Eleições no Brasil, o caldo do rei Jacques e Bush

19/10/2002
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A ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder no Brasil traz de volta o debate nas esquerdas entre "partido de mudança" e "partido da ordem". Ouço dizer que o PT, que nasceu como partido da mudança, teria se tornado um partido da ordem, apto a governar junto com as elites tradicionais e em sintonia com as instituições financeiras multilaterais. Para os que assim pensam, essa suposta auto-desmontagem do PT encerraria um ciclo histórico e revelaria as dificuldades imensas, postas pela globalização, às propostas de mudança. O "fim" do PT abriria, em conseqüência, um vazio no lado esquerdo do espectro político nacional. Neste artigo, vou argumentar que separar analiticamente "ordem" e "mudança" é laborar no plano abstrato, ou dos duelos lógicos, e não enxergar como se dá a luta política no plano concreto. Conta-se que o rei Jacques I mandava ferver ainda vivas as mulheres suspeitas de bruxaria, provava o caldo e, pelo gosto, dizia : "É feiticeira", ou: "Não é feiticeira". Está aí a imagem da ordem que recorre à violência (é ou não é, certo ou errado) como único meio de comunicação entre as pessoas. A violência caracteriza-se fundamentalmente pela supressão de toda relação de reciprocidade, pela supressão da dimensão política da sociedade, ou das relações de poder político, que não é outra coisa senão o jogo da alternância do poder. Para que haja política, é preciso que existam não somente ganhadores, mas também perdedores. Um poder inacessível a uma das partes, como o poder do rei Jacques, o do reino dos céus ou o de um destino inexorável não é poder político, e sim o poder da violência. É dizer que a política não vive da ordem estabelecida pelo rei Jacques, supostamente de origem divina, e sim de atores que buscam ocupar posições de poder mediante o deslocamento dos adversários, segundo regras assumidas como legítimas de comum acordo, num processo recorrente. Em se tratando do exercício do poder político na democracia, enfrentam-se grupos de atores empenhados em conquistar a adesão de sua audiência mediante propostas conflitantes entre si, que se apresentam, cada uma por sua vez, como a única capaz de resolver todos os problemas da humanidade. Em contraste com a metáfora da ordem do rei Jacques, tem-se, na caracterização do poder político, a metáfora do humorista filósofo Luís Fernando Veríssimo, que expõe numa de suas crônicas o drama interior que dilacera o turista: enquanto o seu paladar, aventureiro, quer viajar em busca de novos sabores, os seus intestinos, sedentários, querem permanecer em casa, digerindo a mesma dieta. Eis o conflito que, se resolvido em proveito excludente de um ou de outro, além de eliminar o outro — a parte que teria perdido a contenda — elimina ipso facto a pessoa do próprio turista: não há como viajar desacompanhado de ambos. Assim, a pessoa do turista, para se exercitar no desafio prazeroso e arriscado de ser turista, precisa necessariamente de seu conflito, da mesma forma como a noite precisa do dia e Deus do Diabo, já que o turista, que preza a si mesmo, não quer desapontar as razões convincentes de seus intestinos, nem as razões legítimas de seu paladar. Ele as acolhe em si como um pai ao filho. Partes conflitantes, é verdade, mas é nelas e graças a elas que ele se reconhece como um turista estimulado a partir ou a permanecer em casa. Todos sabemos — a despeito das aparências, que podem dissimular cólicas nos intestinos por mudança da dieta ou protestos do paladar por não suportar comer mais a mesma coisa — que ocorrem momentos em que tamanha é a tensão do drama que se tem a impressão de que o turista será partido ao meio. Se o turista se decide, enfim, partir, não é porque consegue atenuar ou conciliar os interesses conflitantes, como se acredita equivocadamente, a propósito dos pactos políticos ou dos desentendimentos entre os casais. Pois as partes conflitantes seguem junto, ainda mais teimosas que antes na sua oposição: os intestinos ainda mais temerosos de novas experiências gastronômicas e o paladar ainda mais desejoso de provar novos sabores. Ele parte em viagem por razão inversa: é a exacerbação do conflito, no transbordar da crise, que o estimula a partir. E se ele embarca