A reunião de Cancun e o nacionalismo de fazendeiro
28/09/2003
- Opinión
Acabo de receber mensagem, que está sendo amplamente divulgada na internet
pela Secretaria de Comunicações do Palácio do Planalto, na qual se diz que o
Brasil "ergueu a cabeça" na Reunião Ministerial da OMC em Cancún.
Num passe de mágica, o Secretário de Comunicação Luís Gushiken,
pretende transformar o governo Lula em um governo "nacionalista" ou
"antiimperialista" - evidentemente sem usar essa expressão que está vetada pelo
mago Duda Mendonça. Juntamente com Gushiken, muitos já começam a aplaudir a
"grande iniciativa" do governo Lula na área do comércio internacional. Vamos
com calma. Na verdade, Lula está, em mais esse aspecto, simplesmente dando
continuidade à política de FHC.
I
Fernando Henrique Cardoso iniciou os contatos sul-sul sempre com o objetivo de
pressionar os países imperialistas para que eles suspendessem o subsídio à
agricultura deles e as tarifas e barreiras não-tarifárias que impuseram aos
produtos agrícolas dos países periféricos. A novidade introduzida pelo governo
Lula diz respeito aos métodos de luta - ele articulou uma aliança dos
exportadores de grão, o G22 - mas o conteúdo da política continua o mesmo. Se
essa política nunca foi considerada pela esquerda uma política nacional ou
antiimperialista, por que deveria sê-lo agora?
Alguns Estados do G22 possuem uma política externa autônoma, mas não é
o caso do Brasil. A continuidade com a política de comércio exterior de FHC é
integral. A defesa das exportações agrícolas vem acompanhada, tal e qual
na "era FHC", da desistência de lutar pelo desenvolvimento econômico nas áreas
de alta tecnologia, pelo controle dos investimentos estrangeiros e por tudo o
mais que, de fato, poderia libertar a nossa economia do imperialismo. É por
isso que, na mesma conferência de Cancún, o Governo Lula aceitou os "temas de
Cingapura", que exigiam mais abertura econômica dos países da periferia aos
investimentos estrangeiros, traindo os interesses da economia nacional e dos
países demais países periféricos. Vejam o que diz sobre isso a nota do
Planalto:
"A reunião da OMC, que contou com a participação dos 146 países
membros da organização, terminou sem nenhum acordo sobre a questão
agrícola, pois as negociações foram suspensas quando alguns
participantes não entraram em consenso sobre os chamados "Temas de
Cingapura" (facilitação de comércio, investimentos, política de
concorrência e transparência em compras governamentais)."
Como a nota indica, e como a imprensa noticiou amplamente, o Governo Lula já
tinha anunciado que aceitaria as exigências dos países centrais nos pontos
relacionados nos "temas de Cingapura". A Secretaria de Comunicação fala, no
trecho citado, em "transparência nas compras governamentais", esse é o
eufemismo liberal e pudico para a entrega das encomendas governamentais às
empresas imperialistas. Foi a rebelião da Malásia, Indonésia, Índia e outros
países contra os "temas de Cingapura" que melou a reunião de Cancún, como foi
noticiado na imprensa e como a nota do Governo Lula reconhece.
Resumo da ópera: o governo Lula aceita a atual divisão internacional do
trabalho, mas quer todas as oportunidades para lucrar o máximo possível no
papel de exportador de produtos primários que tal divisão reserva ao
Brasil. Essa posição vem acompanhada de um discurso livre-cambista ingênuo e
entreguista que pode acabar de liquidar com a economia brasileira. Observem o
que disse o Presidente Lula sobre a posição brasileira em Cancún:
"Vejam que nós, em nenhum momento, estamos pedindo qualquer benefício
de privilégio ou estamos pedindo qualquer favor. O que nós estamos
pedindo é que os países desenvolvidos façam uma política de comércio
exterior em que sejamos tratados em igualdade. Nós queremos apenas a
oportunidade de competir livremente".
O governo Lula quer "competir livremente" com a economia estadunidense! Ora,
nesse caso, o caminho é assinar logo o acordo da Alça, que é justamente disso
que a proposta estadunidense trata: competição livre num mercado livre.
II
Alguns poderão imaginar que, a despeito de reivindicar vantagens que
reafirmam a atual divisão internacional do trabalho, o governo Lula está se
confrontando com as empresas e o governo estadunidense. A imprensa brasileira
tem passado essa impressão, tratando os Estados Unidos como um bloco homogêneo
dotado de um interesse único. Ocorre que a realidade é mais complexa. Sem
dúvida, a política de Lula em Cancun colide com os interesses dos produtores
rurais estadunidenses, com os do comércio de produtos agrícola daquele país e
com um setor do Estado estadunidense que entende ser importante uma política de
autonomia agrícola por razões de segurança nacional. Esses interesses
convergentes levaram à lei agrícola protecionista editada naquele país em 2002.
Porém, o setor mais reacionário da burguesia estadunidense, o grande capital
financeiro, não parece apoiar a política protecionista, ao menos na sua forma e
no seu radicalismo atuais. O capital financeiro quer que o Brasil obtenha
divisas para continuar pagando, em moeda forte, os juros da dívida, e para
continuar permitindo que os ativos do capital financeiro imperialista
investidos no Brasil possam se transformar, sem sustos, em dólares a serem
repatriados. Para decepção dos novos nacionalistas, cito, em apoio a esta tese,
o The Wall Street Journal, que na sua edição de 18 de setembro, aplaudiu, em
editorial, a pressão do governo Lula contra os subsídios agrícolas que
"desnaturam o livre comércio". Se os editorialistas do The Wall Street Journal
tivessem presenciado o discurso livre-cambista do presidente Lula, teriam mais
motivos ainda para júbilo.
Vamos esclarecer as coisas. Sem dúvida, é correto denunciar o protecionismo
agrícola dos países centrais, para mostrar que eles pregam para os outros
aquilo que não fazem para si. É educativo mostrar a hipocrisia imperialista. Só
para os países da periferia são obrigatórios a abertura econômica e o ajuste
fiscal, e isso precisa ser denunciado. Porém, passar da denúncia para a
reivindicação de que se aplique integralmente o liberalismo para todos é
rematada tolice. Isso aí poderia ser chamado de nacional-liberalismo:
pressionar os países centrais para a abertura geral do comércio mesmo onde
esses países não desejam abrir. O resultado desse nacional-liberalismo seria a
conversão completa do Brasil numa enorme fazendo de soja.
III
É esse o projeto nacional do Governo Lula?
Alguns poderão esperar que o G22 amplie seu temário, passando a tratar não só
de agriculura, e mude a sua perspectiva, pressionando por um tratamento
diferenciado entre o centro e a periferia e não pela fórmula entreguista da
"competição livre". Mas, se essa mudança ocorrer, será outra política e outra
história muito diferente.
Se chegarmos a uma política semelhante à da Índia, que procura ativamente furar
a divisão internacional do trabalho nas áreas de energia, de informática e
outras, valerá a pena discutir se tal nacionalismo é digno de apoio. Porém,
sequer num caso avançado como o caso da Índia a esquerda pode oferecer apoio
sem a contrapartida de uma real melhoria nas condições de vida dos
trabalhadores – coisa que, aliás, não está acontecendo com os trabalhadores
indianos.
Mas, tudo isso é uma outra história. A ação do governo Lula em Cancun foi pura
e simplesmente um nacionalismo de fazendeiro.
https://www.alainet.org/es/node/108464?language=es
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