O governo precisa ter coragem de enfrentar o latifundio
29/04/2003
- Opinión
Entrevista com João Pedro Stedile, dirigente do MST e da Via
campesina Brasil, sobre a questoa agrária, soberania
alimentar, transgênicos e comercio agrícola internacional
1 - Revista PUCviva – A luta pela Reforma Agrária passará para
um novo patamar com o advento do Governo Lula?
Resposta: Certamente, o que houve agora é uma mudança da
correlação de forças. No governo anterior, o governo era
aliado do latifúndio, e as forças por reforma agrária, o MST
e demais movimentos sociais lutávamos contra o governo e o
latifúndio. Agora, num governo eleito para mudar, certamente
o latifúndio será combatido também pelo governo. Mas a
mudança apenas da correlação de forças não altera por si só
o ritmo da reforma agrária, como um processo de combate a
concentração da propriedade da terra. O ritmo e a dimensão
da reforma agrária vão ser dado pela capacidade dos
movimentos sociais continuarem organizando e mobilizando os
pobres do campo para que lutem pela reforma agrária. E pela
manutenção do compromisso do governo de realmente combater a
concentração da propriedade da terra no meio rural.
2 - Revista PUCviva – Quais são os novos conceitos de luta pela
terra no Brasil e em outros países da América Latina?
Resposta: Durante o período do capitalismo industrial, os
camponeses em geral lutavam por terra para trabalhar. E
acreditavam que bastava ter a terra, para poder se
reproduzirem como camponeses, sustentarem suas famílias e
melhorarem de vida.
Na atual etapa do capitalismo, dominado pelo imperialismo de
caráter financeiro e pelas empresas transnacionais, a reforma
agrária muda de caracter. Não basta mais apenas distribuir a
terra, que ela por si só não é garantia ou condição para que
os agricultores se reproduzam e melhorem de vida. Será
preciso pensar uma reforma agrária de novo tipo, em que
democratize não apenas a propriedade da terra, mas também as
agroindústrias, o comércio agrícola, que esteja casada com um
modelo de desenvolvimento que priorize o mercado interno e o
abastecimento de alimentos. E também que garanta o acesso e
a produção das sementes. Ou seja é preciso construir junto
com a democratização da propriedade da terra, um novo modelo
de produção agrícola, e uma nova forma de organização social
da produção no meio rural. Esse desafio esta presente no
Brasil, na América latina e em todo terceiro mundo, pois a
sanha da atual etapa do capitalismo monopolista e
internacional está dominando a forma de produzir na
agricultura de todo mundo. E isso está colocando em jogo a
sobrevivência dos pequenos agricultores, dos camponeses, da
população que vive trabalhando no meio rural.
3 - Revista PUCviva – O que tem sido feito para combater a idéia
difundida pela mídia de que o MST vai fazer oposição a Lula?
Resposta: Primeiro, a mídia está dividida em relação ao Lula.
Há alguns setores da grande imprensa paulista que já estão na
oposição ao governo, e por isso abrem espaço para gerar
polêmicas, falsas celeumas, que buscam desgastar a imagem de
compromissos populares do novo governo. E isso está presente
na forma como editam as matérias.
A política real do MST em relação ao novo governo é conjugar
parceria com autonomia. Seremos parceiros do governo e o
apoiaremos em todos aqueles programas que representem
melhoria das condições de vida de nosso povo. Em todas
aquelas medidas que representem combate ao modelo econômico
neo-liberal.
Mas manteremos a autonomia necessária para preservar nosso
papel e função principal que é conscientizar os pobres do
campo, organizá-los para que lutem e se mobilizem por seus
direitos. Somente com mobilização social ampla, lograremos
que o governo consiga avançar e cumprir suas promessas de
campanha. Nada será obtido sem mobilização social.
4 - Revista PUCviva – A soberania alimentar – tema de um painel
do qual você participou – é uma luta ampla, estratégica. A
Campanha Fome Zero incrementa essa luta ou prejudica na
medida em que pode significar uma cortina de fumaça na
questão estrutural, de fundo, que é a já mencionada soberania
alimentar?
Resposta: O conceito de soberania alimentar desenvolvido
pela Via Campesina no Brasil e a nível internacional é
recuperar o principio de que cada povo, em seu espaço
especifico, seja a nível pais, seja a nível de estado, seja a
nível de comunidade precisa produzir seus próprio alimentos.
