Movimentos sociais na balança de poder do sistema jurídico
08/10/2014
- Opinión
Convidado especial para a abertura do 4° Seminário do Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais (IPDMS), realizado no mês de setembro na Universidade Federal do Paraná (UFPR), o cientista político e pesquisador da Universidade de Warwick-Inglaterra George Andrew Mészáros [não confundir com seu pai, o filósofo húngaro István Mészáros] apresentou um estudo de caso sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e acompanhou as produções científicas de professores e estudantes, participando de grupos de trabalho, plenárias e rodas de conversa. “As políticas de reforma agrária só vão se tornar reais na medida em que os trabalhadores rurais lutem para tanto”, afirma Mészáros. Nesse sentido, enfatiza a ecessidade do casamento entre a luta jurídica e a luta política dos movimentos sociais.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Mészáros fala sobre seu livro Movimentos Sociais, Direito e Políticas de Reforma Agrária, sobre o processo de judicialização da política e sobre o aprofundamento do diálogo entre academia e movimentos sociais.
Brasil de Fato – Em 2010, você publicou o livro Movimentos Sociais, Direito e Políticas de Reforma Agrária: aulas do Brasil...
George Mészáros – Isso, aulas do Brasil e não para o Brasil.
Qual foi o balanço geral indicado nesta sua pesquisa?
Utilizando análises empíricas, o livro tem enfoque sobre as lutas sociais e o Estado. Basicamente, levo em consideração três elementos. O primeiro elemento é o grau inevitável de relações de poder em todos os aspectos da produção e reprodução do direito. Isto é, a relação de poder está dentro do próprio sistema do direito. Segundo, estas relações têm um impacto dominante sobre os resultados das políticas de reforma agrária. E, neste caso, eles são preponderantemente negativos. O terceiro elemento é o papel positivo e fundamental que é jogado pelos movimentos sociais em termos de contrabalancear estas relações de poder e de explorar as potencialidades do direito.
E como o uso do direito por parte dos movimentos sociais pode transformar as relações de poder?
Muitas vezes depende das circunstâncias. Primeiro, temos um elemento ideológico que é o potencial de legitimação que possui o direito. Um exemplo seria os movimentos explorarem determinadas áreas da lei que não são bem visíveis ou trabalhadas. Nesse sentido, uma possibilidade óbvia seria a função social da propriedade. Além disso, temos outras possibilidades como trabalhar a lei no sentido de resgatar sujeitos que são presos ou criminalizados, processo que envolve advogados comprometidos com as lutas de movimentos sociais. Isso é importante e nos leva a outro elemento que é o avanço da concepção de movimentos sociais em termos de compreender o papel do direito e dos agentes que trabalham nessa área. Este seminário é um exemplo disso. Também existem agora cursos de capacitação em direto para os movimentos sociais, temos grupos como a Renap [Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares], Ajup [Instituto Apoio Jurídico Popular-1987-2002] etc. Mas também não quero superdimensionar as possibilidades, pois sou enfático quando digo que, no final das contas, as políticas de reforma agrária só vão se tornar reais na medida em que os trabalhadores rurais lutam para tanto. E nesse sentido o direito integra um plano importante, mas secundário.
Você poderia explorar melhor essa necessidade que menciona sobre o casamento da luta jurídica e da luta política no sentido da mobilização dos movimentos sociais?
É um problema, pois eu vejo que os movimentos sociais estão enfrentando um quadro de retrocesso, o que dificulta uma ofensiva jurídica. É uma relação complexa. Veja, em 1984, tivemos a greve dos mineiros na Inglaterra. A greve foi derrotada, os mineiros foram criminalizados e a lei foi mudada no sentido de subordinar os sindicatos. Hoje em dia, o sindicato dos mineiros praticamente não existe. Em 1992, eles entraram com um pedido de revisão judicial alegando inconstitucionalidade da lei e ganharam. Na época, o governo queria fechar um número determinado de minas e foi decidido que não houve uma consulta, que o governo não havia seguido determinados procedimentos. Ou seja, o que era difícil de fazer na prática, no sentido de mobilização social, se viu possível por meio do jurídico, por uma brecha na lei. Porém, no final das contas, temos que pensar na totalidade. Aí se abre espaço para outras discussões conjunturais.
