Embaixador Samuel Pinheiro: 'O Brasil não precisa da Alca'
A revista "Cadernos Diplô", vinculada ao "Le Monde Diplomatique" - cuja
versão em português é publicada pela mesma equipe no site www.diplo.com.br
- publica, em sua última edição, uma excelente, esclarecedora e extensa
entrevista com o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães sobre a Alca e as
consequências - aliás, terríveis - que ela teria para o Brasil. Essa edição
do "Diplô" é dedicada, em seu conjunto, à análise da Alca sob vários pontos
de vista - econômicos, políticos, militares, culturais ideológicos. Todos
os artigos, de diversos autores, são de excepcional profundidade e clareza.
Por isso mesmo, são de grande valor para os brasileiros. Recomendamos,
portanto, aos nossos leitores a leitura dessa extraordinária publicação.
Aqui fornecemos um aperitivo: com autorização da "Cadernos Diplô",
reproduzimos nesta edição a entrevista do embaixador Samuel Pinheiro
Guimarães, erudito e lúcido diplomata, na tradição daqueles que, no
Itamaraty, sempre foram, também, pensadores do Brasil. Por isso mesmo, o
embaixador foi demitido do cargo que ocupava por Fernando Henrique. O
entreguismo, já se sabe, é incompatível com a inteligência. Apenas admite o
servilismo e a estupidez que lhe é inseparável. O leitor sem dúvida
concordará conosco que, pela profundidade das idéias, a sua extensão até
que é pequena.
- Diplô - Quais são as principais críticas que o senhor faz à Alca?
Samuel Pinheiro Guimarães - A Alca é um projeto de criação de um território
econômico único, onde não haverá nenhuma barreira para circulação de bens,
tarifárias e não tarifárias. Nessas condições, o Estado brasileiro abdica
da possibilidade de ter política comercial, porque não pode ter mais nenhum
obstáculo ao comércio. Se abdica da possibilidade de ter política
comercial, abdica também da possibilidade de ter política industrial,
porque abre mão de uma parte importante dessa política que é a proteção a
novos investimentos. Sem política industrial perde sentido a política
tecnológica, pois ela só faz sentido se gerar uma inovação que vai reduzir
custos no processo produtivo, gerar um novo produto. Por isso a Alca
impedirá o desempenho econômico brasileiro. Ela tem efeitos muito graves
sobre o mercado, a mão-de-obra, a exclusão social, e inclui efeitos
políticos extraordinários. Ela vai impedir que a sociedade brasileira tenha
os instrumentos necessários para desenhar e aplicar as políticas públicas,
fundamentais para enfrentar as profundas desigualdades, que são
características marcantes do país.
- Se a Alca não se limita ao comércio, como o acordo agirá sobre os outros
setores econômicos?
Do ponto de vista dos serviços, isto é, empresas financeiras, de saúde, de
educação, de consultoria, todas teriam o mesmo tratamento. Não haverá
nenhum obstáculo na movimentação do capital: tanto o capital financeiro
como o de investimento poderiam atuar, em princípio, em qualquer setor e em
qualquer país. Nenhum país poderá estabelecer restrições nem disciplina
para o capital de outro país. Por exemplo: não se poderá exigir que os
investimentos feitos no país se comprometam a exportar uma parte de sua
produção, ou a usar mão-de-obra local. Não poderá haver nenhuma
discriminação nas chamadas compras governamentais. Os Estados recolhem
recursos, distribuem e gastam com funcionalismo, mas também com obras e
serviços de saúde, com compras de livros para as escolas. Quanto maior o
Estado, maior a receita, maior o equipamento, e maiores suas contas. Hoje
um Estado pode privilegiar suas empresas. Com a Alca não poderá mais. Ou
seja, uma empresa qualquer, localizada em qualquer país das Américas,
poderá participar das concorrências públicas com igualdade de condições. Na
área tecnológica, querem reforçar as regras que protegem os detentores de
tecnologia, que são as grandes empresas. Na agricultura, em princípio, a
idéia é não haver qualquer subsídio à produção nem à exportação de produtos
agrícolas. Isso cria um território econômico único nas Américas. Na
prática, uma anexação.
