O amigo Lula

28/10/2002
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No fim da década de 70, Lula e eu atuávamos na mesma cidade, São Bernardo do Campo. Ele, como líder metalúrgico; eu, como assessor da Pastoral Operária. Porém, só nos conhecemos pessoalmente em janeiro de 1980, em João Monlevade (MG). Participamos juntos da posse de João Paulo Pires de Vasconcellos, eleito presidente do sindicato dos metalúrgicos da Companhia Belgo Mineira. Ao sair da prisão, em 1973, passei cinco anos em Vitória, hibernado na favela do morro de Santa Maria. Dediquei-me à organização das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) que, multiplicadas, chegaram a 100 mil em todo o país. Em 1978, Fernando Henrique Cardoso convidou-me para uma conversa em São Paulo. Presentes também Plínio de Arruda Sampaio e Almino Afonso. Estavam convencidos de que a ditadura chegara a seus estertores. Em breve, a abertura política propiciaria o surgimento de novos partidos. No bolso do colete, eles traziam do exílio o projeto de fundação de um partido socialista. Tinham a fôrma, e cobiçavam as CEBs como recheio... Em dois encontros e muita discussão, enfatizei que as CEBs não se prestariam a servir de massa de manobra a intelectuais iluminados. Nem se converteriam, como supunha FHC, num novo PCB: o Partido das Comunidades de Base. O prognóstico das CEBs, que mais tarde obteve a concordância de Plínio de Arruda Sampaio, era de que, do movimento social irrompido nos anos 70 (luta contra a carestia, oposições sindicais etc.), brotaria um partido de baixo para cima, e não de fora para dentro do país. Relatei isso a Lula no almoço em João Monlevade. Ele havia participado da campanha de FHC ao Senado e, desde então, se perguntava por que trabalhador não elegia trabalhador. Seis meses antes, num congresso sindical em Salvador, ele sugerira a criação de um partido dos trabalhadores. Idéia que lhe veio à cabeça no mesmo dia em que Marisa dava à luz ao filho Sandro, 15 de julho de 1979. A proposta do PT, criado oficialmente no mês seguinte ao nosso encontro, afinava-se com as expectativas das CEBs. Nutridas pela Teologia da Libertação, que sistematizava os princípios norteadores da relação fé e política, elas não se deixaram absorver pelos núcleos do PT. Nem o PT cedeu à tentação de repetir o erro cometido em países socialistas, cujos partidos comunistas fizeram de sindicatos e movimentos sociais meras correias de transmissão de seus objetivos políticos. Parceria Lula era avesso a quem tentasse fazer-lhe a cabeça. Malgrado sua atuação na campanha de FHC, mantinha distância da esquerda organizada e dos políticos profissionais, à exceção de alguns poucos, como o senador Teothônio Vilela, que o apoiou nas greves. A formação religiosa de Lula facilitou sua aproximação com a Pastoral Operária, integrada também por metalúrgicos que se destacavam na atividade sindical. Devoto de Jesus e de são Francisco de Assis, Lula gosta de orar, tem por hábito fazer o sinal da cruz antes das refeições, e nunca falta à Missa do Trabalhador, celebrada todo 1º de Maio na igreja matriz de São Bernardo do Campo. No entanto, preserva a sua fé com a mesma discrição com que protege a família do assédio da mídia. Do nosso encontro em João Monlevade nasceu a ANAMPOS (Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais), destinada a congregar, em caráter suprapartidário e supraconfessional, militantes e entidades identificados com as aspirações libertárias expressas na prática pastoral das CEBs e na Carta de Princípios do PT. Terminada a cerimônia de posse, rumamos para Belo Horizonte, onde chegamos tarde. Na falta de vôos para São Paulo, fomos dormir em casa de meus pais. Não havia cama para todos. No tapete da sala de jantar dormiram, lado a lado, Lula, Olívio Dutra, Henos