E quanto aos limites da judicialização?
Grosso modo, na medida em que as oportunidades políticas foram se fechando, a área jurídica foi tomando mais importância. É preciso analisar a conjuntura e cada caso. Agora, na Inglaterra, o governo está querendo mudar a lei na área da revisão judicial sob o argumento de que ela virou uma ameaça à democracia. O ministro da Justiça disse o seguinte: “Temos visto a revisão judicial sendo utilizada como uma ferramenta tática pra o bem ou mal individual [...] tentando desviar o processo político”. Então, existe um espaço no jurídico que se abriu e foi sendo explorado, mas agora querem fechar esta área. Não vai ser tão fácil, pois os juízes terão que avaliar bem a questão. É muito complexo, pois, de um lado, eles têm razão. Imagine se você tem um governo radical e vem um monte de pessoas tentando se opor via sistema jurídico. A judicialização da área política também é um processo problemático, pois há coisas que deveriam sim ser resolvidas apenas no campo político.
Você citou a criminalização dos mineiros no caso da greve de 1984, mas esta também parece ser uma realidade no Brasil quando se fala em movimentos sociais. Nesse sentido, podemos afirmar que existe um posicionamento engajado no nosso sistema judiciário?
A tendência do sistema jurídico no Brasil é funcionar como uma máquina de criminalização. Mas este não é o fim da discussão. Eu posso citar um caso do MST na Justiça, já de longa data, de 1997, em que o Vicente Cernicchiaro [ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ)] faz uma distinção clara entre esbulho possessório [perda da posse de um bem por terceiro que a toma forçadamente] e a luta pela reforma agrária. Este é um julgamento que as pessoas deveriam rever constantemente, pois é enxuto e preciso. Além disso, é tecnicamente muito bom. Neste caso, vemos como se pode trabalhar o substantivo da lei por uma ótica mais social, sem, obviamente, exagerar o papel do Cernicchiaro. Mas havia um elemento humano e incisivo. Este tipo de julgamento é muito raro e geralmente o Tribunal de Justiça dos estados tomam uma posição absurdamente e claramente ideológica. Neste mesmo caso, há exemplos em que o juiz, numa instância anterior, em São Paulo, fala que iria ocorrer nada menos que o fim do Estado se o MST conseguisse alcançar suas demandas etc. Bom, o Estado não acabou...
Queria trazer uma reflexão que consta nos seus estudos sobre a Constituição de 1988 no Brasil, no que diz respeito à reforma agrária, em que você destaca o fato de ser uma colcha de retalhos, uma espécie de Frankenstein. Poderia comentar?
O fato de a Constituição de 1988 colocar ênfase na propriedade improdutiva e produtiva abriu uma possibilidade para os movimentos sociais. Inicialmente, o Raul Jungmann [ex-ministro extraordinário de Política Fundiária e ex-ministro do Desenvolvimento Agrário no governo Fernando Henrique Cardoso] acreditava que a maioria dos movimentos sociais era vista como desastre, sobretudo em relação à questão de ocupar propriedades produtivas. Ainda mais pela distribuição e controle de propriedade no Brasil, pela falta de verbas do Estado etc. E isso foi mudando. Depois, ele pensou que a divisão produtiva e improdutiva seria ótima, pois você pode separar certos setores dos donos da terra e trabalhar as divisões. Infelizmente, a realidade é que eles se mantiveram muito unidos. Outro elemento é a questão dos índices de produtividade. Enquanto essa questão não for atualizada, ela vai continuar dificultando o processo. Eu propus – e pode ter sido fantasia da minha parte – a ideia de fazer com que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), por exemplo, fosse levado à Justiça...
O Ministério Público Federal fez isso. Ele ajuizou uma Ação Civil Pública para obrigar o Mapa a atualizar os índices de produtividade e perdeu...
