MST e o novo ciclo de lutas
18/02/2014
- Opinión
O Brasil assiste sinais de gestação no último ano de um novo ciclo de lutas sociais, que intriga, assusta e empolga diversos setores da sociedade. As manifestações que explodiram em junho, mas continuaram com uma intensidade menor no período posterior, abriram um debate sobre o sentido desses protestos, os limites das formas de organização, o uso das táticas de depredação e a violência.
A perspectiva de novas manifestações de massa neste ano também gera dúvidas sobre protestar ou não durante a Copa do Mundo e o impacto nas eleições, tendo como pano de fundo quem ganha ou perde com esse quadro. Para alguns, esses protestos criam um clima de caos social que prejudica o projeto político em curso e beneficia a oposição de direita; para outros, as manifestações são o motor para o aprofundamentos das mudanças sociais, destravando os limites da coalizão em torno do PT e levando a cabo as reformas estruturais.
Essas questões são relativamente novas no país, porque desde o final da década de 70 a esquerda tem hegemonia (mesmo sem ter exclusividade) nas manifestações; enquanto a direita usou o Estado e o poder econômico para fazer política e defender seus interesses. Em junho, cada metro quadrado das manifestações foi alvo de disputa entre diversos segmentos da direita e da esquerda, que sem unidade política e ideológica abriu "uma avenida" para o avanço dos setores conservadores.
A esquerda passa por um momento novo nos últimos 12 anos, com a chegada do PT à Presidência da República. O principal partido de esquerda do país venceu três eleições consecutivas para o governo federal, com sustentação em uma ampla coalizão de forças políticas de direita, centro e esquerda e frações de classes da burguesia e dos trabalhadores. A caminhada para o PT alcançar a Presidência começou em 1989, quando Luiz Inácio Lula da Silva perdeu para Fernando Collor no 2º turno eleitoral. O desfecho dessa eleição foi a derrota do projeto político forjado no processo de lutas da década de 80, que deram origem ao PT, à CUT e ao MST. Além disso, a derrota das forças sociais que emergiram nos anos 80 no Brasil, paralelamente à queda do Muro de Berlim e ao fim da URSS, abriu margem para a ofensiva global do capital e à implementação do neoliberalismo.
As políticas neoliberais operaram para o enfraquecimento do Estado, as privatizações das empresas estatais, a abertura econômica para o capital financeiro e a flexibilização da legislação trabalhista. Uma das consequências dessas medidas políticas e econômicas foi o enfraquecimento do movimento sindical, com as perdas de direitos e o desemprego, debilitando o principal ator das lutas sociais da década de 80. Ao mesmo tempo, partidos de esquerda, especialmente o PT, ganharam eleições para câmaras, assembleias, prefeituras e governos estaduais. Assim, a luta eleitoral passou a ditar o ritmo das ações do partido e de diversos setores da esquerda.
Nesse quadro, o MST ganhou força e se transformou na principal expressão de luta social, a partir da segunda metade da década de 90. As ocupações de terra, as grandes marchas e a reação violenta do Estado e do latifúndio chamaram atenção da sociedade para a luta dos sem-terra. O Massacre de Eldorado dos Carajás em 17 de abril de 1996, a grande marcha a Brasília no ano posterior, as ocupações de terra no Pontal do Paranapanema, a ocupação da fazenda do presidente Fernando Henrique Cardoso, entre outros acontecimentos, fizeram do MST a principal força social de resistência ao neoliberalismo no país.
Com a chegada de Lula à presidência da República, o PT sofreu o desgaste de gerenciar o governo. Já a CUT passou a sofrer acusações de se submeter aos companheiros que estavam na administração pública. O MST aproveitou as melhores condições de luta, com a multiplicação de acampamentos com a expectativa criada pela eleição do torneiro mecânico, para fazer ocupações de terra por todo o país. Em 2005, o movimento realizou uma grande marcha de Goiânia a Brasília, quando 12 mil trabalhadores rurais marcharam mais de 200 quilômetros durante 17 dias. No ano seguinte, fez um protesto com 2 mil mulheres na sede da empresa Aracruz Celulosa, no Rio Grande do Sul, para denunciar os impactos sociais e ambientais das florestas industriais de eucalipto.