Somente isso lhe dará independência necessária, somente isso
lhe garante a soberania, sobre seu destino. Está presente em
todas as doutrinas políticas, manifestas em Martí, Gandhi,
Che Guevara, e até no islamismo, de que nenhum povo será
efetivamente livre se não produzir seus próprios alimentos. E
é isso, que defendemos como política. O programa da fome,
esta ainda aquém como concepção, por que trabalha com o
conceito d segurança alimentar, que parte do principio que é
dever do estado garantir que todos cidadãos tenham o direito
de acesso a alimentação de qualidade o ano inteiro. Mas de
certa forma é um preâmbulo ao nosso conceito que é mais amplo
e profundo.
Do ponto de vista de propostas de políticas econômicas para
combater a fome, o enunciando nos documentos do governo, por
seu caráter nos satisfaz, porque compreendemos que faz parte
desse processo de transição. Transição para um futuro de
soberania alimentar. No programa do governo esta claro que
precisamos políticas emergenciais que é a distribuição de
cestas básicas ou cupons, para que s pessoas não morram, pelo
menos. Políticas especificas, como para região do semi-árido,
que além de tudo enfrenta a seca, a falta de água, etc.. e
políticas de combate estrutural, aonde estaria a necessidade
da reforma agrária e de um amplo programa de distribuição de
renda, que somente alcançaríamos com a mudança no modelo
econômico neo-liberal.
5 - Revista PUCviva – "Os camponeses querem mudar a Humanidade,
mas querem mudar com vocês" – Como essa afirmação feita no
painel do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, pode ser
traduzida no cotidiano dos movimentos sociais pelo Brasil
afora?
Resposta: A População que vive no meio rural aqui no Brasil é
minoritária, somos aproximadamente 20%, embora se somada a
população das pequenas cidades que também dependem da
agricultura ou da agroindústria aumenta para quase 50% da
população. Na maioria dos paises do terceiro mundo, a
população do meio rural esta acima dos 50%, mas enfrentando
um processo de migração crescente como conseqüência das
políticas neoliberais.
A expressão no fundo quer chamar atenção, que hoje os
problemas enfrentados pela população do meio rural, como a
pobreza, a desigualdade social, a fome, a falta de condições
para produzir, a falta de educação, são na verdade problemas
de toda sociedade, e eles somente poderão ser resolvidos se
toda sociedade se envolver, debater e se mobilizar. Os
camponeses sozinhos ou se quiserem a população que vive no
meio rural não consegue mais, sozinha produzir as necessárias
mudanças sociais, nem no Brasil, nem na Índia e na China
aonde é ainda ampla majoritária.
6 - Revista PUCviva – Qual o ato do Governo Lula, em relação à
questão fundiária, que para o MST significaria um ato
positivo e uma conquista da luta pela terra.
Resposta: O governo Lula precisa ter coragem de enfrentar de
fato o latifúndio. Para isso precisa tomar medidas céleres,
que desburocratizem o processo de desapropriação de todas as
grandes propriedades improdutivas. Segundo um levantamento
feito ainda pelo saudoso Jose Gomes da silva, pai do atual
Ministro da Fome, com base em estatísticas oficiais, se
aplicada a Lei agrária, nós poderíamos desapropriar hoje mais
de 120 milhões de hectare.s Se isso fosse feito, faltaria
famílias sem terra para tanta terra.
Ou seja, o governo precisa sinalizar claramente que é contra
o latifúndio. Poderia começar desapropriando o maior
latifúndio de cada estado. Ou quem sabe, o maior latifúndio
em propriedade de uma empresa multinacional que não atua na
agricultura como atividade principal. Poderia também recolher
em terras, toas as dividas de usineiros e fazendeiros com o
dinheiro publico.
Poderia também proibir a compra de terras por pessoas físicas
ou jurídicas estrangeiras, que hoje possuem mais de 36
milhões de hectares.
Enfim, não existe uma, mas varias formas de demonstrar na
pratica e simbolicamente a sua determinação de eliminar o
latifúndio da sociedade brasileira.
7 - Revista PUCviva – De que maneira O MST combate a ação do
agronegócio e da indústria das sementes transgênicas?
