Viramundos virados
16/08/2003
- Opinión
Pela primeira vez em muitas décadas, os dados se
reverteram: chegou mais gente ao nordeste, do que saiu.
Não que a região tenha se tornado atraente, não que as
condições de vida, que levavam as pessoas a abandona-la,
tenham melhorado. É que pioraram as regiões de destino
desses imigrantes, as esperanças de melhoria com o
deslocamento foram diminuindo, até desaparecerem e
convocarem ao retorno ou a tentar sobreviver por lá mesmo.
Os nordestinos foram um contingente fundamental da classe
trabalhadora brasileira. Antes deles, os escravos negros e
os imigrantes europeus foram as primeiras gerações dessa
classe fundamental e tão pouco reconhecida pelo Brasil. A
geração do Lula foi a que construiu grande parte da
riqueza do país, tal como ela passou a existir nas últimas
décadas. O fluxo migratório de um nordeste sob comando
absoluto do latifúndio, sem reforma agrária e sem
democratização do acesso à terra, para um sul que prometia
pelo menos carteira de trabalho assinada, promoveu o maior
fluxo migratório que o país conheceu – depois do tráfico
de escravos – e transformou a paisagem urbana e o PIB
brasileiros.
Essa classe trabalhadora não teve nunca o reconhecimento
devido, inclusive porque até pouco mais de um século
trabalho era coisa de raça inferior, de escravos. Durante
quatro dos cinco séculos desde que os colonizadores
chegaram por aqui, tivemos trabalho escravo. Ao não
conseguirmos expulsar os portugueses, com a
"independência" transformada num negócio de pai para filho
– "Meu filho, ponha a coroa na tua cabeça, antes que
alguma aventureiro a faça" e os "aventureiros" éramos nós,
os tiradentes -, não passamos de colônia a república, mas
a monarquia. O preço mais caro desse pacto de elite foram
os escravos, que tiveram sua liberdade adiada para o final
do século, fazendo do Brasil o país que mais tarde
terminou com a escravidão nas Américas.
No espaço dessas décadas os latifundiários se prepararam
para enfrentar o momento em que surgisse a massa de
"homens livres" no campo. Amparados na Lei de Terras, de
metade do século XIX, legalizaram a posse de suas terras –
através da "grilagem" – e impediram que os novos homens
livres pudessem ter acesso à terra que sempre haviam
trabalhado como escravos, condenando os negros
automaticamente à pobreza. A questão colonial e a questão
escrava se desdobravam assim na questão agrária, marcada
pelo latifúndio e pela sujeição da mão de obra desvalida à
violência e à miséria – como analisou nosso mais
importante historiador, Caio Prado Jr.
O caráter de país mais injusto do mundo que o Brasil detêm
vem em grande parte dessa herança, da qual não conseguimos
até hoje nos livrar, pela força que o latifúndio manteve.
Grande parte dos gravíssimos problemas urbanos que temos –
superpopulação, deterioração da infra estrutura,
abastecimento precário – tem a ver, em boa medida com a
falta de democratização no acesso à terra no campo.
No primeiro momento, chegar do nordeste para o sul era
sair do setor primário sem qualquer direito, para chegar
ao setor industrial, com carteira assinada ou mesmo ao
setor de serviços, mas com contrato de trabalho.
Atualmente a transformação mais significativa no mercado
de trabalho é regressiva – atenção: mobilidade social é
ascendente, mas também descendente - é a passagem de
grandes contingentes de mão de obra do setor secundário
para o terciário, isto é, em geral da indústria para o
trabalho precário de serviços, sem carteira assinada. Vem
disto, em parte, o fechamento das possibilidades e
esperanças de imigração dos nordestinos para o centro sul.
A atualidade da questão agrária no Brasil não precisa ser
demonstrada. Ela sobrevive como herança desse mundo
colonial e latifundiário, cuja sobrevivência segue
presente na propriedade concentrada da terra – nos 285
milhões de latifúndios em grande parte improdutivos ao
lado de mais de 4 milhões de famílias expulsas da terra
somente nos últimos anos, pela expansão do latifúndio, à
alta dos juros e à construção de barragens.
Temos que agradecer e dar todo o apoio aos movimentos
rurais que lutam pela fixação dos trabalhadores no campo,
propiciando-lhes meios dignos de vida e de trabalho, que
lutam pelo retorno de populações marginalizadas nos
grandes centros urbanos para áreas rurais onde podem
trabalhar e ter seus direitos reconhecidos. São os sem
cidadania, os viramundos, para os quais precisamos,
juntos, virar este mundo em "festa, trabalho e pão".
https://www.alainet.org/es/node/108093
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