- Quais as principais conseqüências do acordo para o Brasil, levando em
conta a desigualdade social, que o senhor cita como uma das marcas do País?
A sociedade brasileira é marcada por duas características fundamentais: as
profundas disparidades sociais - que são de natureza econômica, cultural,
regional, racial, política e tecnológica - e uma vulnerabilidade externa
crônica. Existe uma grande disparidade de renda, definida como rendimento
do trabalho; mas muito maior é a disparidade de riqueza, pois é grande a
concentração de propriedades rurais, urbanas e mobiliárias. Há também
disparidades educacionais: existem pessoas altamente qualificadas e pessoas
que não tiveram educação nenhuma, informal ou formal. Depois temos as
disparidades tecnológicas. Dentro da sociedade brasileira convivem pessoas
que utilizam instrumentos usados desde a descoberta do Brasil, como um
enxada, ao lado de fazendas altamente mecanizadas. Na indústria existem
sapatos feitos de forma artesanal e fábricas modernas. Existe ainda a
disparidade política: há pessoas que não têm idéia de como funciona o
sistema político e exercem o seu direito de cidadania uma vez a cada quatro
anos, não têm nenhuma influência; e outros, que têm uma influência enorme
no processo de escolha, de eleição dos candidatos, no executivo, no
legislativo e no judiciário. Estas disparidades se concentram dentro das
regiões. A soma destas características resulta no fato de que cerca de 50
milhões de brasileiros vivem com menos de 80 reais por mês, e mais de 30
milhões com um pouco mais do que isso. Um terço da população brasileira
vive com cerca de um dólar por dia. Estas pessoas são as mesmas que vivem
em habitações precárias, não têm riqueza nem educação. Para enfrentar esse
grande desafio, que é incorporar 50 milhões de pessoas no mercado de
trabalho e superar gradualmente essas grandes disparidades, só com a ação
do Estado, com um projeto nacional, com políticas públicas. E isso estaria
impedido com a Alca.
- O senhor tem afirmado também que a Alca agravaria nossas vulnerabilidades
externas ...
As vulnerabilidades externas são políticas, econômicas, tecnológicas e
ideológicas. As econômicas estão sumariadas no déficit do balanço de
pagamentos e na necessidade de pagar a amortização de empréstimos públicos
e privados. Temos, por isso, uma dificuldade enorme de gerar um superávit
comercial saudável que significa um aumento das exportações, um aumento das
importações e um superávit. O Brasil também paga muito por tecnologia
importada e não gera própria. Existe também a vulnerabilidade militar,
gerada pelo fato de o Brasil ter aderido a acordos desiguais, ter a
obrigação de não ter estoque de armas e concordar que outros países a
tenham, que é diferente do desarmamento. Nos acordos políticos,
apresentados como muito positivos para a humanidade, o que ocorre é que os
países poderosos continuam com suas armas nucleares, biológicas e químicas
e proíbem os outros de as terem. O Brasil, ao aderir a estes tratados,
aceitou uma situação de vulnerabilidade militar no meio de grandes
conflitos. Se estivéssemos num mundo de paz, estaria tudo bem. O Brasil tem
15 mil quilômetros de fronteira. De onde vêm as armas utilizadas pelos
criminosos? São todas contrabandeadas e entram pelas fronteiras
desguarnecidas. O Brasil tem dez países vizinhos. Uma situação de
instabilidade política, social, econômica deles gera possibilidade de
conflitos internos que podem passar para o outro lado da fronteira, então é
necessário que elas sejam guarnecidas. A vulnerabilidade política significa
que o Brasil não participa dos organismos de decisão em nível
internacional. Não tem influência no Conselho de Segurança das Nações
Unidas, tem pequena influência no Fundo Monetário, no Banco Mundial, na
própria Organização Mundial do Comércio e não participa do G8. Por fim,
temos uma grande vulnerabilidade ideológica. Há uma profunda penetração da
mídia e das agências de notícias na formação do imaginário nacional. A
visão que nós temos dos acontecimentos nos é dada por outros. Tudo que
vemos nos jornais sobre o Afeganistão é versão dos outros. Se a gente quer
saber do Chile, não consegue, porque as agências de notícias privilegiam os
países centrais. A criação do nosso imaginário cultural é feito pela
televisão, pelo cinema. Há uma hegemonia cultural norte-americana enorme. A
maior parte dos filmes e notícias têm origem nos EUA. Tem também a política
de que todo brasileiro deve saber inglês, o que cria um vínculo cultural
muito grande. Não há formação de material cultural no Brasil que permita
termos uma idéia do mundo e de nós mesmos adequada. Falta auto-estima.
