A ALCA e o espectro mexicano

11/08/2002
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A “proposta” dos EUA de criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) tem gerado intensa controvérsia. Seus mais fanáticos defensores, geralmente encastelados na mídia, afirmam que este acordo propiciará o desenvolvimento econômico dos países do continente e a melhora do padrão de vida de sua sofrida população. Em recente artigo na Folha de S.Paulo, Celso Lafer, ministro das Relações Exteriores do governo FHC (que ocupou a mesma pasta na gestão de Collor de Mello), garantiu que a tal abertura de mercados é imprescindível “para gerar emprego e renda e diminuir a dependência dos capitais externos”. Já os críticos da Alca garantem que esta imposição do imperialismo beneficiará única e exclusivamente as corporações empresariais, especialmente dos EUA, e representará um duro golpe na soberania das nações, um violento retrocesso nas normas democráticas e uma brutal regressão nos direitos sociais. Afinal, quem está com a razão? Como saber o que será de fato a Alca, que está prevista para vigorar no final de 2005? Para responder a estas perguntas talvez o melhor caminho seja conhecer a experiência do Nafta e, em especial, seus efeitos no México - o primo pobre do Norte, que mais se aproxima da realidade brasileira. Tantos os defensores como os críticos concordam num ponto: a Alca será a extensão do Nafta (North American Free Trade Agreement. As negociações entre EUA, Canadá e México para a implantação deste acordo foram concluídas em dezembro de 1992. Ratificado um ano depois pelos Legislativos dos três países, ele passou a vigorar em janeiro de 1994. Ou seja: esta experiência já dura mais de oito anos! Vítima da anexação E quais são os resultados para a economia e os trabalhadores do México? Durante algum tempo, a mídia alardeou o crescimento econômico deste país, o aumento do fluxo de capitais externos, as exportações, etc. Agora, no entanto, ela parece estar mais cautelosa. Artigo recente da revista Veja até ensaiou uma autocrítica. “O México descobriu um lado amargo de seu abraço econômico com os Estados Unidos. Na última década, graças à fartura de mão- de-obra barata e ao Nafta, instalaram-se em território mexicano centenas de fábricas americanas... Parecia que o Norte do México tinha descoberto uma mina de ouro”. A reportagem denuncia que nos últimos meses, 350 empresas norte-americanas fecharam suas portas no país vizinho e demitiram 280 mil trabalhadores mexicanos. O fim do sonho decorreria da crise econômica nos EUA, que afetou as empresas norte-americanas instaladas na fronteira, e também “da busca de mão-de-obra mais barata na Ásia”. Quanto à primeira causa, não há objeções. “Um espirro nos EUA causa pneumonia no México”, costumam ironizar os críticos do Nafta. Já quanto à segunda, é pura desculpa esfarrapada da Veja. Afinal, de há muito que vários países asiáticos pagam os piores salários do mundo! Na verdade, o Nafta nunca serviu aos interesses da nação e dos trabalhadores mexicanos. O desastre, mais evidente agora, só confirma que este pobre país foi a principal vítima deste projeto de anexação das corporações empresariais e do imperialismo norte-americano. Apesar de toda a propaganda da mídia, ele nunca ganhou absolutamente nada com a vigência do Nafta. O processo de regressão nestes oito anos é avassalador em todos os terrenos e serve de estrondoso alerta aos iludidos com as promessas da Alca. Regressão econômica Nos anos 70, antes da implantação do Nafta, a economia mexicana crescia, em média, 6,6% ao ano. Já nos anos 90, o crescimento despencou para 3,3%. Agora, com a freada da economia americana, a situação degringolou de vez. O México entrou em recessão em 2001. O déficit na balança comercial cresceu 22% e as exportações encolheram 5%. De resto, ele perdeu receita com a queda do preço do petróleo, produto que gera um terço da renda nacional. A previsão oficial é que a economia cresça apenas 1,7% em 2002. Todas as maravilhas do Nafta, alardeadas pelos neoliberais, mostraram-se um fiasco. Segundo eles, o acordo incentivaria o ingresso de capital estrangeiro, alavancando o desenvolvimento econômico e a distribuição de renda. Mas este milagre não se confirmou. É certo que houve maior fluxo de capital externo para o país – que atingiu US$ 36 bilhões entre 1998/2000. Mas, no mesmo período, o déficit em conta corrente, resultado da remessa de juros e lucros para o exterior, em especial para os EUA, foi de US$ 48 bilhões. Ou seja: entraram US$ 36 bilhões e saíram US$ 48 bilhões. Outro desastre se deu com a dívida externa. No final de 2000, ela já superava os US$ 163 bilhões, mais do dobro da sangria de 1982 – exatamente quando eclodiu a crise da dívida externa do México que abalou o mercado mundial. Além de elevar a vulnerabilidade externa, o Nafta agravou a dependência do país. Antes da sua vigência, o México mantinha relações comerciais mais diversificadas, abrangendo vários parceiros. Hoje, entretanto, o país depende totalmente dos EUA. De lá provêem 74% das importações e para lá se dirigem 89% das exportações do país. Deste quadro perverso, os cínicos apologistas do “livre comércio” ainda gostam de frisar o aumento das exportações como um trunfo do Nafta. Só que eles escondem alguns fatos comprometedores. Essas exportações são feitas por cerca de 300 empresas, a maioria delas filiais de norte-americanas. Isto sem falar das maquiladoras, que importam quase tudo do exterior