O cadáver inquieto
06/03/2002
- Opinión
"Marx morreu"
Time (1977)
O triunfo do neoliberalismo se consolidou quando o pensamento social
passou a ser dominado por teses conservadoras. O abandono da tematização
do capitalismo, do imperialismo, das relações centro-periferia, de
conceitos como os de exploração, de alienação, de dominação, abriram
campo para o triunfo do liberalismo e, com ele, para a consagração da
versão liberal de democracia. A exploração – de classes e de países – foi
substituída pela temática do totalitarismo, com o predomínio das análises
políticas desvinculadas de sua dimensão social. A desaparição do
imperialismo e essa consagração do modelo liberal de democracia sustentam
a hegemonia do "american way of life" no mundo, com os direitos se
subordinando às relações mercantis, que se estenderam como nunca no
mundo.
O socialismo desapareceu do horizonte histórico, depois de ter ganho
atualidade política com a vitória da revolução soviética de 1917. A
unipolaridade vigente há uma década busca impor a dicotomia livre
mercado/protecionismo como a alavanca de explicação e de movimento da
história. Uma polaridade que recobriria as de civilização/barbárie,
progresso/atraso, ciência/religião, liberdade/tirania. O anúncio da
"guerra infinita" contra "impérios do mal" trata de impor e consolidar
esses antagonismos.
E no entanto nunca o capitalismo foi tão vigente como sistema e nunca
como agora qualquer análise que não se insira nesse marco se torna
impotente para explicar o mundo tal qual ele existe atualmente. Nunca as
relações mercantis tiveram tanta universalidade, seja dentro de cada
país, seja nas novas fronteiras do capitalismo – China, Rússia, Índia. E
um capitalismo em plena fase imperialista consolidada, em que as formas
de dominação se multiplicam do plano econômico ao militar, do financeiro
ao tecnológico, dos meios de comunicação à indústria da diversão.
Os que abandonaram Marx com soltura de corpo e com alívio, como se se
desnvencilhassem de um peso, na verdade não trocavam um autor por outro,
mas uma classe por outra. Abandonavam princípios, projetos, compromissos,
valores, junto com classes sociais exploradas, dominadas, discriminadas,
alienadas, oprimidas, para ficar do lado das elites. Compravam um
passaporte para o camarote dos vencedores. Mas como "há uma dignidade que
o vencedor não pode alcançar", como dizia Borges, o que ganharam em
"prestígio" e em generosos espaços na grande mídia, perderam em
capacidade de análise e em dignidade.
Quem pode entender hoje a crise econômica internacional fora dos esquemas
da superprodução, essencial ao capitalismo? Quem pode entender a política
militarista dos EUA e do seu complexo militar-industrial sem a
atualização da noção de imperialismo? Quem consegue compreender uma
sociedade tão desigual e injusta como a brasileira, com riqueza e miséria
acumuladas lado a lado, sem passar pela luta de classes? Quem pode
caracterizar os Estados, reduzidos a elos da reprodução do capital, sem
definir sua natureza de classe?
O marxismo revela toda sua fertilidade como instrumento de compreensão da
realidade quando é considerado um método de análise que busca captar o
movimento concreto da história, de como os homens vivem e produzem suas
condições de existência. Essa compreensão revela sua fertilidade quando
consegue dar conta das relações entre a objetividade e a subjetividade,
entre os homens como produtores e como produtos da história, para o que é
essencial captar o real no seu movimento contraditório.
No mundo contemporâneo isto significa, antes de tudo, compreender a etapa
atual do capitalismo, em sua fase de hegemonia econômica do capital
financeiro e de hegemonia política norte-americana. Pouco ou quase nada
de essencial no mundo hoje pode ser desvendado sem a compreensão da
natureza e da dimensão da hegemonia dos EUA, como potência econômica,
política, militar, tecnológica e dos meios de comunicação.
Compreender, além disso, como essa hegemonia é possível pela
transferência maciça de recursos da periferia para o centro do sistema,
via corporações, sistema financeiro, extração de recursos naturais,
dependência de Estados, entre tantos outros mecanismos. Em suma, enfocar
o sistema capitalista na sua totalidade mundial como uma unidade
contraditória, submetida às suas leis de acumulação e de crises, o que só
pode ser feito no marco dos esquemas de reprodução do capital propostos
por Marx, adequados à etapa histórica atual do capitalismo.
O enterro de Marx, não por acaso, foi anunciado pela revista Time, a
mesma que mais recentemente teve que reconhecer como a compreensão da
economia contemporânea seria impossível sem a incorporação das análises
de Marx. Busca-se porém separar o Marx analista do Marx político, para
dizer que este teria fracassado com o fim da URSS e do modelo soviético.
Enterraram um Marx mumificado pelos manuais da Academia de Ciências da
URSS, que é o que melhor lhes convinha, porque os textos de Marx revelam
um pensamento libertário insuperável e indicam como o socialismo, na sua
visão, será uma alternativa internacional e emancipatória e não um
fenômeno localizado e congelado.
Não por acaso, quando o movimento pela construção de "um outro mundo
possível", anunciado pelos zapatistas em 1994, que explodiu à superfície
desde Seattle e que se congrega em torno do Fórum Social Mundial de Porto
Alegre, o marxismo ressurge com novo vigor, fertilizado por novas lutas
anti-neoliberais com um potencial anti-capitalista e o cadáver de Marx se
revela cada vez mais incômodo e inquieto.
https://www.alainet.org/es/node/105675
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