola, combinada com uma agressiva política de aproveitamento da energia proveniente da biomassa, da exuberância dos óleos vegetais combustíveis da região, o que proporcionaria, ao mesmo tempo, uma combinação de produção agrícola e energética, no plano econômico, e no plano sócio-político, uma necessária coordenação de forças sociais tais como o MST e os militares, com capacidade de gerar um núcleo de unidade do povo para enfrentar uma intervenção militar internacional que não deve ser descartada de modo algum. Estes seriam apenas tópicos de um programa mais amplo que requer o envolvimento das populações ribeirinhas, dos seringueiros, dos indígenas em torno de um projeto popular para o Brasil que democratize as riquezas, as terras, a cultura, a informação e eleve socialmente os níveis de vida de uma massa imensa hoje abandonada ao azar de verem minguar todas as políticas públicas para aquela região. A eleição de Lula, bem como a do coronel Lúcio Gutierrez no Equador, criam um ambiente político mais favorável á coordenação de países, junto com a Venezuela, com disposição para resistir aos ditames do FMI, à AlCA, à instalação de bases militares. Tal alteração política requer também um outro modelo de comunicação, no qual sejam fortalecidos os veículos nas mãos do poder público, que podem atuar de modo coordenado com uma radiodifusão comunitária, consolidada e expandida, de modo tal que os governos não sejam reféns de conglomerados de comunicação controlados perigosamente pelos magnatas da mídia, cujo vínculo econômico e político com a indústria bélica mundial são conhecidos. É necessário construir um modelo de mídia a favor do Brasil e dos brasileiros, capaz da informação veraz e eivada de responsabilidade social, e imbuído do dever de realizar uma reeducação dos sentidos na sociedade, de valorizar o humanismo, a solidariedade, a brasilidade e a elevação da cidadania. * Beto Almeida e Jornalista 10.12.2002 Notas (1) "Por uma política cultural eficaz", de Samuel Pinheiro Guimarães. (2) Exposição do General Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, na CPI da Funai, na Câmara dos Deputados (3) Artigo intitulado "Militares Brasileiros treinam guerrilha para defender a Amazônia", de Miguel Urbano Rodrigues, publicado na Revista Sem-Terra, número 15, maio/junho de 2002.
Não deu rádio, no jornal ou na televisão
Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil
Não vai fazer deste lugar um bom país" (Milton Nascimento e Fernando Brant) É curiosa a relação da mídia nacional e internacional com a Amazônia. Há enorme capacidade de descrever suas riquezas, de apresentar dados comparativos surpreendentes, dimensionando um potencial enorme de possíveis soluções para grandes problemas sociais a partir daquele tesouro. Suas descrições encantam o mundo, de tal modo a provocar um sentimento, aparentemente justo e generoso, de que a Amazônia é patrimônio da humanidade, como se por detrás desta fórmula que supõe "uma vaga responsabilidade coletiva" não se exercitassem ideologias e iniciativas de parte poderosos interesses mundiais, com voracidade e capacidade suficientes para anexar este vasto território, submetendo sua população e privatizando/desnacionalizando recursos tais como água, biodiversidade, nióbio, silício, petróleo, ouro, manganês, alumínio. Frente a esta possibilidade que se projeta como real, olhando a história de pilhagens e rapinas territoriais das grandes potências, desvenda-se a incapacidade da mídia brasileira, sintonizada com interesses supra-nacionais, em cumprir minimamente o seu papel de defensora dos valores da brasilidade, da cultura, da nacionalidade, entre os quais desponta inquestionavelmente a integridade territorial. Esta conduta da mídia pode ser explicada como uma das expressões do que o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães entende como vulnerabilidade ideológica, a seu ver "estreitamente relacionada com a crescente hegemonia cultural americana na sociedade brasileira, que se exerce em especial através do produto audiovisual, veiculado pela televisão e pelo cinema, articulado com a imprensa o disco e o rádio"(1). No dia em que a União Soviética foi invadida pela máquina de guerra nazista, em junho de 1941, a manchete do Pravda era sobre a descoberta de um novo componente astronômico. Os oficiais do Exército Vermelho que