“Que a terra produza seres vivos segundo sua espécie” Gn 1, 24-25

31/08/2003
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No início de agosto a imprensa, tanto nacional, quanto internacional, trouxe a notícia de que o Vaticano estaria buscando informações sobre alimentos geneticamente modificados a fim de determinar se o uso de transgênicos pode ajudar a aplacar a fome no mundo. A informação dada pelo arcebispo Renato Martino, presidente do Pontifício Conselho de Justiça e Paz, ao jornal La Stampa, de Turim, gerou uma série de reações, tanto no Brasil, quanto no exterior e foi interpretada como sinalização do apoio que o Vaticano pretenderia dar à produção e comercialização dos alimentos geneticamente modificados. Matéria do The New York Times, assinada pelo jornalista Richard Owen, e reproduzida no Brasil,(O Estado de São Paulo 4/8/03) dizia: “O Vaticano deixou atônitos ontem os adversários dos alimentos geneticamente modificados ao declarar que os transgênicos são a resposta para a fome e para a desnutrição mundial.” A reportagem cita o arcebispo Martino dizendo que esta disputa é mais ideológica e política do que científica e acrescentando que tendo residido 16 anos nos Estados Unidos, la comia de tudo o que lhe era oferecido, inclusive produtos geneticamente modificados e eles não tiveram nenhum efeito em sua saúde.

Coube à CNBB, através do Setor Pastoral Social, mostrar que o que o Vaticano e o arcebispo Martino propunham, não era a liberalização dos produtos transgênicos, mas o conhecimento mais profundo e adequado da questão, divulgando parte de seu discurso, proferido na Conferência Ministerial sobre Ciência e Tecnologia na Agricultura, nos dias 23 a 25 de julho de 2003, em Sacramento, Califórnia, Estados Unidos.

Estas notícias trouxeram preocupação também para dentro da Comissão Pastoral da Terra, que vive no seu dia-a-dia a serviço dos trabalhadores e trabalhadoras do campo. Estes, já há tempo, vêm discutindo este assunto e conhecem as dificuldades pelas quais passam agricultores em outras partes do mundo, submetidos aos ditames das empresas transnacionais de produção e comercialização de sementes transgênicas. As organizações camponesas do Brasil, articuladas no Fórum Nacional de Reforma Agrária e Justiça no Campo, que congrega de sindicatos e federações de trabalhadores rurais aos movimentos dos sem-terra, se posicionaram abertamente sobre esta questão. No dia 22 de abril deste ano, lançaram a Carta da Terra, um decálogo de princípios e compromissos que marca a unidade das organizações dentro de sua diversidade. O item 5º afirma que todas lutam pela “produção de sementes pelos próprios agricultores e agricultoras inclusive com incentivos às iniciativas populares de resgate das sementes crioulas, como forma de garantir as sementes como patrimônio da humanidade. Para tanto, combatem o patenteamento de seres vivos e a liberação da produção comercial e uso de sementes transgênicas, indutoras de monopólio que destrói a soberania dos agricultores e são nocivas ao meio ambiente e à saúde humana”.

Os bispos que tem a responsabilidade pastoral de acompanhar a Comissão Pastoral da Terra nos diversos regionais, durante a Assembléia Geral da CNBB, no dia 06 de maio de 2003, emitiram uma Declaração manifestando sua posição sobre esta questão, apoiando desta forma o grito e clamor dos pequenos agricultores do país.

A solicitude pastoral com os trabalhadores e trabalhadoras da terra nos leva, por isso, a apresentar ao Pontifício Conselho de Justiça e Paz, as reflexões que estamos fazendo sobre o assunto esperando dele uma palavra profética em defesa da integridade da criação e dos pequenos agricultores. Contra a voracidade do capital que quer ter o controle sobre tudo, esperamos uma palavra que reforce o primado da pessoa e da natureza unindo sua voz à daqueles que propugnam que as sementes sejam declaradas patrimônio da humanidade.