Resposta: Durante o governo FHC esteve em curso total
estimulo da política oficial a implantação do chamado modelo
agrícola norte-americano, que é submeter nossa agricultura as
empresas transnacionais, seja no comércio agrícola, seja na
agroindústria seja na produção de sementes.
Nos vamos lutar de todas as formas por um novo modelo
agrícola, que reoriente a produção agrícola para a produção
de alimentos e para o mercado interno. Que democratize a s
agroindústrias estimulando a desconcentração, a
interiorização e a instalação de agroindústrias
cooperativadas. Vamos lutar para que o estado volte a
controlar o comercio dos produtos alimentícios, controlando
estoques e preços.
Em relação as sementes transgênicas. Primeiro é preciso
compreender de que a campanha que existe para liberação das
sementes transgênicas obedece apenas a ganância de aumentar
as taxas de lucros de oito grandes empresas multinacionais
que controlam sua produção. E que buscam através do monopólio
das sementes transgênicas a venda casada de agrotóxicos e a
dependência dos agricultores comprarem a cada safra sementes
dessas empresas.
Nos vamos lutar de todas as formas para impedir isso. Se for
necessário destruiremos cultivos que são ilegais,
denunciaremos a pratica das empresas transnacionais,
boicotaremos seus produtos, lutaremos. Pois da possibilidade
dos agricultores terem controle das sementes depende a
soberania alimentar de nosso povo, e a possibilidade de uma
agricultura sadia, e voltada para os interesses de nosso
povo.
8 - Revista PUCviva – Onde a tecnologia pode ajudar no
desenvolvimento da produção na terra conquistada?
Resposta. A tecnologia é uma ferramenta importantíssima para
a agricultura. Ela é a aplicação prática do que a ciência
desenvolve sobre o conhecimento das plantas e animais. Nós
somos a favor do uso da biotecnologia, que de certa forma os
agricultores vem aplicando de forma empírica desde o inicio
da humanidade.
Somos a favor da pesquisa e aplicação de novas técnicas
adequadas ao meio ambiente, a uma agricultura orgânica, mais
sadia. Que produza alimentos mais sadios e adequados ao meio
ambiente.
Mas em todos esses processos tecnológicos, o principio básico
não dever ser apenas aumentar a produção e a produtividade ou
a taxa de lucro das empresas e agricultores. O princípio deve
ser a produção de alimentos sadios e o equilíbrio com o meio
ambiente, a quem devemos a obrigação de entregá-lo pra as
gerações futuras.
Por isso, temos esperança também que com o novo governo e em
parceria com os movimentos sociais do campo, se desenvolva um
novo programa de pesquisa agropecuária, de difusão e fomento
das boas técnicas para os agricultores, como por exemplo, uso
de insumos naturais do próprio estabelecimento, a produção de
sementes a nível local. E um novo programa de assistência
técnica, em que os agrônomos e técnicos possam de fato levar
conhecimentos científicos aos agricultores e interagir com
eles.
9 - Revista PUCviva – Pode ser que a safra brasileira de 2003
chegue a 100 milhões de toneladas de grãos. Por que
produzimos tão pouco, comparando-se com a Argentina, por
exemplo?
Resposta: O baixo nível de produção da agricultura brasileira
se deve a conjugação de vários fatores ao mesmo tempo.
Primeiro: concentração da propriedade da terra, em que apenas
um por cento dos proprietários controlam 47% de todas as
terras. Isso faz com terras agricultáveis sejam improdutivas,
ou sejam destinadas a pecuária, ou inadequadas. Por exemplo,
as terras mais férteis do nordeste, que estão na zona da
mata, são utilizadas apenas para cana de açúcar, quando
poderiam produzir alimentos e de maior produtividade.
A baixa difusão de técnicas agrícolas que pudessem
potencializar mais o aumento da produtividade física, sem
tanto uso de insumos industriais.
A não utilização de milhões de camponeses sem terra, e sem
trabalho, que poderiam estar produzindo na agricultura
brasileira.
Hoje nós cultivamos menos de 40 milhões de hectares, mas
temos uma área potencial agrícola de terras férteis, de
aproximadamente 300 milhões de hectares. Mesmo deixando
intacto a região amazônica, que é considerada imprópria para
agricultura intensiva, de lavouras anuais.