e crescem às custas da mão-de-obra barata do México - 10 vezes inferior a dos EUA. Somadas, elas são responsáveis por 96% das exportações mexicanas. Os 4% restantes se dispersam entre 2 milhões de pequenas fábricas que ainda não foram absorvidas pelo capital ianque e que sobrevivem, às duras custas, à avalanche neoliberal. A indústria têxtil mexicana, por exemplo, aumentou suas exportações para os EUA nesta fase; mas, neste ramo, 71% das empresas são norte-americanas. Segundo estudos, para cada dólar de exportação industrial mexicana para os EUA, apenas 18 centavos provêm de componentes nacionais. Já nas maquiladoras, para cada dólar exportado, o componente mexicano é de apenas 2 centavos. A desnacionalização foi violenta. Hoje é até um contra-senso falar em “economia mexicana”. Emblemático desta regressão colonial é que o atual presidente do país, Vicente Fox, foi gerente da multinacional estadunidense Coca-Cola. E os golpes não param de se suceder. No ano passado, o Citibank comprou o segundo maior banco do país, o Banamex. Atualmente, 83% do sistema financeiro estão em mãos de bancos estrangeiros, na maioria dos EUA. A desnacionalização atingiu o seu cume com o “entrega” da companhia de petróleo, Pemex, que hoje serve como fiadora dos empréstimos feitos pelos EUA durante a crise de 1994. E a devastação não ocorreu somente no setor manufatureiro. Na agricultura, o cenário é catastrófico. Em 1982, o México importava US$ 790 milhões de alimentos; já em 1999, passou a importar US$ 8 bilhões. De país exportador de vários produtos agrícolas, transformou-se numa terra arrasada. Hoje é obrigado a importar dos EUA cerca de 50% de tudo o que consome. Sob o império do Nafta, a superfície agrícola plantada foi drasticamente reduzida e 6 milhões de mexicanos perderam suas terras e suas ocupações. O resumo desta devastação é que hoje o México encontra-se mais dependente, endividado e vulnerável. Para usar uma expressão popular, está pendurado na brocha! Na análise sempre instigante de Emir Sader, presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia, se “na segunda parte dos anos 90, o México foi apresentado como modelo por parte dos organismos financeiros internacionais – funcionando como espécie de carta de apresentação da Alca –, hoje ameaça transformar-se no seu contrário: o novo epicentro de crise social aberta das Américas, ou seja, uma carta negativa de apresentação da Alca”. Inferno das maquiladoras Nestes oito anos de vigência do Nafta, as maiorias vítimas do desmonte nacional foram os trabalhadores. Segundo dados oficiais, antes havia 11 milhões de pobres no país, cerca de 16% da população. Em 2001, o número de miseráveis pulou para 51 milhões, o equivalente a 58% dos mexicanos. Destes, 20 milhões são considerados indigentes. No mesmo período, o preço da cesta básica de alimentos aumentou 560%; já o salário real subiu apenas 135%. Atualmente, mais de 50% dos assalariados mexicanos recebem, em termos reais, menos da metade do que recebiam há 10 anos atrás. O trabalho informal abarca hoje mais de 50% da População Economicamente Ativa (PEA), perto de 20 milhões de pessoas. Desde que o Nafta entrou em vigor, o número de mexicanos que ganham menos de um salário mínimo aumentou em um milhão. Além disso, 8 milhões de famílias submergiram na pobreza – despencando da situação anterior de “classe média”. Relatório recente do Unicef indica que mais de um milhão de crianças mexicanas começam a trabalhar aos seis anos de idade e têm jornadas diárias de até 12 horas. Deste quadro deprimente, a situação mais revoltante se dá nas maquiladoras – empresas que se instalam na fronteira dos dois países, em cidades como Tijuana, Mexicali, Matamoros e Ciudad Juarez. Elas usam a mão-de-obra barata para “maquiar” os produtos para exportação. Atuam com componentes importados, sem agregar valor à produção nacional. Além dos salários 10 vezes inferiores aos dos EUA, elas gozam de impostos reduzidos, de subsídios, de infra- estrutura e da precária fiscalização das autoridades locais. Atualmente existem no México cerca de 4 mil empresas deste tipo, também chamadas de “processadoras para exportação”, produzindo acessórios eletrônicos, produtos têxteis, brinquedos e produtos químicos. A violência da exploração nas maquiladoras beira a barbárie. Segundo depoimentos de trabalhadores, elas se assemelham ao “inferno”. São comuns as violações da precária legislação trabalhista mexicana; a repressão ou simples proibição da organização sindical; as horas extras forçadas e os maus tratos. Muitos trabalhadores vivem nas chamadas “colônias” - favelas sem eletricidade, esgotos ou água encanada. O Nafta destruiu a economia nacional e degradou ainda mais as condições de vida dos mexicanos. Tanto que muitos procuram melhor sorte atravessando a fronteira com os EUA, numa iniciativa de alto risco. Desde 1994, aumentou a repressão nas áreas fronteiriças, inclusive com a criação da operação paramilitar racista Gatekeeper – de caça aos imigrantes. Em 1999, o número de mortes registradas nas tentativas de cruzar as fronteiras foi de 325; em 2000, pulou para 491. Já morreram mais pessoas no chamado “Muro da Vergonha”, a cerca que separa o México dos EUA, do que em toda a história do Muro de Berlim. * Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro “Para entender e combater a Alca” (Editora Anita Garibaldi, 2002).
https://www.alainet.org/es/articulo/106247?language=en
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