As múltiplas dimensões do problema

Não nos cabe aprofundar detalhes técnicos do tema. Preocupam-nos muito mais os fundamentos teológico-pastorais e éticos desta celeuma e suas dimensões sociais, ambientais, culturais e econômicas. Estamos diante de uma nova fronteira da ciência e da tecnologia, que significa uma intervenção de tal monta na natureza, que ultrapassa os limites naturais entre as diferentes espécies vivas. Como bem definem os pesquisadores Rafaela Di Sabatto Guerrante, Adelaide Maria de Souza Antunes e Nei Pereira Jr:

“A partir da década de 70, com o desenvolvimento da engenharia genética e a conseqüente descoberta da tecnologia do DNA recombinante, foi possível ultrapassar a barreira das espécies. Por meio desta tecnologia é possível modificar diretamente o genoma de um determinado organismo, seja pela introdução intencional de fragmentos de genes exógenos, que possuem função conhecida, seja pela eliminação de genes do organismo manipulado, ou até mesmo pelo remanejamento dos próprios genes do organismo-alvo”.

Com o uso de técnicas de engenharia genética, o gene que contém a informação para a síntese de uma determinada proteína de interesse pode ser transferido para outro organismo, que, então, produzirá a proteína desejada. Estes conceitos têm definido e delimitado o que se denomina ´biotecnologia moderna`, diferenciando-a da ´biotecnologia clássica`”[1].

Esta intervenção interfere no coração da natureza e afeta diversas áreas do conhecimento humano, o que exige um debate multidipliscinar, como afirmam com precisão Nodari e Guerra:

“Devido às suas múltiplas abordagens, a análise das implicações não pode ficar restrita apenas aos biólogos moleculares. Há a necessidade de contar com pessoas com conhecimento, sabedoria e experiência em diversas áreas, tais como: ecologia, genética, bioquímica, medicina, nutrição, epidemiologia, entomologia, fitopatologia, botânica, zoologia, bioética, sociologia e economia, entre outras ” [2]

Acontece que os argumentos de ordem agronômica e econômica são os apresentados em primeiríssimo plano, ficando os demais na penumbra. Quais serão, porém, as conseqüências desta intervenção na vida e na saúde humanas e para o meio ambiente?

Riscos x ganhos

Os que argumentam favoravelmente à disseminação imediata das sementes transgênicas na produção agrícola e os alimentos transgênicos na cadeia alimentar têm minimizado os riscos ambientais, biológicos, sanitários e alimentares, postulando, principalmente, que as plantas transgênicas são substancialmente equivalentes em relação às variedades convencionais das quais derivam, dispensando, assim, maiores estudos e avaliações em relação aos riscos. Afirma-se categoricamente pela segurança alimentar e ambiental dos produtos advindos da transgenia. Assim, minimizados os riscos científicos, parte-se para a argumentação das vantagens agronômicas e econômicas. Argumentam que esta tecnologia é necessária para aumentar a produção de alimentos, para combater a fome no mundo, aumentar a renda para os agricultores, diminuir o uso de agrotóxicos e facilitar o manejo de ervas daninhas e controle de insetos. Argumenta-se também que se trata de avanço científico e tecnológico e qualquer posicionamento crítico é imediatamente qualificado de atrasado e desconsiderado a priori.

Uma avaliação séria e profunda da questão impõe duas linhas de reflexão a) sobre os riscos que não podem ser minimizados ou abstraídos e b) sobre as vantagens econômicas e sociais para o conjunto dos agricultores e para as sociedades, especialmente para os países pobres ou em desenvolvimento.

Riscos

A avaliação dos riscos que os transgênicos representam para a saúde humana e o meio ambiente não tem sido feita adequadamente, conforme comprovam estudos sérios. Afirmam Nodari & Guerra:

“Devido aos contextos históricos, políticos e econômicos da biotecnologia seria apropriado questionar o que vem sendo praticado em termos de avaliação de risco. As agências regulatórias não têm utilizado critérios ecologicamente compreensíveis para avaliar os riscos de organismos transgênicos (Peterson et al., 2000). Uma revisão dos pedidos de liberação para a comercialização de OGM na Comunidade Européia revelou claramente que a avaliação de risco ambiental não foi feita ou interpretada adequadamente pelos Estados Membros (Glidon, 1999). A recomendação de bastidores destes experimentos de campo sugere que está sendo aplicado o ditado popular “não olhe, não encontre”. [3]

 A tão decantada agência norte-americana Food and Drug Administration - FDA que faz a liberação de alimentos e remédios, acabou aceitando os testes e argumentos das empresas. Não realizou uma avaliação independente, como constatou o grupo de parlamentares brasileiros que visitou os Estados Unidos a convite da Embaixada Americana para recolher informações sobre os transgênicos. Segundo Nodari e Guerra

“As plantas transgênicas, aprovadas para o cultivo comercial nos Estados Unidos, tiveram sua liberação baseada no princípio da equivalência substancial. Assim, a soja RR foi considerada “equivalente” à sua antecedente natural, a soja convencional, porque não difere dela nos aspectos cor, textura, teor de óleo, composição e teor de aminoácidos essenciais e de nenhuma outra qualidade bioquímica. Desta forma, não foram submetidas à rotulagem pela agência americana encarregada de sua liberação, a Food and Drug Administration - FDA.

