Lula e o desafio de conciliar a mudança reclamada pelas massas com a união nacional

Há “assuntos de Estado” que não cabem em plataformas eleitorais. Mas há questões, como a militar, que precisam ser discutidas pelo povo brasileiro, que deve ser chamado a dizer que tipo de forças armadas deseja custear

24/01/2022
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O debate em torno do vice de Lula, tanto quanto o debate relativo às alianças partidárias, presentemente alimentados por uma bolorenta disputa em torno de cargos, traz consigo o inconveniente de toda inversão lógica, ao relegar a segundo plano o essencial, a saber, o necessário, prévio e público debate em torno de um programa mínimo que, ao encerrar os compromissos de governo, deve constituir-se na peça central da boa campanha eleitoral, discutido com a sociedade, e por ela sancionado, para que a votação no candidato seja também um referendum de seu programa, que se converterá, ipso facto, em programa-compromisso.
 
 
Se o ponto de partida (para as forças progressistas) é a derrota eleitoral do bolsonarismo, o ponto de chegada é a construção de um governo democrático, popular  e nacionalista. Fora daí seria conciliar com o statu quo, de que a nação quer se desvencilhar.
 
 
 A base de sustentação de um governo de mudanças  -- o apelo do sentimento nacional --  ultrapassa os limites das alianças pragmáticas (partidárias e institucionais), que sabidamente fracassaram no segundo governo Dilma, como antes haviam fracassado nos governos Vargas e João Goulart, lição que, parece,   não foi apreendida pelas forças populares contemporâneas.  A história mostra que a segurança dos governos progressistas  mais depende do apoio popular, que se conquista e se perde independentemente das composições de chapas e alianças partidárias, ou de esquemas militares, como aqueles que iludiram o governo de João Goulart. Os mais velhos devem estar lembrados do “dispositivo militar” do General Assis Brasil.   Doutra parte, o apoio popular, aquele que faltou a Vargas em 1954 e a Jango em 1964 e a Dilma em 2016 é tanto mais significativo e perdurante quanto mais se move na defesa de um programa que o eleitorado conhece, que fala aos seus interesses e que ele sancionou.
 
 
Esse programa nacional-popular é o que se espera de Luiz Inácio Lula da Silva, o cadinho onde presentemente se fundem as frustrações e as esperanças das grandes massas.
Em entrevista recente, Lula, pretendendo desarmar a resistência de correligionários de primeira água,   deixou claro que a aliança in pectoris com o ex-governador Geraldo Alckmin não guarda propósito eleitoral, muito menos caráter ideológico, reunindo políticos com distintas visões de mundo; seu escopo é assegurar a governabilidade, o fantasma que ronda a república, tão plena de crises institucionais e golpes de Estado, e que assusta o PT desde a derrubada do segundo governo de Dilma Rousseff. 
 
 
Mirando para além do pleito, o ex-presidente, ao tratar da governabilidade,  não se referia nem à notória má vontade da av. Faria Lima, nem aos boatos de vetos sussurrados nas esquinas dos quartéis, mas à necessidade de promover um governo de “união nacional” (ainda que de mudanças),  necessidade tornada imperiosa em face do legado do bolsonarismo, um quadro de degradação nacional (econômica, política, social e ética), inumeráveis vezes mais grave do que aquele encontrado por Lula em 2003.
 
 
Como conciliar mudança (reclamada pelas grandes massas) com união nacional, que sugere congelamento e importa composição com o grande capital, o ex-presidente está por explicar.
 
 
O grande objetivo de hoje, ditado pelos fatos, determinaria os contornos da campanha eleitoral – conquistar apoios fora do âmbito progressista – e o caráter do governo, que, sendo de mudança, seria igualmente de composição, preparado o governante a estabelecer negociação com todas as forças políticas e econômicas, a nenhuma delas, porém, cedendo o mando. A metáfora é do ex-presidente: o pobre precisa caber no orçamento da União e o rico no imposto de renda. Resta saber como reagirá a burguesia rentista.
 
 
O difícil projeto de governo de união nacional proposto por Lula, quando são tão profundos os conflitos de classe, traz o risco de converter-se em mais uma conciliação, expediente tão cediço entre nós, mediante o qual a classe dominante se acautela  quando confrontada com avanços do movimento social. Sabe-se, porém, está à vista sua biografia, que o ex-presidente jamais sancionaria um projeto político que uma vez mais subordinasse os interesses dos trabalhadores à ordem dominante. Daí a conveniência de o candidato armar-se de um programa-mínimo em torno do qual se articulariam todas as negociações, sejam as relativas à composição de sua chapa,  sejam as que dizem respeito às alianças. A discussão em torno desse programa mínimo  daria o tom da campanha eleitoral, o que, ademais, favoreceria a elevação do nível político das massas, o que é do máximo interesse das forças de esquerda sobreviventes.  Nesta hipótese, de forma clara e transparente, restariam formuladas as bases de um “pacto nacional”, desta feita negociado não só com as instituições e as forças políticas, mas igualmente com o eleitorado, e, assim, sancionado pela soberania popular.
 
 
Fica à conta de Lula a construção de um pacto que, visando à “salvação Nacional”, concilie interesses de classe antípodas.
 
 
Na entrevista coletiva que concedeu a uma rede de sites independentes, na tarde do último  19/01, o ex-presidente enunciou um roteiro de proposições que pode ser a base de um “programa mínimo” a ser discutido com a sociedade: fundamentalmente democrático, o que compreende a defesa da institucionalidade e dos direitos individuais, e desenvolvimentista e nacionalista, o que alcança a defesa da empresa nacional. Seu eixo é a recuperação do Estado. Lula usou mesmo a expressão “Estado forte”, devolvendo-lhe o papel de vetor do desenvolvimento. Em síntese, embora não o enuncie, promete a desmontagem do projeto neoliberal, ensaiado por Collor, consolidado por FHC e levado ao paroxismo pelo atual governo, que tanto encantou a casa-grande.  
 
