O boné do MST e a cabeça presidencial
Lula põe o boné que tanto deu o que falar
03/07/2003
- Opinión
Terça-feira, ao receber no Palácio do Planalto líderes do
Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra de todos os Estados
brasileiros, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
colocou um boné da entidade por alguns instantes, no
momento em que a audiência foi aberta para fotógrafos e
cinegrafistas. Foi o que bastou para o mundo vir abaixo.
O "caso do boné" ganhou as primeiras páginas dos jornais
de ontem.
O episódio do boné foi criticado em editoriais da Folha
de S. Paulo, Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo, nas
colunas de Merval Pereira, no Globo, e Dora Kramer, no JB
e Estadão, e num artigo do presidente do PFL, Jorge
Bornhausen, na Folha.
Os contra e os pró-boné
O presidente da Confederação Nacional da Agricultura
(CNA), fazendeiro Antonio Ernesto de Salvo, opinou que a
imagem da Presidência "ficou maculada" quando Lula pôs na
cabeça o boné. O artigo do banqueiro/senador Bornhausen,
presidente do PFL, concluiu que "o presidente da
República e o MST assumem a causa comum, ou seja, estão
embarcados na mesma nau insensata que inquieta a nação".
Qualificou o gesto de "insensatez", "temeridade"
("nenhuma pode ser considerada mais grave"), "síndrome de
Estocolmo". O deputado Antonio Calado (PFL/GO), ex-
presidente da UDR e membro da bancada ruralista, achou
que "esse gesto leva toda a população a entrar em estado
de total perplexidade". Para o líder do PSDB na Câmara,
deputado Jutahy Magalhães Júnior (BA), Lula "quebrou o
protocolo" e "não combate as invasões de terra". Já o
líder tucano no Senado, Arthur Virgílio (AM), sempre mais
estridente desde os tempos de Fernando Henrique, viu no
gesto "uma sinistra e perigosa escalada que o governo
tolera de maneira licenciosa, por vezes indecorosa, da
agressividade do MST".
No "Bom Dia Brasil" da Rede Globo, ontem, a pergunta
estava na ponta da língua para o ministro-chefe da Casa
Civil, José Dirceu, que respondeu com ponderação mas pôs
o dedo na ferida: "Onde o presidente vai, ele tem
colocado diferentes bonés de forças sociais. Não ajuda o
Brasil querer estigmatizar o MST. É melhor ter um
movimento legalizado, público, do que outras situações
que encontramos em outros países, que saem dos marcos da
legalidade e da democracia. A solução é a reforma agrária
e não repressão".
Mais tarde, no plenário da Câmara, foi preciso o líder do
governo, Aldo Rebelo (PCdoB/SP) dizer que Lula "não
errou" ao colocar o fatídico boné, pois "foi apenas um
gesto de cortesia do presidente com os integrantes do
movimento". O vice-líder deputado professor Luizinho
(PT/SP) recordou que Lula já pôs um broche dos produtores
rurais durante um encontro com a categoria, e boné da
Ford e GM, quando visitou as duas montadoras de carros. E
o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos chamou de
"histeria absurda" a onda de ataques: "Quando ele recebeu
o Corinthians colocou a camisa do Corinthians, depois
recebeu o São Paulo Futebol Clube, que é meu time, e
vestiu a camisa do São Paulo. Isso não significa
absolutamente nada senão a cordialidade, a urbanidade e o
bom humor que o presidente tem sempre nas audiências."
Preconceito de classe
Pelo andar da carruagem, muito ainda há de se falar e
escrever e locutar sobre o celebérrimo boné. Espera-se
mesmo que o MST o tenha guardado em lugar seguro, pois
pelo jeito ele merecerá um lugar importante no Museu da
República.
A cólera dos com-banco, dos com-latifúndio e de suas
representações político-partidárias e midiáticas,
transpira preconceito de classe por todos os poros. Lula,
ao contrário, tem feito um esforço explícito e assumido
para ser o presidente de todos os brasileiros. Querem
então esses senhores que o ex-retirante nordestino e
torneiro-mecânico da Villares recuse o boné dos sem-
terra? Por que cargas d'água?
Os protagonistas da polêmica do boné têm a resposta na
ponta da língua: "O MST tem invadido prédios públicos,
fechado pedágios, saqueado caminhões" (de Salvo); "O
mesmo boné que aparecia na cabeça de um homem preso na
zona da mata de Pernambuco por saquear um caminhão de
cargas apareceu na cabeça do presidente da República"
(Bornhausen). É o esforço de criminalizar o Movimento dos
Sem-Terra.
Vale recordar a esses senhores que outro governo,
presidido pelo dublê de sociólogo e latifundiário
Fernando Henrique Cardoso, em oito anos e a despeito de
sua patente má-vontade para com os sem-terra não logrou
esta criminalização. Não será o governo Lula, obra das
forças histórica e socialmente comprometidas com a
reforma agrária de fato, que há de fazê-lo agora.
Ponha o boné, presidente
No penúltimo parágrafo de seu artigo, Bornhausen aventa,
um tanto timidamente, a esperança de que "o mesmo voto
popular que o elegeu (a Lula) em 2002 pode condená-lo em
2006". Não é o que indicam até agora todas as sondagens
de opinião sobre a popularidade do novo governo. E nem os
institutos de pesquisa registram nos brasileiros comuns
essa demonização do MST que os indignados com o boné
pretendem; embora as ocupações de terra dividam, sim, a
opinião pública, a imagem do MST permanece francamente
simpática.
Ponha o boné, presidente. Ponha o boné com a cordialidade
e largueza. E com coragem. Não deve haver boné na
sociedade brasileira que não possa cobrir a cabeça do
presidente. E se houver mesmo que escolher, antes o boné
humilde do trabalhador sem-terra que a lustrosa cartola
dos poderosos, hoje aposentada entre outras coisas por
ter virado símbolo de prepotência de classe.
https://www.alainet.org/es/node/107824?language=en
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