inteiro, paladar e intestinos juntos — sistemas racionais logicamente opostos entre si — é porque consegue enlaçá-los na solidariedade que os une, ele próprio, o sujeito, que não é intestino isoladamente, nem paladar isoladamente. Assim pode dizer-se que conflito e solidariedade, ordem e desordem, permanência e mudança são pares de opostos includentes que não podem separar-se, sob o risco de se perder a unidade da pessoa do turista, ou a dimensão política da sociedade. Observo que tudo na vida, fora do plano da abstração, encontra-se em estado de mudança. Assim, por exemplo, o espaço institucional da Constituição e da democracia não é estático: as letras da lei são fixas, mas essa fixidez é apenas aparente, porque a lei expressa o estado da correlação de forças em cada momento. As forças sociais e políticas que operam dentro do marco institucional puxam cada uma para o seu lado, para a ordem ou para a mudança, supostamente sempre dentro da lei. Ao expressar a mesma idéia, Machado de Assis escreveu que a Constituição é uma sopa na qual cada um mete a sua colher e retira dela o que lhe convém. Assim, pode dizer-se que a letra da lei e a sua interpretação divergente associam, de modo inseparável, a ordem e a mudança. O pacto institucional não passa de um pretexto assumido por cada um dos lados para continuar discordando na sua concordância. Como diz um fazedor de frases, há dois problemas que ameaçam o mundo: a ordem e a desordem, quando consideradas abstrata e isoladamente. Na realidade, porém, ordem e desordem disputam, de modo indissociável porém distinto, um mesmo espaço unitário de possibilidades. Estabelecer a linha divisória que separa ambas é o verdadeiro objeto da disputa, jamais alcançado, e isso é o que caracteriza toda ação, incluída a ação no espaço político. A disputa consiste no esforço incessante e recorrente de se remarcá-la, para ver ampliado o espaço conquistado, no caso de vitória relativa, ou reduzido, na hipótese contrária. Além do conflito e da solidariedade coexistentes na pessoa do turista, há muitas coisas que a lógica não consegue explicar. Assim, por exemplo, a borboleta, ao se repetir (ordem) como borboleta, transforma-se (mudança) em pupa; e a pupa procede do mesmo modo. Como é possível, no ciclo da metamorfose, transgredir pela repetição e repetir pela transgressão? A mesma coisa ocorre com um gesto humano. Ninguém é capaz de repetir o mesmo gesto nem desempenhar por duas vezes um papel do mesmo modo: o gesto, ao se repetir, inova e ao inovar, repete. O papel da pessoa repete, enquanto a pessoa ao desempenha-lo inova, tudo a um só tempo. Encontro explicação para esse aparente paradoxo no seguinte. O espaço no qual transcorre a ação política não é dado de antemão aos contendores. Esse espaço é construído e reconstruído de modo recorrente no seu entrechoque. Assim como ocorre no diálogo e em toda negociação, os atores que constituem esse espaço comum não são abstrações, como o são os papéis sociais que uma pessoa desempenha. Por detrás desses papéis, a sustentá- los, estão pessoas de carne e osso, seres de mudança, capazes de mudar as instituições, a si mesmos e a seus papéis sociais, como resultado das interações (negociações) com seus próprios papéis e com os papéis que os outros desempenham. Esses atores tecem no jogo político um tecido de caráter ambivalente (ordem e mudança a um só tempo); não são portadores de uma mensagem de sentido unívoco, de ordem exclusivamente, ou de mudança, exclusivamente. Ordem e desordem andam necessariamente juntas. Se na luta de classes estivesse em jogo somente a luta de classes, a linha divisória seria nítida. Abstrações, como classes, papéis, funções, são, por definição, estáticas e dicotômicas: é sim ou não. A realidade da luta de classes, porém, é complexa. Há algo mais na luta de classes do que as classes em luta. Intestino e paladar opõem-se um ao outro como as classes em luta, oposição excludente: um ou outro. Se se introduzir no modelo a pessoa do turista — ou seja, o contexto da disputa —, a oposição torna-se includente: um e outro, no conflito e na solidariedade. Ou seja, não vencem as razões dos intestinos, isoladamente, nem as razões do paladar, isoladamente. Vencem as razões da pessoa do turista — a unidade da complexidade, que caracteriza a reposição recorrente