Este conceito de equivalência substancial tem sido alvo de críticas, entre outras, porque a falta de critérios mais rigorosos pode ser útil à indústria, mas é inaceitável do ponto de vista do consumidor e da saúde pública (Millstone et al., 1999)”. [4]

Alguns efeitos indesejados do cultivo e ingestão de alimentos transgênicos já foram constatados, apontando para a necessidade de análise séria dos riscos:

-      Reações alérgicas já comprovadas com a ingestão de alimentos transgênicos;

-      Contaminação de banco genético de sementes básicas já comprovado como o milho do México, maior centro mundial de origem desta cultivar, o que dá a idéia, junto com outros fatos semelhantes, dos possíveis impactos ambientais desta tecnologia; (...) “no ano 2001 foi descoberto que, em varias comunidades da Serra Juárez, os milhos nativos estão contaminados com sementes transgênicas. O que aos nossos povos indígenas custou milhares de anos para desenvolver, hoje, as indústrias que comercializam com a vida o podem destruir em pouco tempo”[5];

-      Imprevisibilidade científica comprovada com a constatação da presença de seqüências extras de DNA (534 pares de base) na soja transgênica da Monsanto (Roundup Ready), imprevistas e indesejadas. O fato desmonta os argumentos científicos da total segurança da tecnologia.(Nodari & Guerra in Bioética e Biorrisco.)

-      Estudos divulgados no dia 10 de julho deste ano, na Inglaterra, mostram que o plantio de oleaginosas geneticamente modificadas poderiam afetar a fauna silvestre e resultar em "ervas daninhas superpotentes". A evidência científica citada no jornal The Guardian mostra que resíduos de plantas transgênicas podem cruzar com cinco plantas silvestres britânicas, criando "potentíssimas ervas daninhas" resistentes aos herbicidas.(Gazeta Mercantil15/07/03)

-      Os instrumentais científicos de acompanhamento, avaliação e controle de riscos estão, ainda, muito pouco desenvolvidos. Avançou a bioengenharia mas a biosegurança ainda engatinha e esta é essencial para a população.

Impactos sociais e econômicos

 Se os riscos ambientais e para a saúde não são nada desprezíveis, os impactos sociais e econômicos não são tão evidentes como alegam os defensores da tecnologia.

Com certeza, eles provocarão uma nova onda de seleção e exclusão de pequenos agricultores e de povos indígenas, aumentando a concentração da terra, da renda, dos recursos tecnológicos e dos meios de produção; novas ondas de monoculturas em extensas regiões do planeta com todas as suas mazelas de descontrole e aumento desordenado de insetos indesejados, fungos, plantas concorrentes, perda da biodiversidade e dos mecanismos naturais de controle biológico, contaminação das águas, do ar, do solo e dos alimentos. Com isto aumentará a dependência tecnológica e econômica e crescerá a miséria nos campos e nas cidades.

Controle da cadeia alimentar

A produção dos alimentos transgênicos é um dos mais fortes elos da cadeia que algumas poucas empresas tentam construir para garantir o monopólio sobre o conjunto do complexo agro-alimentar. Diz o prof. Horácio Martins de Carvalho:

“Os recursos genéticos vegetais, uma herança comum de toda a humanidade há mais de 10.000 anos, foram sendo transformados gradual e crescentemente, a partir do início do século XX, em propriedade de um reduzido grupo de empresas privadas norte-americanas e européias. Se outrora as sementes constituíam um acervo comunitário e cultural dos povos camponeses e indígenas de todo o mundo, cuja obtenção, guarda e reprodução eram muitas vezes mediados pelo sagrado e tinham na partilha desse bem comum um valor material e simbólico que as tornavam sinônimos da vida, contemporaneamente as sementes transformaram-se em mercadorias, em objetos de negócios cujo objetivo precípuo é o lucro através da exploração e submissão dos produtores rurais de todo o mundo, não por potências estrangeiras, mas por corporações privadas capitalistas de âmbito multinacional”.[6]

Estas empresas tendem a impor uma nova dieta alimentar padronizada para todos os povos do mundo, através da oferta de alimentos industrializados e de grandes campanhas de mídia, com isso induzindo à mudança dos hábitos alimentares dos povos, contribuindo para a perda de sua identidade social e étnica. “O consumo surge como modo de resposta global que serve de base a todo o nosso sistema cultural”[7] (cf. Baudrillard, 1968 e 1995). Elas também determinam o que os agricultores devem produzir.