A prioridade d apolítica oficial de estimular apenas uma
agricultura para a exportação acaba gerando essa distorção de
que apenas se desenvolvem fazendas monocultoras, de grandes
extensões em detrimento de intensificar oi uso da mão-de-
obra, mesmo com menor intensidade de capital, mas que pode
produzir bastante, como é o caso por exemplo da China.
10 - Revista PUCviva – A participação na Via Campesina significa
o que para o MST?
Resposta: O MST desde o seu surgimento tem uma vocação
internacionalista e latino-americana. Sempre mantivemos
intercâmbio e troca de experiências com outras organizações
co-irmãs de países da América Latina. Daí organizamos a CLOC:
Coordenação Latino-americana de Organizações de Trabalhadores
do Campo. Que hoje reúne todas as organizações das América
Latina e tem sede na Guatemala.
Depois, a partir de meados de 90, com a expansão dessa forma
de desenvolvimento do capitalismo financeiro, internacional e
neo-liberal. O capitalismo expandiu a mesma forma de explorar
os agricultores em todo mundo. Os agricultores da Índia, do
Japão, dos EUA, do México, da África do Sul, e do Brasil
enfrentam todos os mesmos exploradores, ou seja a monsanto, a
cargill, a nestlé, etc.
E isso nos obrigou então a aumentar a integração e o
intercâmbio internacional entre os movimentos e organizações
do campo. E daí surgiu a Via Campesina, como uma articulação
internacional dos movimentos camponeses de todo mundo. Ela
cresce a cada dia e hoje já temos organizações de 87 países,
em todos os continentes. Recentemente na última assembléia
tivemos a adesão da União de Agricultores Árabes, que reúne
organizações camponeses de 16 paises, com 330 milhões de
agricultores na sua base.
Em uma frase, a Via Campesina representa a união e unidade
internacionalista, para enfrentarmos juntos a mesma sanha do
capital internacional sobre os trabalhadores d agricultura de
todo mundo.
E pode escrever ai, no final da história vamos vencer.
11 - Revista PUCviva – Existe algum debate em torno da questão
dos subsídios à agricultura praticados pelos EUA e pela União
Européia. Que subsídios o Brasil pode ter? O MST pensa no
mercado externo?
Resposta: É claro que existe muito debate na Via Campesina
internacional sobre esse aspecto. Nós defendemos que o Estado
deve ter uma atuação forte e firme na proteção de sua
agricultura. E ele apóia, de diversas formas, inclusive com
subsídios, nos preços ou no credito rural.
Mas o que defendemos que cada país tem o direito e até o
dever de praticar subsidio para proteger seus agricultores
frente aos demais setores d a produção, industrial, etc. É
uma forma de proteger quem produz os alimentos, que não deve
ser tratado como uma mercadoria qualquer.
Mas o que somos contra, é de que essa política de subsidio
seja utilizada para concorrência no comercio agrícola
internacional. Ai não pode ter subsidio, nem nos paises
ricos, nem nos paises pobres.
Mesmo quando a Europa, os EUA subsidiam seus agricultores
para competir no mercado internacional, os pequenos
agricultores de lá nos dizem, esses subsídios, na verdade não
são para os pequenos agricultores que em geral se dedicam
apenas a produção para o mercado interno, local. Esses
subsídios servem apenas aos grandes agricultores e as
empresas monopolizadores do comercio agrícola.
Em resumo, os subsídios são um instrumento importante para
distribuir renda entre os pequenos agricultores, protegê-los
da falência, impedir o êxodo rural e estimular a que aumentem
a produção de alimentos e assim garantir uma soberania
alimentar em cada pais.
Mas os subsídios devem sr combatidos como forma de regular o
comércio agrícola internacional. Por isso somos contra não os
subsídios para exportação, como também que a OMC regule o
comércio agrícola.
Infelizmente o Brasil também pratica o subsidio para
agricultores, mas apenas para exportação. Quando a lei Kandir
eximiu de pagamento de ICMS a exportação de soja, ou qualquer
outro produto agrícola, logo é a transferência de um subsidio
de 17%. Já quem produz feijão, arroz, leite, frango por
mercado interno, tem que pagar ICMS.
* Publicada na revista PUC-VIVA, NR.19 Fev-abril 2003, São
Paulo, Publicação trimestral da associação dos Professores da
Pontifica Universidade Católica de São Paulo-SP
(apropuc@sanet.com.br e www.apropucsp.org.br)
https://www.alainet.org/es/node/107580?language=en