A grande revolução negra
26/12/2003
- Opinión
Quem olha hoje para o Haiti, miserável, degradado,
dificilmente poderá pensar que o país foi o cenário da "única
revolta de escravos bem-sucedida da História". No momento da
revolução francesa, em 1789, a colônia francesa das Índias
Ocidentais de Santo Domingo representava dois terços do
comércio exterior da Franca e era o maior mercado individual
para o tráfico negreiro europeu. Era a maior colônia do
mundo, o orgulho da França e a inveja de todas as outras
nações imperialistas. Sua estrutura era sustentada pelo
trabalho de meio milhão de escravos.
Dois anos após a Revolução Francesa, com seus reflexos em
Santo Domingo, os escravos se revoltaram. Numa luta que se
estendeu por 12 anos, eles derrotaram os brancos locais e os
soldados da monarquia francesa, debelando também uma invasão
espanhola, uma tentativa de invasão britânica com cerca de
sessenta mil homens e uma expedição francesa de tamanho
similar comandada pelo cunhado de Napoleão. A derrota desta
expedição resultou no estabelecimento do Estado negro do
Haiti, que completou dia primeiro de janeiro deste ano, dois
séculos.
A grande liderança desse movimento foi Toussaint L'Ouverture.
C.L. R. James, ensaísta nascido na Jamaica, que viveu na
Inglaterra e nos Estados Unidos, do começo do século até sua
morte, em 1989, autor do principal estudo sobre a revolução
haitiana – "Os jacobinos negros" (Boitempo Editorial) -, diz
que "entre 1789 e 1815, com a única exceção do próprio
Bonaparte, nenhuma outra figura isoladamente foi, no cenário
da História, tão bem-dotada quanto este negro, que havia
sido escravo até os 45 anos de idade". Mas, como diz James,
"não foi Toussaint que fez a revolução, foi a revolução que
fez Toussaint".
Foi naquela ilha que os colonizadores europeus pisaram pela
primeira vez na América. Assim que desembarcou na ilha de
Santo Domingo, buscando ouro, Cristóvão Colombo, os nativos
indicaram-lhe o Haiti, uma ilha do tamanho da Irlanda. (O
nome Haiti vem do vocábulo de origem caribenha Ahti, que
significa "montanha".) Quando um dos navios de Colombo
naufragou, os índios ajudaram a recuperar tudo e nada foi
perdido. Os espanhóis, considerados o povo mais avançado da
Europa naquela época, anexaram a ilha, introduziram o
cristianismo, o trabalho forçado nas minas, o assassinato, o
estupro, os cães de guarda, doenças desconhecidas e a fome
forjada, pela destruição dos cultivos párea matar os rebeldes
de fome. A população nativa ficou reduzida de cerca de meio
milhão ou talvez até um milhão a sessenta mil em quinze anos.
Foi diante desse quadro de dizimação dos povos indígenas que
foram importados os negros da África para serem escravos no
empreendimento colonial europeu. Uniam-se os dois maiores
massacres que a humanidade já conheceu – o massacre dos povos
indígenas e a escravidão negra – na chegada do capitalismo às
Américas, revelando as promessas que o continente poderia
esperar da Europa "civilizada".
A revolução haitiana foi o maior movimento negro de rebeldia
contra a exploração e a dominação colonial das Américas.
Mesmo com o assassinato de Toussaint L'Ouverture pelos
franceses – que haviam substituído os decadentes espanhóis
como colonizadores da ilha -, a revolução triunfou e fez
realidade, contra a França, os ideais de liberdade, igualdade
e fraternidade. A abolição da escravidão, não contemplada
pelos revolucionários de 1789, foi conquistada pelos
"jacobinos negros" do Haiti.
Sua derrota e massacre posteriores deram lugar ao quadro de
miséria a abandono que voltou a viver o Haiti e que persiste
até hoje, como o país mais pobre das Américas. Tivessem
triunfado plenamente os ideais de Toussaint L'Ouverture,
outro seria o destino do Haiti. Mas sua gesta confirma a
capacidade dos negros de afirmar sua cidadania e ser dono dos
seus próprios destinos.
https://www.alainet.org/es/node/109023
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