Assim assiste-se a uma desenfreada corrida por fusões de empresas que buscam o controle total sobre todo o conjunto de atividades que envolvem a cadeia alimentar. Desde a pesquisa e criação de novas variedades, passando pelo controle e venda das sementes, pela comercialização da produção agrícola, chegando ao consumidor final.

O Grupo ETC (antes chamado RAFI, www.etcgroup.org) acompanha este processo há várias décadas. Esta forma de integração vertical (dentro do mesmo setor de produção) e horizontal (com outros setores) é particularmente alarmante no setor agroalimentar e farmacêutico. Há 20 anos existiam milhares de empresas de sementes e nenhuma delas chegava a alcançar um por cento do mercado. Hoje 10 empresas controlam 30 por cento do mercado mundial. Na mesma época existiam 65 empresas de insumos agrícolas. Hoje uma dezena de empresas controla 90 por cento do mercado”.[8] Diz Silvia Ribeiro:

(...) As sementes são o primeiro elo da corrente alimentar. Quem controla as sementes, vai controlar a disponibilidade de alimentos. Por isso vemos, em anos recentes, a empresas como Monsanto gastando mais de 8,5 bilhões de dólares para comprar companhias de sementes e de biotecnología. É por isso que DuPont gastou mais de 9,4 bilhões de dólares para comprar a Pioneer Hi-Bred, a maior empresa de sementes do mundo, e estas, por sua vez, têm gasto grandes somas para comprar as empresas de sementes nacionais de muitos países do Sul. O tema chave é o controle. Os gigantes genéticos estão utilizando as sementes transgênicas para ditar como vão cultivar os agricultores e em quais condições. Um dos efeitos mais graves para os agricultores e agricultoras, para os povos indígenas e para a pesquisa pública em geral, é que estão perdendo o seu direito de utilizar e desenvolver a diversidade (...) [9]

Patenteamento

 O patenteamento é o instrumento de que estas grandes empresas lançam mão para estabelecer seu controle econômico e tecnológico: patenteamento de genes, patenteamento de processos de construção gênica, patenteamento de processos de transferência genética, controle de processos associados entre genes inseridos e produtos químicos, patenteamento de processos de obtenção de princípios ativos com fins comerciais existentes na biodiversidade dos países pobres (pilhagem do patrimônio genético dos pobres pelo monopólio científico e legal das grandes empresas dos países ricos), patenteamento de tecnologia terminator (capaz de produzir grãos estéreis para que os agricultores não possam reproduzir suas sementes), domínio e patenteamento da tecnologia traitor (capaz de controlar a expressão de genes responsáveis por funções específicas nos seres vivos – crescimento, granificação, por exemplo - e condicioná-los a certos produtos químicos para o seu desenvolvimento obrigando os agricultores a adquirir estes produtos para verem suas plantas ou animais se desenvolverem), produção de herbicidas com propriedades gameticidas (morte do gameta, impedindo a polinização e a reprodução das plantas), cobrança de royalties – taxa tecnológica – pelo uso de sementes e produtos patenteados e outros tantos meios. O simples patenteamento de seres vivos já ofende a consciência humana, pois a natureza é um bem de uso universal e para os cristãos, dom gratuito de Deus. Mas o que estamos assistindo e vamos assistir caso este modelo tecnológico venha a tornar-se hegemônico é um arsenal de instrumentos econômicos, legais, científicos e tecnológicos manipulando seres vivos em função de objetivos comerciais e da sede de lucro de poucas empresas.