Com essa ação, o movimento intensificou um processo de lutas contra o agronegócio, caracterizado como a aliança dos fazendeiros capitalistas com empresas transnacionais e o capital financeiro, paralelamente às ocupações de latifúndios improdutivos. Mesmo sob o governo Lula, o movimento continuou fazendo lutas pela Reforma Agrária e enfrentamentos contra o agronegócio, que desagradavam a coalizão de forças em torno do PT. No entanto, sempre que o projeto em curso esteve sob pressão da direita, o movimento agiu de forma responsável, denunciando o que estava em jogo. Assim, manteve autoridade política e se tornou referência ideológica de setores progressistas dos movimentos populares, do operariado, da juventude e da intelectualidade.
Em 2007, o 5º Congresso Nacional do MST apresentou a proposta de Reforma Agrária Popular, que atualiza o programa agrário do movimento, levando em consideração as mudanças na agricultura com a ofensiva do agronegócio. O governo Lula manteve uma política tímida de desapropriação de terras e criação de assentamentos, que foi perdendo fôlego no final do segundo mandato. Com a lentidão do governo, muitas famílias acampadas perderam a esperança de conquistar a terra e desanimaram de permanecer nos acampamentos. Além disso, o crescimento mediano da economia, que aqueceu o mercado de trabalho, abrindo vagas de empregos, criou uma alternativa temporária para as famílias que viviam nos acampamentos.
Dessa forma, diminuiu a intensidade das lutas dos acampados, com a queda no número de ocupações, e aumentou a dificuldade para organizar novos acampamentos. Com isso, o movimento passou a sofrer críticas de setores de extrema-esquerda e de direita de que teria abandonado a luta e de ser cooptado pelo governo. Nesse quadro, o movimento aprofundou o debate sobre a Reforma Agrária Popular, que mantém a perspectiva de organizar acampamentos e ocupar terras, mas agrega a necessidade de organizar os assentamentos, viabilizando a produção por meio de cooperativas e implementação de agroindústrias. Além disso, coloca a demanda de garantir educação à população do meio rural e desenvolver uma nova matriz tecnológica com base na agroecologia.
Ao mesmo tempo, o movimento desenvolveu uma formulação para compreender o caráter do Estado brasileiro (com seus diversos instrumentos para garantir os interesses da classe dominante) e do governo Lula/Dilma (formado por uma composição de forças em torno do projeto do neodesenvolvimentismo). Assim, o MST chegou aos 30 anos e realizou o seu 6º Congresso Nacional de forma madura, mantendo a perspectiva de ocupar latifúndios, mas colocando a necessidade de organizar os assentamentos para lutar por mudanças que viabilizem o desenvolvimento do meio rural.
A grande marcha com 15 mil pessoas e três quilômetros de bandeiras vermelhas realizada pelo MST na semana passada, que terminou com protestos simultâneos no STF e no Palácio do Planalto, demonstra a linha do movimento, de enfrentar os setores conservadores que controlam o Judiciário e pressionar o governo de coalizão de forças que impede as mudanças estruturais. A retomada da luta de um movimento que mantém a referência nos movimentos sociais tradicionais e o respeito da juventude em luta no último período pode cumprir um papel pedagógico, respondendo na prática algumas questões e dúvidas colocadas com os protestos realizados nos últimos meses nos centros urbanos, e contribuir na consolidação do novo ciclos de lutas que virá no próximo período.
Trajetória, lutas e conquistas do MST recolocam a importância de ter uma organização para (1) fazer as mobilizações, pressionar os governos e enfrentar as ofensivas da direita, do Estado e do capital, (2) manter o sentido político das lutas, evitando manipulações dos setores conservadores, (3) não se submeter nem ignorar as contradições do governo federal e, inclusive, (4) garantir a segurança dos manifestantes em momentos de conflitos nas mobilizações (sem a necessidade de qualquer bloco negro que atue de forma descolada). Assim, o novo ciclo de luta social poderá levar a cabo suas demandas, sem abrir margem para retrocessos nem ficar no imobilismo dos acomodados com a coalizão governamental, contribuindo na construção de um projeto político de reformas estruturais na sociedade.