advertiram Stalin para uma eminente intervenção nazista foram punidos como agentes do trotskismo e sabotadores do acordo de não-intervenção selado entre Hitler-Stalin, em 1939, e muitos deles fuzilados. Um terço da frota aérea soviética foi destruída em terra, indicador de que não se preveniu, porque não se acreditava na intervenção alemã. Neste episódio, não se tratava exatamente da mesma vulnerabilidade ideológica que registramos aqui, fruto talvez de uma obtusidade política expressa na credulidade frente ao tal acordo, apesar da desenvoltura com que o nazismo se movimentava e os sinais bem nítidos do que preparava. Diferenças à parte, distinções de etapas históricas e de atores, temos, mesmo assim, sinais de que algo de sinistro se trama contra a Amazônia, muito embora uma atitude crédula da mídia frente aos valores emanados dos países hegemônicos a impeça de oferecer à sociedade uma visão real sobre a gravidade dos fatos. Um choque de realismo informativo é absolutamente antagônico com a linha editorial de vassalagem diante dos valores do neoliberalismo, tratados como entes sagrados por uma mídia agora ainda mais vulnerável ao controle externo, graças à emenda constitucional que permitiu a entrada do capital estrangeiro no setor. Se controle já havia via anunciantes internacionais que dominam o mercado publicitário, agora, com a abertura aos trustes da mídia mundial, ainda que supostamente limitada a 30 por cento do capital, permitir-se-á o controle absoluto. O inexplicável é que toda esta operação neoliberal teve o apoio do PT e do PC do B! Com esta base de sustentação financeira, não é difícil entender a atitude da mídia frente a alterações tão importantes na economia brasileira, muito menos que não esteja disposta a explicar à sociedade a relação existente entre a transferência de 16 milhões de hectares de território brasileiro (a maior parte na Amazônia), já repassados ao capital externo via privatização da Vale do Rio Doce e a abertura da mídia ao capital externo com o apoio de segmentos da esquerda, tal como o Fórum Nacional de Democratização da Comunicação, que defendeu a abertura ao capital externo através da Lei da TV a Cabo, juntamente com os parlamentares petistas e comunistas. Sinais Amazônia é a terceira palavra mais citada em todo o mundo tamanho o interesse da mídia internacional, onde tem freqüência elevada. O interesse humanista de organizações não- governamentais estrangeiras pelos índios amazônicos é inversamente proporcional ao interesse das mesmas pelos contingentes de pobres no Nordeste, ou pelos camponeses na própria Amazônia. A Amazônia registra uma das mais baixas densidades demográficas do mundo, mas, apesar disso, ali corre muito sangue pela posse da terra, na luta pela reforma agrária, em particular no Pará. Enquanto isso, cresce o controle de bancos, mega-empresários e madeireiras sobre vastas regiões territoriais da Amazônia, não sem o uso de expedientes ilegais, incluindo a grilagem de terras, a falsificação cartorial, o trabalho escravo etc. Sobre isto há silêncio das ONGs: sua preocupação volta-se para a preservação da floresta ou para o apoio a teses de autodeterminação de nações indígenas. Há diferenças de tratamento pela mídia entre um tema e outro. Na mídia internacional, episódios como suposto massacre de índios yanomâmis, na realidade um conflito sem grandes proporções ocorrido em território venezuelano, ou o incêndio em Roraima, encontram repercussão máxima, cobertura prioritária, sempre acompanhadas de mensagens subliminares ou explícitas, de que cabe aos poderes mundiais o papel de colocar "uma nova ordem na região". Qual ordem e quem são os poderes? Na mídia nacional, registra-se uma hostilidade sistemática para com movimentos sociais que pugnam legitimamente contra uma estrutura agrária arcaica, e uma benevolência extrema para com as oligarquias, seus privilégios e seus crimes de lesa patrimônio público, sempre superados com novas e ilimitadas formas de assaltos aos cofres públicos. A dose de sensacionalismo varia, mas está presente. O que não se altera é a ausência no comportamento da mídia, de um conteúdo que expresse brasilidade, civismo, noção de conjunto sobre os riscos corridos pelos países possuidores de riquezas naturais estratégicas. Cobiça confessa ou paranóia? Em 1919, o presidente Epitácio Pessoa foi peitado