Uma comissão de especialistas do Parlamento Alemão chegou à conclusão de que as estratégias dos conglomerados que apostam na tecnologia genética e na comercialização de sementes patenteadas fazem com que os alimentos se tornem escassos e mais caros. Quando atualmente se levam ao mercado ou inicialmente se distribuem gratuitamente aos agricultores sementes patenteadas, desbancando assim sementes locais livremente disponíveis, programam-se intencionalmente a dependência e o endividamento.[10]

A fome no mundo

Eliminar a fome do mundo é o argumento moral para justificar fins que nada tem a ver com este objetivo. Aliás, trata-se de um mito reciclado, já utilizado para implantar a primeira e a segunda fases da revolução verde. Embora vários avanços tenham sido obtidos, as conseqüências sociais, ambientais e econômicas da revolução verde colocam a agricultura mundial à beira da insustentabilidade no médio prazo. E a fome não foi debelada, ao contrário. Agora as mesmas empresas que concentraram capital com a revolução verde vem usar do mesmo argumento para impor uma nova fase tecnológica na agricultura. Entre as principais razões da fome no mundo não está o domínio de tecnologias, ao contrário, está na destruição das formas camponesas de produção, na perda da autonomia produtiva dos agricultores, na falta de políticas públicas de apoio aos agricultores, na concentração da renda e da terra e na falta de emprego. Com o desenho estrutural da agricultura na fase da transgenia, estes fatores tendem a piorar. A qualidade e a variedade dos alimentos pioram significativamente, e a segurança alimentar da população está seriamente ameaçada.

Os pesquisadores Miguel Altieri (University of California) e Peter Rosset (Institute for Food and Development Policy) contrapõe argumentos sólidos à afirmação de que a produção de transgênicos servirá para combater a fome no mundo. Segundo eles

a)      a biotecnologia de laboratório não tem o poder de uma vara mágica para resolver todos os problemas da agricultura;

b)     não há relação entre a ocorrência freqüente de fome num dado país e sua população, pois o mundo produz hoje mais alimento por habitante do que nunca antes;

c)      a maioria das inovações tecnológicas da biotecnologia de laboratório tem sido dirigidas para obter mais lucros para as grandes empresas do que impulsionadas para resolver problemas concretos da população (o principal exemplo são os atuais cultivos transgênicos disponíveis no mercado voltados à resistência a agrotóxicos e à produção de inseticidas pelas próprias plantas e não a aumentar a produtividade ou a adaptar-se a dificuldades climáticas ou de solo ao desenvolvimento de certos cultivos);

d)     a tendência expressa até aqui é a de maior monopolização do mercado de sementes e alimentos e maior dependência da produção aos produtos químicos e maior dependência dos agricultores às grandes indústrias, fragilizando social e culturalmente as comunidades camponesas, principais sujeitos da soberania alimentar dos povos pobres;

e)      a homogeneização em larga escala dos cultivos transgênicos agravará os problemas ecológicos já associados às monoculturas agrícolas, aumentando os impactos sociais e ambientais em curto e médio prazo.

Custo de produção e produtividade

Os propalados menor custo de produção e a maior produtividade da soja transgênica também não correspondem à realidade. Segundo o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, doutor em Engenharia da Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que trabalha na Emater do Rio Grande do Sul, “as vantagens econômicas obtidas no primeiro ou até dois primeiros anos de plantio das variedades transgênicas, referentes à redução nos tratos culturais, desaparecem a partir do quarto ou quinto ano, quando se começam a pagar royalties pelas sementes; quando a proliferação de ervas daninhas resistentes ao glifosato (princípio ativo do herbicida Rondup Ready ou RR) obriga à retomada dos tratos culturais normais e, o mais importante, devido ao baixo nível de fixação de nitrogênio das variedades transgênicas”. Também a maior produtividade é questionada. Segundo ele “a soja RR foi desenvolvida para resistir a um herbicida, de modo a reduzir o número de aplicações do químico, durante o ciclo da cultura. Não é uma variedade desenvolvida para ser produtiva” como é caso da soja melhorada de forma não transgênica usada no Centro-Oeste brasileiro. Tal opinião é compartilhada pelo produtor Carlos Augusto de Albuquerque, membro da Federação de Agricultura do Estado do Paraná (FAEP), que recentemente organizou uma viagem de associados aos EUA. Segundo ele, a produtividade da soja transgênica argentina fica em torno de 2.500 a 2.600 kg por hectare, mesmo resultado obtido na safra transgênica gaúcha. Já as variedades de soja não transgênica do Paraná chegam a 3.000 kg/ha, enquanto a média brasileira é 2.800 kg/ha.”[11]

“Que a terra produza seres vivos segundo sua espécie”

 O que a teologia e a ética teriam a nos dizer sobre este tema, principalmente no que tange a suas aplicações às comunidades humanas e ao meio-ambiente?

