O nosso Brecht
29/11/2002
- Opinión
De tanto olhar para o norte, os brasileiros estão perdendo a possibilidade de
conhecer um país extraordinário, que tem entre seus "defeitos", o de ficar ao
nosso sul, espremido entre o Brasil e a Argentina. Falar do Uruguai para nós é
só recordar o passado, aquele 16 de julho de 1950 em que, como disse com
fatalismo aquele livrinho "nunca mais ganharemos a Copa de 50", mesmo que
já tenhamos ganho cinco desde então.
Mas não é a garra da "celeste olímpica" o que dá ao Uruguai o caráter
extraordinário que os brasileiros têm dificuldade em apreender. Eu diria que
sua civilidade, seu caráter republicano, suas conquistas sociais e seu nível
cultural – especialmente literário – dão ao Uruguai esse caráter, fazem dele
um país notável, tão notável, que nunca foi escolhido pelo FMI e pelos
organismos financeiros internacionais como modelo. Por boas razões, para
nós.
Bastaria ter um ficcionista como Juan Carlos Onetti, um crítico literário como
Angel Rama, um poeta como Mário Benedetti, um músico como Daniel
Viglietti e, como se não bastasse, alguém que sintetiza de forma original
ficção, ensaio, poesia, crítica cultural, como Eduardo Galeano – o Brecht da
América Latina.
O Brasil é dos poucos países da América Latina – e pode-se incluir a Espanha,
a Itália e Portugal nessa lista – em que as extraordinárias crônicas de Galeano
não são publicadas regularmente pela grande imprensa - um sinal a mais do
provincianismo de uma grande imprensa que se pretende cosmopolita porque
reproduz "on line" artigos do Wall Street Journal e do Financial Times.
A publicação de um livro de Eduardo Galeano deveria ser grande destaque na
imprensa cultural brasileira. Quando fui perguntado por um sumplemento
cultural sobre que livro recomendaria para compreender os tempos de virada
de século, propus que fosse "De pernas pro ar", a melhor alegoria e o melhor
instrumento para entender tempos como estes.
Pois bem, saiu um novo livro de crônicas de Galeano no Brasil – edição feita
especialmente para o Brasil com seleção de alguns de seus últimos trabalhos,
sob pressão de Eric Nepomuceno e minha – e até agora não vejo nenhuma
referência na imprensa brasileira, nem sequer aquelas notinhas preguiçoas
para dar conta apenas de que o livro existe.
E no entanto Galeano é quem melhor capta, no sentido brechtiano da palavra,
os nossos tempos. Ele consegue sintetizar, reunindo sensibilidade, estilo,
cultura e agudo espírito crítico – como estes tempos demandam – para
produzir os ensaios ao mesmo tempo mais sintéticos, mais profundos e de
maior acesso ao grande público com que podemos contar.
Este novo livro recebeu o nome de "O teatro do bem e do mal", publicado na
coleção de bolso da L&PM, editora gaúcha que mantêm, com grande mérito,
uma coleção com grandes textos em formato pequeno e preço acessível (entre
outros, o compêndio do essencial do Millor, para ter na cabeceira, por 20
reais). Talvez por isso tenha passado despercebido para uma crítica cultural
que se acostuma com os livros como bens estéticos, sofisticados, para comprar
e exibir na sala, com preços altos e tiragens pequenas (e porcentagem de
leitura real ínfima). No entanto essa coleção coleciona títulos e milhões de
exemplares vendidos.
No livro Galeano reúne artigos do final do século, mas principalmente do
começo deste, desde aquele memorável que dá nome ao livro, passando por
uma série deles que conseguimos ler na internet ou, vez por outra, por
exceção, em alguma publicação brasileira. São crônicas que continuam o
enfoque do mundo de cabeça para baixo.
Sabemos ou colocamos a atenção sobre fenômenos significativos, como por
exemplo que a Arábia Saudita, que vende um milhão de barris de petróleo
diários para que os EUA se mantenham como o país que mais contamina o
mundo, proíbe os partidos políticos e os sindicatos, decapita ou mutila os
prisioneiros políticos e não permite que as mulheres dirijam automóveis, nem
que viajem sem permissão do marido ou do papai. Ficamos sabendo que o
homem guindado a presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, trabalhava até
agora para a empresa petrolífera norteamericana Unocal, da mesma forma que
atual representante do governo dos EUA em Cabul e que essa parceria está
permitindo que seja concretizado o sonho dessa empresa: a construção de um
gasoduto que permitirá a saída do gás do Mar Cáspio para o Ocidente, através
do território afegão.
Ficamos sabendo que a felixibilização laboral da globalização neoliberal
permite que um operário da Nike na Indonésia tenha que trabalhar cem mil
anos para ganhar o que ganha, em um ano, um executivo da Nike nos EUA.
Galeano nos recorda como o FMI proibiu o Haiti, o país mais pobre do
hemisfério, de utilizar subsídios que protegeriam indevidamente sua produção
de arroz. Como resultado, o Haiti passou de produtor de arroz a um dos quatro
maiores importadores de arroz dos EUA, enquanto seus trabalhadores morrem
sendo exportados e tentando cruzar o mar na direção dos EUA em precárias
balsas. E nos recorda a nós, brasileiros, que dos 81 operários da Petrobrás
mortos em acidentes de trabalho nos últimos três anos, 66 estavam a serviço
de empresas terceirizadas que não cumprem as normas de segurança.
E, para completar esta mostra (o resto pode ser lido por 10 reais, o preço do
livro), a constatação de Galeano de que: "O problema de Jack, o Estripador, é
que estava mal assessorado. O pobre Jack não tinha agentes de relações
públicas que maquiassem sua imagem, nem expertos em publicidade, que
bendisessem seus atos."
https://www.alainet.org/es/node/106735
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