- O Brasil tem condições de superar essas desigualdades e vulnerabilidades?
O Brasil não é um país comum. Se fizermos uma lista com os dez maiores
países do mundo em território, uma com os dez maiores países em população e
uma com os dez maiores países em PIB (Produto Interno Bruto), há três que
aparecem nas três listas: os Estados Unidos, a China e o Brasil. O Brasil é
do porte destes países. Não é do porte da Holanda nem mesmo da França. Ter
o território grande significa que o Brasil tem o maior estoque de
biodiversidade e de água doce do mundo. Isso permite que o país tenha
recursos naturais necessários para o desenvolvimento, não seja tão
dependente. Temos auto-suficiência de energia elétrica. É claro que as
políticas podem levar a uma crise de energia, mas isso é por incompetência
não é por falta de recursos naturais. Temos recursos necessários para
diversas atividades industriais e para o abastecimento da população que
outros países, como o Japão, não têm. Temos uma grande população, o que é
fundamental do ponto de vista político internacional. Por isso podemos ter
um grande mercado interno e depender menos dos mercados externos, como é o
caso dos Estados Unidos. Eles têm uma economia poderosa porque têm um
enorme mercado interno. Desse modo pode haver todo tipo de produção. Quem
diria, no passado, que iríamos nos especializar em produzir aviões? O
Brasil já acumulou capital e conhecimento para produzir os mais diferentes
produtos. Tem uma enorme indústria petroquímica, siderúrgica, de papel e
celulose, de alumínio, de metalurgia e de bens de consumo. A propriedade
não é brasileira, mas a indústria está aqui, fisicamente. Por isso o Brasil
precisa desenvolver suas potencialidades, estabelecer políticas que
interessem ao seu desenvolvimento. O Brasil não precisa da Alca para fazer
isso.
- A Alca não poderia contribuir para ter esse desenvolvimento?
Como ter igualdade de condições, se as empresas, no Brasil e nos EUA, são
tão desiguais? O déficit brasileiro vai certamente aumentar em relação aos
EUA, assim como a nossa competição com eles e com outros países da América
Latina. Qual é a vantagem do Mercosul? As empresas brasileiras instaladas
no Brasil, de capital brasileiro ou não, ao exportar para a Argentina
pagavam tarifa zero, enquanto as empresas americanas pagavam tarifa. Quando
a Alca entrar em vigor esta tarifa acaba. O caso do México com o Nafta é
ilusório, porque o 48% de aumento das exportações são das maquiladoras.
Esses fatos estatísticos não refletem valor agregado. Os produtos das
maquiladoras, em geral, vêm do território americano e são montados. O que
agrega de valor é muito pouco. É como se você mandasse a sua blusa para o
México, importando a 20 dólares. Lá costuram um botão, o que custou 1
dólar, então volta para os Estados Unidos com valor de 21 dólares, então
qual foi o aumento do comércio? 41. Mas, na realidade produziram no México
por 1 dólar. No México aumentou a concentração de renda, aumentou a
pobreza, a situação na área das maquiladoras é gravíssima, as condições de
trabalho são terríveis. A internacionalização é muito grande e não houve
aumento da renda média do trabalhador, apesar de ter aumentado a renda
total do país.