 O cristão defende a vida em todas as suas dimensões como obra-prima da criação de Deus e centro da missão salvadora de Jesus Cristo: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância”, disse Jesus (Jo 10, 10).

 O livro do Gênesis insiste de maneira intrigantemente profética que Deus criou os vegetais, os animais e os humanos e ordenou-lhes que se reproduzissem cada qual de acordo com a sua espécie. “E Deus disse: que a terra produza seres vivos segundo sua espécie; animais domésticos, répteis e feras segundo sua espécie – e assim se fez. Deus fez as feras segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie e todos os répteis do solo segundo sua espécie, e Deus viu que isto era bom” (Gn 1, 24-25). A natureza saiu das mãos do Criador com mecanismos intrínsecos de auto-regulação e auto-equilíbrio A moderna teoria da evolução da fantástica teia da vida e da interação dos processos vitais não contradiz a teologia da criação, apenas nos faz refletir de maneira mais profunda sobre o mistério da ação de Deus na Obra da Vida.. A transgenia, porém, traz a possibilidade, pela primeira vez na história da humanidade, de romper esta barreira sexual e recombinar, alterar e transferir em laboratório – através da tecnologia do DNA recombinante - genes, material genético e seqüências genéticas entre espécies e até entre reinos (animal, vegetal, vírus, bactérias, serem humanos) diferentes. O que a natureza construiu em bilhões de anos de história natural, registrada magistralmente no simbolismo do relato da criação no Gênesis, com seus mecanismos e barreiras naturais de auto-proteção, pode ser hoje manipulado e ultrapassado através técnicas de engenharia genética.

Os milagres de Jesus sinalizam a restauração da natureza degradada e mostram que isto é parte fundamental de sua missão salvífica. Os cegos vêem, os coxos andam, as chagas desaparecem, as doenças são curadas, os distúrbios mentais são superados, produtos da natureza (pães e peixes) se multiplicam para matar a fome do povo e situações de morte se transformam em vida.

Na pregação de Jesus, a simbologia da semente aparece muitas vezes. A boa semente que cai em terra boa dá bons frutos. Mas é preciso estar atento à ação da má semente, do joio, que pode contaminar o trigo (Mt 13, 24-30). Proteger a boa semente e plantá-la em terra boa é parte integrante da ação evangelizadora da Igreja (Mc 4, 1-8). O que dizer, em termos de ética cristã, da possibilidade de uso de sementes estéreis, de sementes condicionadas a determinados agroquímicos, da contaminação de bancos genéticos tradicionais e de herbicidas gameticidas com tecnologia patenteada em poder e sob controle de grandes empresas transnacionais?

Deus deu à inteligência humana a possibilidade de intervir no mundo criado para dele servir-se para manter a vida humana na terra, mas o rompimento do equilíbrio da mãe natureza tem trazido conseqüências funestas para os seres humanos. Até que ponto as novas tecnologias de laboratório – especialmente a transgenia, ao ultrapassar a barreira sexual do cruzamento natural entre as espécies - rompem com a integridade da Criação em aspectos que possam ser defensáveis em termos de ética cristã?

A Teologia e a Mística Cristãs nos ensinam a ver e contemplar a Mãe Natureza como Dom de Deus a todos os seus filhos e a com ela conviver num ambiente de fraternidade, chegando São Francisco de Assis a exclamar no Cântico do Irmão Sol: “Louvado sejas meu Senhor pelo Irmão Sol, pela Irmã Água, pelo Irmão Vento, pela Irmã e Mãe Terra...” Quem vive uma espiritualidade ecumênica procura ir à raiz das questões. Não aceita que se ponha em risco a vida dos seres humanos e a integridade do planeta apenas por interesses econômicos das multinacionais. A sacralidade do alimento como dom de Deus se expressa na forma sadia de alimentar-se, no cuidado com a vida de todos e no respeito à terra e à dignidade dos seres vivos.

Como encarar, em termos da Ética Cristã, a instrumentalização da natureza para fins comerciais, sem o devido respeito às suas complexas interações ecológicas, objetivando unicamente o lucro imediato? Como encarar a apropriação privada – através do patenteamento – de seres vivos e de fontes da vida, como a água, genes, microorganismos, princípios ativos biológicos, processos vitais? E como se posicionar, do ponto de vista dos princípios cristãos, diante da expropriação do conhecimento da agrobiodiversidade agrícola camponesa e indígena? Durante mais de 10.000 anos estes conhecimentos geridos de forma comunitária e generosa como patrimônio da humanidade agora se veem ameaçados de se tornarem propriedade privada de uma fantástica concentração empresarial, que pretende monopolizar os meios de subsistência da humanidade.