do espaço político. Trata-se de um contexto unitário, como são todos eles, disputado por referências conflitantes: enquanto uns visam à manutenção da ordem, pela mudança da ordem visada por outros, estes visam à mudança da ordem dos outros, para a implantação de sua própria ordem. Se alguém conseguisse separar a ordem da desordem, para que pudessem repetir-se na pureza de suas respectivas ortodoxias, o espaço da política seria desfeito, abrindo caminho para a violência. Machado de Assis expressa a mesma idéia, em seu livro "Esaú e Jacó", ao criar o personagem Santos, que é barão e banqueiro ao mesmo tempo, papéis opostos entre si, que se digladiam sob a mesma pele: enquanto o banqueiro quer que a República venha, o barão não quer que o Império se vá. O barão não quer a República, porque esta não lhe reconhece a aristocracia, como símbolo de prestígio, status e poder; o banqueiro não quer o Império, porque este não lhe reconhece o dinheiro, como símbolo de prestígio, status e poder. Se não se admitir que ambos os papéis exercitam a afirmação e a defesa de sua autonomia num espaço político comum ambivalente, no qual se entrechocam as forças que disputam a primazia de emprestar sentido real, prático, concreto à sua ação, não se terá a transição. Na hipótese de que se oponham frontalmente um contra outro, assim como o Zero binário se opõe ao Um binário, a transição, que é metamorfose, não ocorre. Um estado de coisas não remove abruptamente um outro estado de coisas, assim como a borboleta não remove abruptamente a pupa da qual ela provém. São processos, transição de um estado para outro. A realidade, ou seja, o ponto de aplicação de nossa atenção, é em si mesma um estado de mudança. Assim, não há globalização uniformizadora ("ordem") sem conflito diferenciador ("desordem"), um conflito que é criado e resulta do modo singular como as diversas economias nacionais nela inserem a sua autonomia, para o melhor ou para o pior: tudo depende da evolução da disputa no espaço comum da política internacional no qual o processo transcorre, assimétrico, sem dúvida, mas um espaço disputado. Dizer que o mais forte já ganhou é lucubrar no abstrato, fora da realidade contextual, necessariamente conflitante e de resultados imprevisíveis. A rede do mexerico, que é um processo comunicativo (interativo), similar ao espaço político, contribui tanto para a estabilidade quanto para a instabilidade das instituições. Não de modo seqüencial, cada uma por sua vez, mas simultaneamente. Assim, o falatório sobre o ganho fácil dos políticos, sem contrapartida no trabalho, é denunciado como corrupção na contratação de obras públicas, uma denúncia que contribui ao mesmo tempo para a mudança dos costumes e para a estabilidade das finanças públicas. O tecido, que é elaborado no espaço político, não é independente dos tecelões. No processo de construção da transformação não há nenhum espaço preestabelecido, ou uma lógica que a preceda, e sim atores que, ao interagirem sob o influxo de um determinado estímulo, captado como tal pela referência do contexto que os orienta, vão configurando a si mesmos e ao próprio tecido, no embate com o lado adversário. Isso não quer dizer que o espaço político, ao ser tecido, é caótico ou desprovido de lógica; pois a lógica de que se trata nesse contexto não é uma lógica abstrata, externa ao contexto político, e sim uma lógica prática e includente que se configura no processo de auto-construção do espaço político pelos atores que dele participam. À medida que o tecem, e que o espaço se amplia, os seus autores vão conquistando, paulatinamente, determinadas porções da realidade. Jamais de modo completo, definitivo, auto-suficiente, embora autônomo, mas compartilhado no conflito — isso é o que caracteriza e define a contextualidade na política ou em outra parte. E assim, mediante a ação política, a sociedade deixa de ser objeto ou coisa, como quer o neoliberal, para adquirir a condição de processo. É impossível ao espaço político, portanto, fixar seus limites de uma vez por todas em determinado tempo e lugar. Numa democracia, os partidos políticos são, por definição, instrumentos a serviço da ordem e da mudança. Ao mesmo tempo que os partidários concordam em operar dentro do marco institucional, a sua ação somente se justifica ao se opor a um