 
Qualquer projeto de recuperação da economia e de retomada do desenvolvimento, de um desenvolvimento sustentável e que vise ao combate às desigualdades sociais e à eliminação da pornográfica concentração de renda, haverá de ser, fundamentalmente, um projeto de política de industrialização, ou seja, de sofisticação produtiva, promotora, por seu turno, do desenvolvimento científico e tecnológico, estrangulado pelo bolsonarismo, que desorganizou o ensino e combateu a cultura como se enfrenta um inimigo mortal.
 
 
A obra de verdadeira reconstrução nacional implicará a recuperação do BNDES e o fortalecimento das agências financeiras públicas, como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica, a recuperação da Petrobras, a anulação das privatizações e a preservação da Eletrobras, em síntese a retomada do papel do Estado como agente de planejamento e desenvolvimento.
 
 
A política desenvolvimentista, que remonta aos anos 30 do século passado, é, fundamentalmente, uma política de industrialização, que cobra inovação, que promove o desenvolvimento científico e tecnológico, que promove a educação e a ciência, que, por fim, cria empregos e assegura melhores salários. 
 
 
Um programa mínimo se define pelas suas limitações, que exigem clareza e fundamentação em poucos itens. Difere de um “programa de governo”, podendo ser sua síntese, elencando os  pontos centrais. De outra parte há  “assuntos de Estado” que não cabem em plataformas eleitorais. Mas há questões, como a militar, que precisam ser discutidas pelo povo brasileiro, que deve ser chamado a dizer que tipo de forças armadas deseja custear.
 
 
Consabidamente, um dos pontos altos das duas presidências de Lula, ao lado da emergência das massas,  foi a defesa dos interesses nacionais e o exercício de uma  política externa “ativa e altiva”, no resumo de Celso Amorim, seu principal timoneiro. Nos últimos 12 anos, porém, o quadro internacional  sofreu alterações radicais, seja por força da ascensão da direita nos EUA e na Europa, seja pela deterioração das relações internacionais, que Joe Biden está levando a extremos ao alimentar o impasse com a Rússia (ainda mais grave  se somam as controvérsias com a China), lembrando o clima de tensão vívido pelo mundo na crise dos mísseis, em 1962. Esse novo mundo requer, mais do que nunca, uma politica externa altiva, para que nosso país não se converta, na hipótese de uma solução dramática, em instrumento da política hegemônica das potências atômicas, em conflito por questões estratégicas e comerciais que não nos dizem respeito.
 
 
Para cumprir com o papel de braço armado da burguesia, a formação atual de nossos oficiais (cuja qualidade se expressa no capitão Bolsonaro e no general Pazuello) é suficiente, como mais do que suficientes são as armas e equipamentos de que dispõem os fardados para intervir na vida civil. Para cumprir com seu papel de instrumentos de defesa nacional, porém, as forças armadas brasileiras carecem de nova formação de  seus quadros, e de armas e equipamentos que não têm, porque o Brasil não dispõe de parque industrial adequado, e muito menos dispõe de decisão política (civil e militar) de fabricar aqui suas armas e seus equipamentos, confinando-se no subalterno papel de consumidor de artefatos estrangeiros de segunda linha ou claramente obsoletos,  como vimos na constrangedora parada dos blindados dos fuzileiros navais no desfile de 10 de agosto do ano passado em Brasília.
 
 
Essa política precisa ser revista visando a  assegurar a autonomia de nossas forças armadas, investindo na pesquisa, na inovação, e na fabricação dos equipamentos necessários à defesa nacional, sua missão constitucional,  longe do atual papel de braço armado da burguesia contra os movimentos sociais.  País cujas forças armadas dependem de fornecedores estrangeiros é país sem forças armadas e  sem segurança nacional.
 
 
Qualquer  projeto democrático deverá considerar a revisão do atual art. 142 da Constituição federal, redigido sob a curatela militar, e que  não mais corresponde  à correlação de forças que se espera emergirá das eleições deste ano.
 
 
***
 
Ignominia – Há exatamente 52 anos, em janeiro de 1970, era assassinado o jornalista Mário Alves de Souza Vieira, um humanista, um brasileiro de escol, um patriota, dirigente, ao lado de Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho, do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário-PCBR. Mário Alves, preso, assim sob a custódia do Estado, “foi trucidado numa sequência de torturas que incluíram a raspagem de sua pele com uma escova de aço e o suplício medieval do empalamento” (Brasil nunca mais, p. 96). Empalamento ou empalação, é, segundo o Caldas Aulete, “antigo suplício infligido a condenado que consistia em espetá-lo em uma estaca aguda, pelo ânus, deixando-o assim até morrer”. Os militares se desfizeram de seu corpo e, até hoje, Mário, meu querido amigo,  é listado como “desaparecido”. A tortura, a sevicia, a injúria e o assassinato se deram no quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, na rua Barão de Mesquita. Seus algozes, segundo denúncia do MPF, foram os tenentes Luiz Mário Correia Lima, Dulene Aleixo Garcez e Magalhães, o capitão Roberto Augusto Duque Estrada, o major Valter Jacarandá e o inspetor Thimóteo de Lima. Era presidente da República o general Garrastazu Médici;  ministro do exército o general Orlando Geisel. Os criminosos, responsáveis por esse e numerosos outros crimes,  continuam impunes.
 
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