- Alguns economistas dizem que o Brasil exporta a metade do que poderia
exportar, levando em conta o seu PIB. A Alca não ajudaria a alterar isso?
Isso é um equívoco. O que está acontecendo na área comercial é que a maior
parte do comércio, inclusive o brasileiro, é entre firmas, isto é, a Fiat
do Brasil exporta para a Fiat da Itália, a Ford do Brasil exporta para
outras Ford. É um comércio entre multinacionais. A idéia de que Brasil
teria que exportar mais para ter um PIB maior é ridícula. Os países
pequenos se especializam em poucos produtos e, como não produzem nada, têm
que importar muito. Um país maior acaba tendo a relação de comércio
exterior com o PIB menor. Não existe livre comércio nem no mundo nem no
Brasil. Vamos supor que as exportações brasileiras aumentassem com a Alca.
E as americanas, e as canadenses, e as australianas? Só o Brasil iria se
aproveitar? No caso do comércio exterior brasileiro, foi a ação do Estado
em relação às empresas que diversificou a pauta de exportação do Brasil ao
criar os programas de incentivos fiscais. Quando você desnacionaliza seu
parque industrial é mais difícil, porque não há empresas que sejam
independentes. A Volkswagen do Brasil não vai disputar mercado com
produtoras de veículos como a Volkswagen da África do Sul, porque é a mesma
empresa. Já os coreanos disputam mercado na área de automóvel, porque as
empresas são deles. O parque automobilístico brasileiro é da indústria
estrangeira. E também não existe sentido em orientar toda a idéia de
transformar o Brasil em um país agrícola ou produtor de produtos primários.
Toda a idéia do desenvolvimento é você sair dos mercados mais difíceis e
entrar naqueles em que você tenha poder, possa criar uma política de preços
e ser um dos maiores. São as marcas, a distinção de que só a sua empresa
sabe fazer aquele tipo de produto. Além disso, existe uma série de regras
do comércio internacional que dificultam as exportações. Precisa haver uma
política comercial ativa.
- Existe um argumento também de que a Alca atrairia investimentos para o
Brasil.
É outro equívoco. O Brasil, por exemplo, é em si mesmo uma área de livre
comércio, no sentido em que não há obstáculos nas exportações de São Paulo
para Minas. É mais do que livre comércio, é uma união econômica. Não foi
sempre assim. Até a revolução de 30 havia impostos interestaduais. Qualquer
empresa pode se instalar no Rio, em São Paulo, em Minas, e o que aconteceu?
Um processo natural de concentração de riquezas, especialmente em São
Paulo. Por quê? A teoria econômica explica que há um processo de causação
circular: o círculo virtuoso. Por uma razão histórica - café, indústria,
imigração etc - todo o investimento estrangeiro no Brasil tem a tendência
de ficar nas áreas mais desenvolvidas. Mas por que a fábrica da Mercedes
Benz não se instalou numa região de São Paulo? Porque em Juiz de Fora ela
recebeu uma vantagem fiscal. O que é a guerra fiscal do Brasil? É a
tentativa de reverter estes elementos naturais. Os Estados menos
desenvolvidos oferecem mais vantagens para tentar atrair investimento. Na
Alca, qual é a área mais desenvolvida? Os Estados Unidos, que têm 80% do
PIB das Américas; junto com o Canadá e México. Onde é que o investimento
estrangeiro iria se estabelecer? Se não houver outro atrativo, como o
minério, lá. E de lá exportar uma parte para cá, é óbvio, pois não teria
tarifa nenhuma. E as atividades intensivas de trabalho ficariam nas áreas
de mão-de-obra mais barata.
"EUA subsidia sua indústria pelo orçamento militar que é de 400 bilhões de
dólares"
Segundo o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, negociação com a Alca "é
como se um condenado à morte estivesse negociando com um carrasco como ia
ser a execução, e a vítima chega à conclusão de que talvez o melhor seja a
guilhotina". A entrevista com o embaixador, que foi demitido do cargo que
ocupava por Fernando Henrique por defender interesses brasileiros contra os
EUA, foi recentemente publicada na revista "Cadernos Diplô", vinculada ao
"Le Monde Diplomatique" - cuja versão em português é publicada pela mesma
equipe no site www.diplo.com.br. Com autorização da "Cadernos Diplô",
reproduzimos nesta edição a segunda parte da entrevista com o embaixador
- Diplô - Do ponto de vista político, como a Alca afetaria o Brasil?