Nesse sentido, é desesperador. Eu acho que seria uma boa base jurídica. Veja bem, voltando para a questão da judicialização da política. É um problema quando se usa o direito para mandar o Executivo fazer certas coisas. Mas aqui estamos vendo uma espécie de obstinação do Executivo, se recusando a atualizar esse mapa do agronegócio. Infelizmente, estamos falando de uma perspectiva extremamente conservadora do Judiciário. Eu constato isso quando falo da criminalização, mas também se tem o aprofundamento dos obstáculos para a reforma agrária. Outra coisa óbvia é a multiplicação dos custos de terra, o que mostra que os juízes multiplicam indenizações para desapropriação de terra, muitas vezes mais do que o mercado. Nesse sentido, o livro trabalha uma questão de proporções e perspectivas. Posso afirmar que os movimentos sociais têm um papel importante. Agora, somando a conjuntura, infelizmente, o quadro é muito negativo. O que não faz com que as pessoas desistam de trabalhar nesta área. É preciso continuar.
No sentido de multiplicar os instrumentos que os movimentos sociais dispõem para suas lutas, como o senhor enxerga a possibilidade de diálogo com a academia, relação que pode ser observada, por exemplo, neste 4° Seminário do IPDMS...
Eu vejo como uma ótima iniciativa e também necessária. Utilizei uma frase na abertura deste seminário que foi “a necessidade é a mãe da invenção”, mas outra variação que ouvi de um professor aqui foi que “a necessidade é a mãe da ciência”. Enfim, isso para dizer que eu vejo que, em quaisquer circunstâncias em que encontramos pessoas oprimidas e que possuem oportunidades limitadas, ou você aceita ou você procura novas formas de se trabalhar. Eu assisti a uma pesquisa apresentada no seminário que tratou a questão do auxílio jurídico às pessoas que participaram das manifestações de rua que antecederam a Copa do Mundo. Os pesquisadores levantaram uma questão muito interessante aos entrevistados que foi: “Você, como advogado, apoiaria alguém envolvido em depredação de propriedade?”. Felizmente, poucos responderam não. A pergunta é genial, pois veja o que os entrevistados estão querendo dizer: “Não, você não merece representação”. Esta pesquisa levanta muitas questões quanto ao papel do defensor público. Quando ele vai à rua, por exemplo, ele é uma pessoa particular ou pública? Aqui houve uma situação paradoxal, onde se teve advogados particulares ajudando defensores públicos que se recusaram a fazer defesas, acreditando que isso seria uma espécie de violação do papel deles. Mas também houve bons defensores. Enfim, esta pesquisa aponta um exemplo de pessoas engajadas que decidiram mapear o que estava acontecendo na prática, contextualizar a situação e acionar a teoria para pensar possibilidades e limites do direito.
Você gostaria de acrescentar mais alguma questão?
Voltando à sua pergunta, eu vejo de forma muito positiva o diálogo entre a academia e os movimentos sociais. Acho que os acadêmicos podem não só fornecer ajuda, mas também aprender e incluir essas questões da realidade dentro de seu trabalho. Eu fui muito claro quando disse que vim para cá aprender. Essa fecundidade e o fato de se ter uma rede sendo construída é fundamental. Não sei se é apenas impressão, mas também não percebi aqui uma espécie de sectarismo entre os movimentos, que foi e que ainda é, em certos casos, um problema da esquerda.
George Andrew Mészáros é formado em ciências políticas pela Universidade de Sussex e mestre em estudos sobre América Latina, pela Universidade de Glasgow. Doutor em sociologia pela London School of Economics, seu Ph.D teve como foco a Igreja Católica e os sindicatos no Brasil. Mészáros trabalhou na Public Law Project, Organização Não Governamental (ONG) com foco no aumento da transparência e melhoria das tomadas de decisões públicas, onde acompanhou casos emblemáticos levados à Justiça. A partir desta experiência, foi se direcionando para o campo do direito e ingressou na Universidade de Warwick- Inglaterra como pesquisador em Estudos Sócio-Legais, cargo que exerce atualmente.
- Camilla Hoshino e Mariana Quintans, de Curitiba (PR), especial para o Brasil de Fato
Foto: IPDMS
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