pelo presidente dos EUA, Woodrow Wilson, exigindo-lhe que promovesse a internacionalização da Amazônia. Mais recentemente, em 1981, o Conselho Mundial das Igrejas Cristãs expediu declaração em que considerava a Amazônia "um patrimônio da humanidade", acrescentando que a posse dessa imensa área pelos países sul-americanos é "meramente circunstancial". Margareth Thathcer, chefe-de-estado britânica, afirmou em 1983 que "se os países subdesenvolvidos não conseguem pagar suas dívidas externas, que vendam suas riquezas, seus territórios e suas fábricas". Al Gore, ex-vice-presidente dos EUA, afirmou em 89 que "o Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia". No mesmo ano, o Presidente José Sarney, convidado à reunião do Grupo G7, testemunhou ter recebido proposta das grandes potências para ceder determinados direitos para a exploração de ecossistemas na Amazônia(2). Mais claro que o Primeiro-Ministro da Inglaterra, John Major, ainda não houve, quando afirmou que "as nações desenvolvidas devem estender os domínios da lei ao que é comum de todos do mundo". E acrescentou, com ainda maior gravidade: "As campanhas de ecologistas internacionais a que estamos assistindo, o passado e o presente, sobre a região amazônica, estão deixando a fase propagandística para dar inicio a uma fase operativa que pode definitivamente ensejar intervenções militares diretas sobre a região". Poucos anos antes desta declaração, as forças armadas da Inglaterra haviam intervido nas Malvinas. Nova rodada de ameaças e confissões se deu mais recentemente. Kissinger, em 1994, asseverou que "Os países industrializados não poderão viver da maneira como existiram até hoje se não tiverem à sua disposição os recursos naturais não renováveis no planeta. Terão que montar um sistema de pressões e constrangimentos garantidores da consecução dos seus intentos". Foi seguido por declarações do General Patrick Hugles, chefe do Órgão Central de Informações das Forças Armadas dos EUA:" Caso o Brasil resolva fazer uso da Amazônia , pondo em risco o meio ambiente nos Estados Unidos, temos que estar prontos para interromper este processo imediatamente". Por fim, Madeleine Allbright, ex-secretária de Estado dos Eua, lembrou que "quando as questões são de meio ambiente, não existem fronteiras". Diante de tantos e tão graves sinais de cobiça confessa, é mais do que estranha a alienação da mídia sobre este quadro, especialmente quando tenta também passar uma imagem de paranóia a todos aqueles venham a questionar, diante de um quadro de crescente hostilidade e intervencionismo militar em escala mundial, os riscos de uma intervenção estrangeira na Amazônia. Por isto mesmo, é sensível a conclusão a que chega o General Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, ex-comandante militar da Amazônia, em depoimento prestado na Câmara dos Deputados: "A principal ameaça sobre a Amazônia é a campanha que se conduz no âmbito internacional de forma sistemática, insidiosa e permanente, buscando convencer a opinião pública internacional de que as questões da região são do interesse da humanidade e não do Brasil" O general advertiu ainda para o alto grau de elaboração da campanha, que atinge todos os públicos, de forma direta ou subliminar, seja através de revistas em quadrinhos, filmes infantis, filmes de guerra etc. Como exemplo, mostrou neste depoimento cartões postais e camisetas onde estampam os dizeres" Figth for the Forest! Burn a brazilian" (Lute pela floresta! Mate um brasileiro!)(2) Che Guevara e Ho-Chi-Mim na Amazônia. Muito embora sejam fartos e vastos os sinais de que a cobiça sistemática sobre a Amazônia pode passar para uma nova fase onde se registrem operações concretas de intervenção, a exemplo que nos últimos anos vem ocorrendo em vários países com riquezas naturais significativas (Yugoslávia, Iraque, Afeganistão, Timor Leste etc), até o momento não se registra da parte da mídia uma atitude construtiva para fomentar uma reflexão da Nação acerca das ameaças que nos cercam. Tais ameaças agravaram-se nos últimos tempos após a eleição de George W. Bush e dos mal explicados atentados de 11 de setembro, em Nova York, supostamente de responsabilidade de organização terrorista que foi sistematicamente apoiada material e financeiramente pela CIA desde o início dos anos 80. A política externa norte-americana já