determinado estado de coisas, para o melhor ou para o pior, para a direita ou para a esquerda: não existe estabilidade. As revoluções somente são possíveis na ausência de uma instância reguladora interna dos conflitos sociais. A sociedade política democrática prescinde do trauma revolucionário, sem ter de renunciar por isso à mudança e tornando-a ainda mais potencialmente efetiva. Atente-se, porém, para o caráter diferencial dessa regulação, por parte de quem luta pela mudança efetiva: não se trata de regulação funcional, que faria o "sistema" retornar ao suposto estado de equilíbrio de seu ponto de partida, mas uma regulação que se institui como diferença, como desvio de caráter retificador na direção da referência, a mudança. Um exemplo de regulação contextual é a do aprendiz: uma lição assimilada pelo aprendiz não se inscreve simplesmente na continuidade do aprendizado, mas nela instaura uma mudança, capacitando o aprendiz a enxergar de modo novo a sua nova ignorância, perante um "mesmo mundo" agora desconhecido. Em qualquer circunstância da vida de uma pessoa ou de uma sociedade, o resultado das interações do contexto coloca-lhe a pergunta: E agora, José? Estamos todos, e sempre estaremos, na vida íntima ou na vida política, em busca de demarcar a linha divisória, para separar a ordem da mudança. A dificuldade, e a facilidade, está em que a nossa própria intervenção no espaço político desloca-a para outros lugares, cujo reconhecimento exige acuidade e aplicação. Assim, no momento de transição do Império para a República, ao observar o desfile de coches e carruagens pelas ruas, nenhum transeunte poderia reconhecer o momento preciso em que o pé republicano pisou pela primeira vez no terreno do Império. Mesmo o cocheiro, e possivelmente menos ainda ele, saberia dizer, ao transportar o personagem Santos, se conduzia o banqueiro, que conspirava contra o Império, ou o barão, que conspirava contra a República. E, contudo, o passageiro era o mesmo Santos, postado em ambas as trincheiras dos papéis que desempenhava. Ninguém poderia prever se da portinhola da carruagem sairia o banqueiro ou o barão e, no entanto, o lugar que Santos ocupava no assento era o mesmo. Eis o problema: assento da ordem ou da mudança? Toda a complexidade da realidade revela-se no momento em que, sobrevinda a República, a figura aristocrática do barão é levada para o museu. Os livros escolares não dizem tudo, ao afirmar que o papel de barão no Império foi simplesmente substituído pelo papel do banqueiro na República. Pois o banqueiro, antes que se recolhessem as vestes rendadas e outras insígnias aristocráticas do barão, removeu-lhe o prestígio, o status e o poder, para associá-los ao seu dinheiro e, assim, poder mandar na República. Onde estaria a linha divisória entre ambos os papéis? Eis o problema: o mesmo banqueiro já não desempenha na República o mesmo papel que desempenhava no Império: ordem ou mudança? Isso atesta, para mim, que o que caracteriza um contexto político, ou outro qualquer, não é a natureza supostamente intrínseca dos elementos que dele participam, mas o modo como esses elementos interagem, orientados por suas respectivas referências: ordem ou mudança. Na realidade contextual, nada tem caráter intrínseco: não se pode dizer o que é ser banqueiro, antes de se reconhecer o contexto no qual ele interage. Na civilização islâmica, por exemplo, quando de seu domínio sobre a península ibérica, o banqueiro desempenhava um papel politicamente subordinado e socialmente desprezível em termos de status e prestígio. Isso é dizer que as propriedades dos componentes que interagem no contexto são dadas pela sua referência. Um partido político, um papel social, assim como o dinheiro, é bifronte, como suporte de relações sociais. Numa face mostra a ordem, na outra a mudança. Penso, especialmente, no caso do banco do povo Grameen, de Bangladesh, criado pelo economista Muhammad Junus. O Grameen opera em mais de 40 mil aldeias, das 60 mil do país. Trata-se do mais importante movimento social da atualidade em todo o mundo. O exemplo é ilustrativo do falso caráter dicotômico da questão que costuma alimentar tais debates: "O banco Grameen é da ordem ou da mudança?". Sugiro a seguinte resposta: O dinheiro está tanto a serviço da ordem financeira capitalista quanto da "desordem" do Grameen: presta-se a veicular um sentido, que é assumido diferentemente pelos interlocutores — da ordem e da mudança — nos seus respectivos contextos, de acordo com as suas respectivas referências. Do lado do pessoal do Grameen, a face interna do dinheiro, a "desordem", corresponde ao caráter humano de sua instituição, susceptível de encarnar propósitos sociais e políticos de mudança; a face externa, a ordem, corresponde ao seu valor monetário capitalista, ao seu aspecto de coisa, como objetivada pelo capital. Para o pessoal do Grameen, a dupla referência, unitária, dispõe-se da seguinte forma: a "desordem", a face interna, diz respeito à promoção humana, mediante a utilização do instrumento dinheiro, atributo diferencial do "negócio financeiro", que é o seu, "negócio" porém não apenas financeiro, nem apenas "negócio", pois sob a referência da promoção humana, que não é a do valor monetário capitalista, o recorte de sua realidade é qualitativamente outro. A segunda, a ordem, que corresponde à sua face externa, diz respeito às regras de valorização do capital, com as quais a primeira tem de lidar no contexto dos agentes da mudança e dos agentes da ordem, ambos nele interagindo necessariamente. Ambas as faces qualitativamente diferentes do dinheiro digladiam-se num mesmo espaço solidário (indissociável na prática social). Com efeito, por parte de Junus e dos acionistas e prestamistas do Grameen, o seu objetivo, com o uso do dinheiro, opõe-se ao objetivo do sistema financeiro capitalista, e o que caracteriza essa oposição são as suas respectivas referências (uma real, como valor humano; e outra vicária, como coisa, no lugar do humano) colocadas sobre um mesmo instrumento – o dinheiro. Do lado do pessoal de Junus, o dinheiro bifronte presta-se tanto a se constituir como suporte das relações capitalistas com o seu entorno capitalista, quanto a se constituir como suporte de suas estratégias de mudança nas relações sociais, culturais e políticas. E o que tem ocorrido em Bangladesh é que o Grameen converteu- se no mais poderoso instrumento nacional de transformação das relações políticas nas aldeias, de mudança nas relações autoritárias na família e no trabalho, etc., em escala gigantesca, atingindo quase três milhões de pessoas. A pergunta: "O Grameen é da mudança ou da ordem?" é abstrata e desprovida de sentido, pois a ação do banco pode ser vista como a sopa constitucional de Machado: embebe tanto a ordem quanto a desordem. O Grameen vai prestar- se a integrar a estratégia de mudança enquanto o pessoal a ele associado conseguir manter, para mudar, o seu caráter bifrontal (coisa e valor humano), frente às aspirações opostas e excludentes do mercado capitalista, que quer reduzi-lo a simples coisa (valor monetário capitalista). Esse é o espaço real do conflito, e não o espaço dicotômico abstrato, representado pela oposição excludente entre o capital e o seu contrário. Nem somente coisa, nem somente valor-não monetário, mas ambos num mesmo contexto — eis caracterizada a tensão na demarcação da linha divisória entre ordem e mudança. A resposta à pergunta sobre qual cavalo vai ganhar a corrida não pode ser dada de antemão. É preciso deixar os cavalos correrem. Não há por que estranhar a ambivalência ou "imprecisão" da noção de dinheiro, ou da linha demarcatória: tudo o que cai sob a nossa percepção, contextualmente orientada, encontra-se no estado de já não ser o que era e ainda não ser o que será (ordem e desordem a um só tempo). Nessas condições, a despeito da vocação profética do marxismo-positivista, é certo que o desfecho é imprevisível, tanto na perspectiva de um lado quanto do outro. É insensatez sonhar com a ablação artificial da tensão no conflito, como o fazem intestinos e paladar, em favor de certezas, soluções completas, ou ortodoxias, tão puras quanto estéreis. Ao se remover o conflito do turista de Veríssimo, remove-se a solidariedade — o espaço da política, em proveito da violência: essa é a doutrina Bush, por exemplo, que converte a todos nós, indistintamente, no caldo do rei Jacques. * Nivaldo T. Manzano, jornalista; autor do livro (no prelo) "Elogio da incerteza — ou como evitar as linhas retas para andar direito".
https://www.alainet.org/es/node/106498?language=en
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