Amorina, Joaquim Arnaldo e outros dirigentes sindicais. A ANAMPOS gerou a CUT, em agosto de 1983, após o racha no congresso sindical da Praia Grande (SP), em fevereiro daquele ano. Dez anos depois, a ANAMPOS desapareceu para dar lugar ao surgimento da CMP (Central de Movimentos Populares). Na campanha salarial de 1980, estreitaram-se os laços entre o sindicato e a Pastoral Operária de São Bernardo do Campo. Deflagrada a greve, ajudei a cuidar da infra-estrutura do movimento, enquanto Lula comandava as assembléias no estádio da Vila Euclides e as difíceis negociações com o empresariado. O regime militar temia os efeitos políticos da greve. Decidiu jogar pesado. Interveio no sindicato e cassou o mandato da diretoria. Dom Cláudio Hummes, bispo do ABC, liberou a matriz de São Bernardo do Campo às assembléias sindicais. Alguns fiéis se escandalizaram: Estão profanando o templo. Padre Adelino De Carli, o vigário, retrucou: "De que vale prestar culto a Deus e dar as costas a quem luta pelo pão da vida?" Atrás da igreja, organizamos o Fundo de Greve. Vinham alimentos de todo o país. Caminhoneiros transportavam as doações misturadas à carga. Ricardo Kotscho, repórter da Folha de S. Paulo, me chamou de lado numa assembléia e entregou-me o cheque de seu salário. Toda a diretoria do sindicato foi presa. Em companhia do deputado Geraldo Siqueira, eu dormia em casa de Lula no dia em que o levaram. Fui acordá-lo quando os homens do delegado Romeu Tuma bateram à porta. Logo que a viatura partiu, liguei para dom Cláudio e o cardeal Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo. Pelo rádio da viatura, Lula escutou, aliviado, a notícia de sua prisão, pois temia ser vítima de uma armação do Esquadrão da Morte. Ao ser solto, um mês depois, a primeira coisa que fez ao chegar em casa foi abrir todas as gaiolas e soltar os pássaros. Persistência Lula chega à presidência da República graças ao movimento social articulado nos últimos 40 anos, no qual a pedagogia de Paulo Freire teve mais peso do que as teorias de Marx. E também por força de uma de suas virtudes, a persistência. Ele não sabe perder. Nem no baralho. Foi essa persistência que o fez renovar o sindicalismo brasileiro; fundar o PT; criar a ANAMPOS, a CUT, o Instituto Cajamar - escola de formação política de lideranças populares -, e o Instituto Cidadania, centro de pesquisa e elaboração de políticas públicas. Durante os últimos 21 anos, Lula percorreu o país de ponta a ponta. Raro o município em que não pisou. Sua liderança favoreceu a proliferação de movimentos sociais e ONGs, sindicatos e núcleos partidários, levando o PT a eleger centenas de vereadores e deputados - estaduais e federais -, além de senadores e governadores. Hoje, o PT governa cerca de 50 milhões de brasileiros. E obteve, no pletio de 6 de outubro, 126 milhões de votos, elegendo 10 senadores, 91 deputados federais (a maior bancada da Câmara dos Deputados) e 147 deputados estaduais. Indignação O poder é a maior tentação do ser humano, acima do dinheiro e do sexo. Lula resiste graças à pessoa que ele mais admira: dona Lindu, sua mãe, falecida em 1980, enquanto ele estava na cadeia. Herdou dela a persistência e o orgulho de preservar a dignidade, ainda que em cima de um caminhão de pau-de-arara, no qual a família viajou 13 dias, de Garanhuns a São Paulo. Ou morando nos fundos de um bar, num quarto apertado, obrigado a usar o mesmo banheiro aberto aos fregueses. Lula traz no rosto o traço da indignação. Ficou marcado pela fome; o trabalho infantil como vendedor ambulante, na Baixada Santista; o desaponto ao reencontrar o pai com outra mulher e filhos; a humilhação de ser barrado num cinema por não vestir paletó; a labuta noturna, que lhe custou o dedo mindinho da mão esquerda; a morte, num hospital, da primeira mulher e do bebê