ultrapassou a linha dos procedimentos de "defesa de nossas matérias-primas", ainda que elas estejam localizados em território alheio, para ação prática de instalação de dezenas bases militares em território latino- americano, inclusive com a presença militar já na região amazônica pertencente à Colômbia, Equador e Peru. Neste país andino, chega-se ao requinte de entregar o controle do espaço aéreo a comando militar norte-americano. A mídia, da mesma forma que "não consegue" difundir informações sobre tantos e tão relevantes indícios de uma espécie de preparação de assalto à Amazônia - lembrando a obtusa imprensa soviética de 1941 - também é incapaz de identificar mudanças substantivas na conjuntura política que podem significar que, paradoxalmente à alienação midiática, setores importantes da sociedade tomam consciência da gravidade da situação. Prova mais evidente desta consciência da ameaça está na preparação dos militares brasileiros pelo Comando Militar da Amazônia, em cursos de técnicas de guerrilha nos quais são empregados textos de Ernesto Che Guevara, Ho Chi Min e do General Giap. Surpreendente, mas é exatamente este o conteúdo das aulas teóricas no recém criado Centro de Treinamento de Guerra na Selva. Mais surpreendente ainda é o claro sentido de que esta preparação de guerra de guerrilhas leva em conta que o inimigo mais provável seja exatamente o aliado histórico tradicional, os Estados Unidos. De acordo com matéria do jornalista português Miguel Urbano Rodrigues, publicada na Revista Sem-Terra (3), um grupo de parlamentares foi convidado a conhecer o Centro instalado em Manaus, e nada menos que o ex- guerrilheiro José Genoíno, hoje parlamentar, foi convidado a discursar perante um "batalhão de guerrilheiros", agora parte integrante do Comando Militar da Amazônia. Não há grande divulgação de fatos tão marcantes na mídia brasileira. Do mesmo modo, a instalação do SIVAM que pode ser entendida como uma clara resposta às crescentes operações militares norte- americanas na Colômbia, considerada pelos militares brasileiros como uma intervenção indireta na Amazônia, jamais mereceu pela mídia o destaque sobre seus principais objetivos, muito além do controle sobre incêndios na floresta, permitindo o rastreamento do volumoso fluxo de vôos a serviço do narcotráfico. Entretanto, de nada adiantará a plena operação do SIVAM se não for regulamentada legislação que permite a interceptação de avião ilegal, atualmente impedida por pressão dos EUA, que desejam que as operações aéreas na região sejam controladas pela Drug Enforcement Agency (DEA), como ocorre no Peru, com notória participação da CIA. Espantosa a situação vivida hoje pelo Brasil: possui as condições técnicas e militares para deter o fluxo aéreo ilegal do tráfico de drogas e de armas, ou talvez de aeronaves destinadas à operações de biopirataria, ou mesmo, por que não? , de guerra bacteriológica. Mas, em linha de coerência com a submissão à política neoliberal das privatizações, de submissão ao FMI, não há regulamentação de uma lei já aprovada, o que torna na prática as fronteiras brasileiras, em boa medida, sem controle do Estado, portanto, com soberania limitada. É na prática uma extensão da política econômica de destruição do estado à esfera da redução de nossa capacidade de defesa. Como contrapartida, há o crescente poderio militar norte-americano, a multiplicação de seu orçamento militar, a expansão de suas operações militares fora o território, e até mesmo o anúncio de que exige imunidade caso dispositivos militares norte-americanos realizem operações em território alheio. Nada disto interessa á mídia, cuja programação, em grande parte está hoje dedicada à baixaria organizada, ao embrutecimento cultural, à desinformação sistemática da sociedade, envolvendo-a numa atmosfera que inibe a compreensão da grave situação nacional e internacional a que estamos inevitavelmente ligados. É notório que os militares brasileiros, embora demonstrem realismo ao decidirem-se pela preparação de uma forma de defesa já experimentada com sucesso pelos vietnamitas em confronto com a força militar norte-americana, ainda restringem o debate a um círculo militar. É paradoxal a situação: os militares preparam- se para resistir a uma intervenção armada de um país que é exatamente o mais favorecido pelas políticas econômicas