- Igor Felippe é jornalista ligado aos movimentos sociais, é conselheiro do jornal Brasil de Fato e do Centro de Estudos Barão de Itararé.
A perspectiva de novas manifestações de massa neste ano também gera dúvidas sobre protestar ou não durante a Copa do Mundo e o impacto nas eleições, tendo como pano de fundo quem ganha ou perde com esse quadro. Para alguns, esses protestos criam um clima de caos social que prejudica o projeto político em curso e beneficia a oposição de direita; para outros, as manifestações são o motor para o aprofundamentos das mudanças sociais, destravando os limites da coalizão em torno do PT e levando a cabo as reformas estruturais.
Essas questões são relativamente novas no país, porque desde o final da década de 70 a esquerda tem hegemonia (mesmo sem ter exclusividade) nas manifestações; enquanto a direita usou o Estado e o poder econômico para fazer política e defender seus interesses. Em junho, cada metro quadrado das manifestações foi alvo de disputa entre diversos segmentos da direita e da esquerda, que sem unidade política e ideológica abriu "uma avenida" para o avanço dos setores conservadores.
A esquerda passa por um momento novo nos últimos 12 anos, com a chegada do PT à Presidência da República. O principal partido de esquerda do país venceu três eleições consecutivas para o governo federal, com sustentação em uma ampla coalizão de forças políticas de direita, centro e esquerda e frações de classes da burguesia e dos trabalhadores. A caminhada para o PT alcançar a Presidência começou em 1989, quando Luiz Inácio Lula da Silva perdeu para Fernando Collor no 2º turno eleitoral. O desfecho dessa eleição foi a derrota do projeto político forjado no processo de lutas da década de 80, que deram origem ao PT, à CUT e ao MST. Além disso, a derrota das forças sociais que emergiram nos anos 80 no Brasil, paralelamente à queda do Muro de Berlim e ao fim da URSS, abriu margem para a ofensiva global do capital e à implementação do neoliberalismo.
As políticas neoliberais operaram para o enfraquecimento do Estado, as privatizações das empresas estatais, a abertura econômica para o capital financeiro e a flexibilização da legislação trabalhista. Uma das consequências dessas medidas políticas e econômicas foi o enfraquecimento do movimento sindical, com as perdas de direitos e o desemprego, debilitando o principal ator das lutas sociais da década de 80. Ao mesmo tempo, partidos de esquerda, especialmente o PT, ganharam eleições para câmaras, assembleias, prefeituras e governos estaduais. Assim, a luta eleitoral passou a ditar o ritmo das ações do partido e de diversos setores da esquerda.
Nesse quadro, o MST ganhou força e se transformou na principal expressão de luta social, a partir da segunda metade da década de 90. As ocupações de terra, as grandes marchas e a reação violenta do Estado e do latifúndio chamaram atenção da sociedade para a luta dos sem-terra. O Massacre de Eldorado dos Carajás em 17 de abril de 1996, a grande marcha a Brasília no ano posterior, as ocupações de terra no Pontal do Paranapanema, a ocupação da fazenda do presidente Fernando Henrique Cardoso, entre outros acontecimentos, fizeram do MST a principal força social de resistência ao neoliberalismo no país.
Com a chegada de Lula à presidência da República, o PT sofreu o desgaste de gerenciar o governo. Já a CUT passou a sofrer acusações de se submeter aos companheiros que estavam na administração pública. O MST aproveitou as melhores condições de luta, com a multiplicação de acampamentos com a expectativa criada pela eleição do torneiro mecânico, para fazer ocupações de terra por todo o país. Em 2005, o movimento realizou uma grande marcha de Goiânia a Brasília, quando 12 mil trabalhadores rurais marcharam mais de 200 quilômetros durante 17 dias. No ano seguinte, fez um protesto com 2 mil mulheres na sede da empresa Aracruz Celulosa, no Rio Grande do Sul, para denunciar os impactos sociais e ambientais das florestas industriais de eucalipto.