Samuel Pinheiro Guimarães - Num país como o Brasil, com desigualdade e
vulnerabilidade, o livre jogo das forças de mercado não resolve estes
problemas. As empresas jamais empregarão 50 milhões de pessoas, inclusive
porque estas pessoas não têm qualificação profissional. Além disso, cerca
de 1 milhão de pessoas por ano ingressam no mercado de trabalho no Brasil.
Para empregar, tem que orientar, privilegiar certos tipos de tecnologia
industrial. Tem que ter políticas públicas, orientar as atividades
econômicas para enfrentar as disparidades. E com a Alca, se for igual ao
Nafta, pode acontecer de o fato de o Estado ter escolas grátis ser
considerado concorrência desleal, porque prejudica as instituições de
ensino privado.
- Isso se estende a todas as áreas?
No capítulo 11 do Nafta, as empresas podem processar os países se
considerarem que as políticas estatais reduzem os seus lucros. E a Alca vai
ser igual ao Nafta. Os americanos já propuseram exatamente isso. Existirá
uma dificuldade de o Estado ter uma ação direta na economia, pois um dos
grandes objetivos dos EUA com a Alca é ter acesso aos recursos naturais. O
México até conseguiu preservar o petróleo, mas os Estados Unidos sabem que
com o tempo e com as dificuldades da balança comercial do México, isso
eventualmente será resolvido. Eles terão que abrir o setor de petróleo de
uma forma ou de outra. Por exemplo, a UPS, empresa norte-americana de
entrega de encomendas, está processando o Canadá, alegando tratamento
discriminatório, porque o Correio canadense, um serviço público, faz isso.
- Do ponto de vista dos EUA, quais os grandes objetivos estratégicos com a
Alca?
Existem objetivos militares, econômicos e políticos. A partir de 1989,
apesar da aparência em contrário, o mundo se tornou mais multipolar. Hoje
existe a consolidação da Europa, do Euro, a consolidação da China, que
cresce 10% ao ano há uma década. A Alca, dentro da estratégia norte-
americana, aparece como uma consolidação da sua base territorial. Não que
eles tenham perdido a idéia de ter uma estratégia mundial. Eles querem é
assegurar este mercado, o acesso aos recursos naturais, principalmente ao
petróleo, que é fundamental para a economia deles. Mas querem diversificar
as fontes para não depender tanto do Oriente Médio, que é um barril de
pólvora. Existem grandes jazidas no México, na Venezuela e algumas no
Brasil. No aspecto militar, interessa o desarmamento da periferia, a
transformação das Forças Armadas em forças policiais. É pela idéia da
segurança que passa o subsídio industrial nos EUA, pois a política
industrial deles é feita pelo orçamento militar, que é cerca de 400 bilhões
de dólares por ano, quase o PIB brasileiro. Como é que se faz armas? Com
aço.
- Por que alguns setores brasileiros defendem a Alca?
Faz parte de uma visão do sistema econômico que diz que as dificuldades da
economia brasileira no passado resultaram da intervenção do Estado, da
regulamentação, do fechamento da economia ao capital estrangeiro. Isso
levou a estelionatos, crise de pagamentos, etc. A estratégia, portanto, é
liberalizar, desnacionalizar, abrir capitais a qualquer custo. É uma visão
que corresponde à visão política de que o mundo é bom, pacífico, todos vão
cooperar com todo mundo, os capitais virão para o Brasil, desde que ele
seja um país normal. Normal significa um país que não tem armas, que abre
unilateralmente a sua economia, não cria casos como os países
desenvolvidos. A estratégia é acabar com as tarifas porque a tarifa
distorce, protege mais um setor do que outro. Segundo eles, para promover a
liberdade das forças de mercado não deve haver nenhuma intervenção do
Estado.