praticadas nos últimos anos. Os mesmos militares que durante décadas sustentaram um regime ditatorial que favoreceu, de modo acintoso, os interesses econômicos norte-americanos, são agora portadores de uma súbita mudança de consciência, reconhecendo, sobretudo pela dura lição dos anos pós-guerra-fria, que o gigante do norte não se prepara para uma convivência pacífica com a comunidade internacional. Ao contrário, a ameaça, a agride com sucessivos exemplos de prepotência, o que permite prever como agirá quando a escassez de matérias-primas, em particular suas reservas de petróleo, em fase de esgotamento, minguarem em definitivo. Segundo especialistas, isto não está longe de acontecer. As ameaças ao Iraque e as manobras para a desestabilização da Venezuela dizem muito sobre isto. Programa Os vietnamitas venceram a poderosa máquina de guerra norte- americana porque, além do apoio da URSS, realizaram uma guerra de todo o povo, envolvido num programa de transformações sociais para expulsar o invasor, mas, ao mesmo tempo, alterar as estruturas injustas deixadas pelo colonialismo no Vietnã. Se os militares brasileiros baseiam-se no exemplo vietnamita, nas guerras de guerrilhas, também é necessário notar que, simultaneamente, se trava uma guerra social. Os militares conhecem diretamente a situação de penúria em que vivem as comunidades na Amazônia como resultado do debilitamento do poder público. E sabem que a soberania nacional não pode ser sustentada se não se der também um fim à política de entreguismo do patrimônio público, esperança que o voto popular em Lula indicou. E para tal, é preciso também recuperar as riquezas desnacionalizadas, tais como as imensas jazidas de nióbio e silício da Vale do Rio Doce, por exemplo, transferidas de modo ilegal e a preços de doação para empresas transnacionais. É definitivamente imperativo que se realize uma reforma agrária, com alteração do modelo e da política agrícola, combinada com uma agressiva política de aproveitamento da energia proveniente da biomassa, da exuberância dos óleos vegetais combustíveis da região, o que proporcionaria, ao mesmo tempo, uma combinação de produção agrícola e energética, no plano econômico, e no plano sócio-político, uma necessária coordenação de forças sociais tais como o MST e os militares, com capacidade de gerar um núcleo de unidade do povo para enfrentar uma intervenção militar internacional que não deve ser descartada de modo algum. Estes seriam apenas tópicos de um programa mais amplo que requer o envolvimento das populações ribeirinhas, dos seringueiros, dos indígenas em torno de um projeto popular para o Brasil que democratize as riquezas, as terras, a cultura, a informação e eleve socialmente os níveis de vida de uma massa imensa hoje abandonada ao azar de verem minguar todas as políticas públicas para aquela região. A eleição de Lula, bem como a do coronel Lúcio Gutierrez no Equador, criam um ambiente político mais favorável á coordenação de países, junto com a Venezuela, com disposição para resistir aos ditames do FMI, à AlCA, à instalação de bases militares. Tal alteração política requer também um outro modelo de comunicação, no qual sejam fortalecidos os veículos nas mãos do poder público, que podem atuar de modo coordenado com uma radiodifusão comunitária, consolidada e expandida, de modo tal que os governos não sejam reféns de conglomerados de comunicação controlados perigosamente pelos magnatas da mídia, cujo vínculo econômico e político com a indústria bélica mundial são conhecidos. É necessário construir um modelo de mídia a favor do Brasil e dos brasileiros, capaz da informação veraz e eivada de responsabilidade social, e imbuído do dever de realizar uma reeducação dos sentidos na sociedade, de valorizar o humanismo, a solidariedade, a brasilidade e a elevação da cidadania. * Beto Almeida e Jornalista 10.12.2002 Notas (1) "Por uma política cultural eficaz", de Samuel Pinheiro Guimarães. (2) Exposição do General Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, na CPI da Funai, na Câmara dos Deputados (3) Artigo intitulado "Militares Brasileiros treinam guerrilha para defender a Amazônia", de Miguel Urbano Rodrigues, publicado na Revista Sem-Terra, número 15, maio/junho de 2002.
https://www.alainet.org/es/node/110124?language=en
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