Com essa ação, o movimento intensificou um processo de lutas contra o agronegócio, caracterizado como a aliança dos fazendeiros capitalistas com empresas transnacionais e o capital financeiro, paralelamente às ocupações de latifúndios improdutivos. Mesmo sob o governo Lula, o movimento continuou fazendo lutas pela Reforma Agrária e enfrentamentos contra o agronegócio, que desagradavam a coalizão de forças em torno do PT. No entanto, sempre que o projeto em curso esteve sob pressão da direita, o movimento agiu de forma responsável, denunciando o que estava em jogo. Assim, manteve autoridade política e se tornou referência ideológica de setores progressistas dos movimentos populares, do operariado, da juventude e da intelectualidade.
Em 2007, o 5º Congresso Nacional do MST apresentou a proposta de Reforma Agrária Popular, que atualiza o programa agrário do movimento, levando em consideração as mudanças na agricultura com a ofensiva do agronegócio. O governo Lula manteve uma política tímida de desapropriação de terras e criação de assentamentos, que foi perdendo fôlego no final do segundo mandato. Com a lentidão do governo, muitas famílias acampadas perderam a esperança de conquistar a terra e desanimaram de permanecer nos acampamentos. Além disso, o crescimento mediano da economia, que aqueceu o mercado de trabalho, abrindo vagas de empregos, criou uma alternativa temporária para as famílias que viviam nos acampamentos.
Dessa forma, diminuiu a intensidade das lutas dos acampados, com a queda no número de ocupações, e aumentou a dificuldade para organizar novos acampamentos. Com isso, o movimento passou a sofrer críticas de setores de extrema-esquerda e de direita de que teria abandonado a luta e de ser cooptado pelo governo. Nesse quadro, o movimento aprofundou o debate sobre a Reforma Agrária Popular, que mantém a perspectiva de organizar acampamentos e ocupar terras, mas agrega a necessidade de organizar os assentamentos, viabilizando a produção por meio de cooperativas e implementação de agroindústrias. Além disso, coloca a demanda de garantir educação à população do meio rural e desenvolver uma nova matriz tecnológica com base na agroecologia.
Ao mesmo tempo, o movimento desenvolveu uma formulação para compreender o caráter do Estado brasileiro (com seus diversos instrumentos para garantir os interesses da classe dominante) e do governo Lula/Dilma (formado por uma composição de forças em torno do projeto do neodesenvolvimentismo). Assim, o MST chegou aos 30 anos e realizou o seu 6º Congresso Nacional de forma madura, mantendo a perspectiva de ocupar latifúndios, mas colocando a necessidade de organizar os assentamentos para lutar por mudanças que viabilizem o desenvolvimento do meio rural.
A grande marcha com 15 mil pessoas e três quilômetros de bandeiras vermelhas realizada pelo MST na semana passada, que terminou com protestos simultâneos no STF e no Palácio do Planalto, demonstra a linha do movimento, de enfrentar os setores conservadores que controlam o Judiciário e pressionar o governo de coalizão de forças que impede as mudanças estruturais. A retomada da luta de um movimento que mantém a referência nos movimentos sociais tradicionais e o respeito da juventude em luta no último período pode cumprir um papel pedagógico, respondendo na prática algumas questões e dúvidas colocadas com os protestos realizados nos últimos meses nos centros urbanos, e contribuir na consolidação do novo ciclos de lutas que virá no próximo período.
Trajetória, lutas e conquistas do MST recolocam a importância de ter uma organização para (1) fazer as mobilizações, pressionar os governos e enfrentar as ofensivas da direita, do Estado e do capital, (2) manter o sentido político das lutas, evitando manipulações dos setores conservadores, (3) não se submeter nem ignorar as contradições do governo federal e, inclusive, (4) garantir a segurança dos manifestantes em momentos de conflitos nas mobilizações (sem a necessidade de qualquer bloco negro que atue de forma descolada). Assim, o novo ciclo de luta social poderá levar a cabo suas demandas, sem abrir margem para retrocessos nem ficar no imobilismo dos acomodados com a coalizão governamental, contribuindo na construção de um projeto político de reformas estruturais na sociedade.
- Igor Felippe é jornalista ligado aos movimentos sociais, é conselheiro do jornal Brasil de Fato e do Centro de Estudos Barão de Itararé.
Créditos da foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr
https://www.alainet.org/en/node/83282
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