Ao invés de restaurar a natureza degradada, esta ação da humanidade não estaria aprofundando as rupturas já provocadas no equilíbrio ambiental e social da Mãe Natureza? Em que situações, este domínio do conhecimento humano poderia ser utilizado para cumprir este desígnio divino?

Vida, dom de Deus

O Papa João Paulo II algumas vezes têm se manifestado sabiamente a respeito destas questões, reafirmando a vida como dom de Deus, não como propriedade privada. Na mensagem para a quaresma da 2002, disse: “Recebestes gratuitamente. Não será por acaso a nossa existência totalmente marcada pela benevolência de Deus? O desabrochar da vida e o seu prodigioso desenvolvimento é um Dom. E, precisamente por ser Dom, a existência não pode ser considerada como domínio ou propriedade privada, ainda que as potencialidades, de que hoje dispomos para melhorar sua qualidade, poderiam fazer supor o contrário, ou seja, que o homem seja o seu “dono”. De fato, as conquistas da medicina e da biotecnologia poderiam às vezes levar o homem a imaginar-se criador de si próprio, e a ceder à tentação de manipular a “árvore da vida” (Gn 3,24).

Vale a pena reafirmar aqui que, nem tudo aquilo que seja tecnicamente possível, é lícito moralmente. Se é louvável o avanço da ciência por garantir qualidade de vida mais em consonância com a dignidade do homem, jamais deve ser esquecido que a vida humana é um Dom, e que permanece sendo um valor, mesmo quando é atingida pelo sofrimento e ancianidade”.

Na IX Assembléia Geral da Pontifícia Academia para a Vida, assim se expressou o Papa: “A Igreja respeita e apóia a investigação científica quando procura uma orientação autenticamente humanista, evitando qualquer forma de instrumentalização ou destruição do ser humano e mantendo-se livre da escravidão dos interesses políticos e econômicos”[12]

Primado da Ética

Para nortear a reflexão e a prática cristãs em relação ao cultivo de alimentos transgênicos há que se colocar o primado da ética sobre os interesses econômicos, sobre vantagens imediatistas, sobre uma pretensa auto-determinação e até certa prepotência das ciências experimentais. Não como limite para a investigação, mas como limite para a aplicação. Na aplicação massiva destas novas tecnologias devem-se levar em consideração as necessidades reais do conjunto da população, o cuidado com a natureza e nossa responsabilidade com sua sustentabilidade atual e futura.

Dos princípios éticos destacamos os da beneficência, da justiça social, da transparência e da precaução.

O princípio da beneficência. Este princípio exige que uma determinada intervenção na natureza ou no ser humano, se justifica, pelo bem que possa fazer, ou até, por ser a única possibilidade de salvar vidas ou combater problemas crônicos: doenças, fome, epidemias, endemias, etc. Nestes casos, se a transgenia fosse um dos únicos caminhos, ou o melhor disponível, ou outra circunstância especial, seu uso poderia ser justificado. É o caso dos medicamentos de origem na biomedicina, utilizando a tecnologia do DNA recombinante. Ressalte-se que a comercialização de um medicamento envolve longo processo de testes e controle e está direcionado a um público específico - os acometidos de uma determinada doença - e com acompanhamento médico personalizado. Os alimentos transgênicos, por sua vez, são de uso massivo e sem qualquer acompanhamento.

O princípio da justiça social, em casos de inovações tecnológicas massivas e de alto impacto social, leva-nos a perguntar sobre quem vai ser beneficiado e quem vai ser prejudicado. Ora, no caso concreto dos transgênicos, um pequeno grupo de grandes empresas é que serão as grandes beneficiadas, com grave dano para a agricultura familiar.

O princípio da transparência exige o máximo de informações à população antes da introdução massiva de tecnologias de alto impacto e mecanismos de decisão democrática sobre elas. As grandes empresas usam de outro método: o fato consumado. Além disto, o consumidor tem o direito de escolha, por razões religiosas, filosóficas, culturais, éticas ou por recomendação médica. Isto exige a rotulagem total de alimentos provindos da transgenia.