que ela trazia no ventre, porque pobre não conta para o sistema de saúde. São experiências que forjam a sua personalidade e o incentivam a lutar pelos direitos da maioria, sem, no entanto, ceder aos encantos do poder. Nunca deixou de morar em São Bernardo do Campo; jamais teve empregada doméstica; não gosta de baladações e ambientes requintados; já devolveu presentes que lhe chegaram embrulhados em tentativas de aliciamento ou cooptação. Deixa-o feliz o carinho do povo, com quem mantém uma relação afetuosa, pois jamais se importuna com o assédio do público. Para ficar de bem com a vida, basta-lhe estar cercado da família e de amigos, trajando bermuda e camiseta, enfiado num par de chinelos, ao lado de um fogão onde possa preparar suas receitas favoritas, como coelho ou massa à carbonara. Lula presidente surpreenderá a nação, pois adotará outra gramática do poder, com assinatura própria, como fez no sindicalismo e, sobretudo, na política, ao criar um partido combativo e ético. Não relutará em trabalhar em equipe, mobilizando todos os setores da sociedade brasileira, sem se prender ao jogo rasteiro de barganhas e favoritismos. No currículo de seus ministros importam três características fundamentais: ética, competência e sensibilidade social. Lula esperava ganhar no primeiro turno. Era também a previsão de José Dirceu, com quem me encontrei na noite de 5 de outubro, em casa de Lula. Mesmo na iminência de ser eleito, este se recusava a falar em cargos e nomeações. E achava graça nas especulações da mídia, como se fontes supostamente fidedignas pudessem afirmar, com segurança, quem seria o presidente do Banco Central ou o ministro da Fazenda. Para Lula, foi uma noite mal dormida, a de 5 para 6 de outubro. Por causa daquela ansiedade que toma conta de quem participa de uma grande disputa, como estudantes à espera do resultado do vestibular. De manhã, após receber o telefonema de Cristovam Buarque comunicando que vencera o pleito entre os brasileiros radicados na Nova Zelândia, Lula pediu a um amigo massagista para aliviar-lhe a tensão. Saiu para votar e retornou ao seu apartamento. Ficamos conversando, acompanhando o noticiário na TV. Ao meio-dia ele relaxou e dormiu por duas horas. Acordou disposto, gravou cenas para dois filmes sobre a sua trajetória política: um dirigido por Duda Mendonça e outro, por João Moreira Salles. Sopramos uma vela e cortamos um bolo para comemorar seus 57 anos, oramos o Pai Nosso e o Salmo 72 na versão de frei Carlos Mesters (Œo bom governante escuta os apelos dos pobres¹), e saímos para o comitê nacional, na Vila Mariana, em S. Paulo, a fim de aguardar o resultado do pleito. Às 11 da noite, confirmado que lhe faltariam 3,5 milhões de votos para ganhar no primeiro turno, Lula retornou à casa com Marisa. Cansado, fui para o convento, esquecido da carne que, à tarde, eu desfiara e deixara no forno para que Lula e Marisa comessem, antes de dormir, um arroz a carreteiro. Aquela noite, entretanto, ele dormiu saciado de votos. E nós, seus eleitores, grávidos de esperanças. Nossa democracia ainda não é, como queriam os gregos, um governo do povo para o povo. Mas com Lula presidente será a segunda vez na história do Brasil que um homem do povo governará esta nação. A diferença é que Nilo Peçanha, que governou o país de junho de 1909 a novembro de 1910, como vice-presidente, ocupou a vaga deixada pela morte de Afonso Pena. Como filho de padeiro, Nilo conheceu a pobreza. Lula, eleito por ampla maioria de votos, conheceu a miséria. Sobrevivente da grande tribulação do povo brasileiro, Lula é, agora, um vitorioso. Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto - autobiografia escolar" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/active/2675?language=en
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