- Como o senhor vê a discussão sobre um projeto nacional?
Projeto nacional é um conjunto de políticas públicas, ou seja, de
instrumentos que o Estado tem para influir sobre as atividades econômicas,
emprego, educação. Política econômica é criar um mercado interno, expandi-
lo, não ter disparidades, aumentar a produtividade, a competitividade e, ao
mesmo tempo, aumentar empregos. O êxito de uma sociedade não está no
aumento das exportações nem ingresso do capital estrangeiro, está no
aumento da capacidade instalada e do emprego. Aqui o capital estrangeiro
entrou para usar a capacidade instalada e não para aumentá-la.
- Entre alguns setores, mesmo de oposição a esta política atual, fica
parecendo que a questão é escolher entre a Alca e o Mercosul, ou a Alca e a
União Européia. É por aí?
É a mesma coisa. Na União Européia existem a indústria alemã, a italiana, a
francesa, altamente competitivas, que sobrevivem ao mercado internacional.
O efeito é o mesmo. Deixará de haver tarifas com estes países.
- Como o senhor avalia a conduta do governo nas negociações?
É um processo de acomodação, para chegar a uma posição que é comum. O
objetivo dessa negociação em si é negativo. Você não está negociando uma
coisa que pode ser boa. É como se um condenado à morte estivesse negociando
com um carrasco como ia ser a execução, e a vítima chega à conclusão de que
talvez o melhor seja a guilhotina. Definido isso, continua a negociação. O
Brasil havia definido quais eram as condições para participar, que era
negociar todos os temas ao mesmo tempo, depois negociação por blocos, e que
o Mercosul negociaria em conjunto com o Nafta. Depois, estabeleceram as
condições de eliminação de todos os subsídios à produção, à exportação, dos
obstáculos ao acesso de mercado, e que os Estados Unidos aceitariam rever
sua política de proteção. No entanto, os EUA já declararam oficialmente que
não vão negociar os seus produtos agrícolas nem sua legislação de proteção
comercial. Estão negociando separado, país por país, com o Chile, com o
Uruguai. Portanto, as condições, que o próprio presidente da República
declarou que seriam preliminares para que a Alca pudesse ser aceita pelo
Brasil, já não estão sendo obedecidas. No entanto continuam negociando.
- O senhor acha que a sociedade está informada sobre esse processo?
Uma parcela cada vez maior da sociedade brasileira está criando consciência
sobre a importância destas negociações, que são absolutamente
antidemocráticas e autoritárias. Esse é um tipo de acordo que é tão amplo,
que envolve aquilo que normalmente é feito pelo Congresso. Mas está sendo
feito pelo Executivo brasileiro, sem conhecimento por parte da sociedade
dos detalhes do que vai ser decidido. Sairá do Brasil aprovado e será
transformado em lei. No fundo, a legislação econômica brasileira está sendo
elaborada não pelos seus representantes legais, os deputados e senadores,
que são os escolhidos para isso, mas por um grupo de pessoas do Executivo.
- A indústria cultural americana já exerce um poder enorme no Brasil. Como
vai ficar este setor com a Alca?
A Alca não tem mecanismos específicos na área da cultura, porém a idéia é
que não haja nenhuma restrição à produção cultural estrangeira. Não será
possível estabelecer proteção à produção cultural local. Já existe um
domínio das gravadoras na área de música, e começará a influência nas
editoras, nos jornais, na televisão. O importante é garantir a diversidade
e lutar contra o monopólio cultural. Basta ter uma política que estabeleça
que não pode existir uma exibição maior do que a produção brasileira em
algum veículo. Quem quiser exibir só 10% de filmes brasileiros pode, mas
não pode exibir 11% americanos. Tem que exibir também filmes italianos,
iranianos. É uma estratégia que não é restrição e sim uma maneira de
diversificar as manifestações culturais.
* Transcrito do jornal Hora do Povo, edições de 03 e 06/12/2002