O princípio da precaução, antes colocado na bioética como uma decorrência do princípio da não-maleficência, adquire especial destaque e grande autonomia na questão dos transgênicos, sendo já incorporado à legislação de vários países e no direito internacional através do Protocolo de Cartagena. Este princípio implica:

·        o ônus da prova cabe ao proponente da atividade, isto é, cabe à empresa que propõe a liberação do transgênico no meio ambiente provar e garantir sobre a segurança alimentar e ambiental do produto que está colocando no mercado;

·        a não evidência imediata de possíveis danos não devem servir de motivo para adiar ou não realizar pesquisas e testes rigorosos de biossegurança. A incerteza científica passa a ser considerada na avaliação de risco. O risco de que o dano possa ser irreversível ou grave já é suficiente para que não se adiem medidas efetivas de proteção ao ambiente e à saúde da população;

·         na avaliação de risco, um número razoável de alternativas devem ser avaliadas e comparadas antes de se optar pela utilização massiva de tecnologias de risco;

·        para ser precaucionária, a decisão deve ser democrática, transparente, informada e consciente com a participação de todos os interessados. Não pode ser imposição totalitária de uma empresa ou de um único setor da sociedade.

Não cabem, pelo menos na liberação massiva e indiscriminada, neste momento histórico, os princípios do mal menor e o do duplo efeito, que se pode deduzir de algumas argumentações: ou transgênicos ou fome. Em nenhum momento, nesta fase da história humana, estamos diante deste tipo de alternativa, até porque o problema da fome não está diretamente ligado à falta de oferta de alimentos, mas ao baixo poder aquisitivo da população faminta.. Isto se aplicaria, por exemplo, se estivéssemos diante de uma epidemia e um produto transgênico, mesmo com riscos potenciais, poderia ser a alternativa para combatê-la.

In Dubio

In dubio, pro natura.

In dubio, pro salute.

In dubio, pro popolo.

In dubio, pro vita.



[1] Guerrante, Rafaela Di Sabatto, Antunes, Adelaide Maria de Souza e Pereira Jr, Nei: Transgênicos: a difícil relação entre a ciência, a sociedade e o Mercado, In, Bioética e Biorrisco.

[2] Nodari, Rubens Onofre e Guerra, Miguel Pedro – Avaliação de Riscos Ambientais de Plantas Transgênicas - Trabalho publicado em Cadernos de Ciência &Tecnologia, Brasília, v.18,n.1, p.61-116, 2001. Os autores são professores titulares do Departamento. de Fitotecnia, Universidade Federal de Santa Catarina – C. P. 476, Florianópolis, SC, 88040-900 – Tel: (48) 331 5332 – e-mail: nodari@mbox1.ufsc.br, mpguerra@cca.ufsc.br

[3] Nodari e Guerra – op. cit.

[4] Nodari e Guerra – op. cit.

[5] Rojas, Aldo Gonzalez (2003). A contaminação com transgênicos dos milhos nativos, em Serra Juárez de Oaxaca, no México. México, UNOSJO, S.C. Texto original para o livro As sementes são patrimônio da humanidade. Via Campesina do Brasil, no prelo

[6] Carvalho, Horacio Martins (2003). A oligopolização das sementes e a tendência à padronização da dieta alimentar mundial. Curitiba, maio, 10 p. Texto original para o livro As sementes são patrimônio da humanidade. Via Campesina do Brasil, no prelo.

[7] Baudrillard, Jean (1968). Le système des objets. Paris, Galimard; Baudrillard, Jean (1995). A sociedade de consumo. Lisboa, Edições 70.

[8] Grupo ETC (2001) “Globalizacion S.A.” ETC Communique, nº 71, Agosto 2001. Disponível em http://www. etcgroup.org

[9] Ribeiro, Silvia (2003). Camponeses, biodiversidade e novas formas de privatização. México, maio, 13 p. Texto original para o livro As sementes são patrimônio da humanidade. Via Campesina do Brasil, no prelo.

[10] Cf. Deutscher Bundestag, Drucksache 14/9200, p. 289.

[11] John, Liana – Soja transgênica não traz vantagem, diz agrônomo – in Agência Estado, segunda feira, 25 de agosto de 2003.

[12] (A Ética da Investigação Biomédica. Para uma Visão Cristã. Comunicado final da IX Assembléia Geral da Pontifícia Academia para a Vida).

https://www.alainet.org/es/node/108275?language=en
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