Vijay Prashad sobre o socialismo Chinês e o internacionalismo

20/06/2020
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Nota do Editor: o Coletivo Qiao teve a honra de ter uma conversa com Vijay Prashad sobre a pandemia do COVID-19, percorrendo o caminho da China para o socialismo em um sistema mundial capitalista e o que o esforço da China pelo multilateralismo significa para a hegemonia dos EUA em um mundo pós-pandemia. Esta entrevista transcrita foi editada para uma melhor extensão e clareza. Obrigado a Leonardo Griz Carvalheira por traduzir esta entrevista para o português. 

 

Vijay Prashad é diretor do Tricontinental, uma instituição internacional dirigida por movimentos, focada em estimular o debate intelectual que atende às aspirações das pessoas. É um historiador e jornalista indiano e é autor de trinta livros, incluindo Washington Bullets [Balas de Washington], Red Star Over the Third World [A Estrela Vermelha sobre o Terceiro Mundo], The Darker Nations: A People’s History of the Third World [As nações mais escuras: uma história popular do terceiro mundo] e The Poorer Nations: A Possible History of the Global South [As nações mais pobres: uma história possível do Sul Global].

 


 

COLETIVO QIAO: O Tricontinental divulgou recentemente um relatório maravilhoso intitulado "China e CoronaChoque", que detalha a linha do tempo da resposta da China à pandemia e corrige muitas reportagens americanas enganosas sobre a suposta "resposta incorreta" da China e o silenciamento de whistleblowers. Por que você sentiu que era importante oferecer essa correção e por que você acha que o governo dos EUA e a grande mídia estão dobrando essa narrativa de má administração chinesa?

 

VIJAY PRASHAD: É uma pergunta muito boa. Gostaria de começar dizendo que pessoalmente tenho um longo interesse em epidemias e pandemias. Na verdade o meu primeiro trabalho publicado foi sobre a epidemia de cólera de 1832. É interessante porque a epidemia de cólera começa em Bengala, perto de onde nasci, em 1817 e viaja por terra pela a Rússia, partes do Oriente Médio e, finalmente, chega à França, Grã-Bretanha e Estados Unidos. E isso dura 100 anos. Você tem a epidemia de 1832, a epidemia de 1848 e assim por diante.

 

É literalmente uma jornada de cem anos de cólera. Quando estava na Rússia, nos portos do Báltico, os franceses disseram: “Isso nunca virá aqui, porque é a cólera asiática. Humanos inferiores sofrem com essas coisas. Isso não nos afeta. Nós não vamos pegá-la. Além disso, somos uma democracia. Não apenas somos caucasianos, mas somos uma democracia.” Evidentemente, aquela maldita cólera veio e devastou a Europa e devastou a Grã-Bretanha.

 

Então, eu tinha um longo interesse em como essas epidemias, pandemias e doenças são racializadas. No momento em que Trump usou a frase "vírus chinês", eu disse, olha, vamos lá. Sabe, Sr. Trump, isso é uma piada, porque você está retornando à narrativa imperial do século XIX sobre uma doença pandêmica. Você faz parte de um antigo discurso da Ásia sobre o "envio de doenças". Quando sabemos que na verdade algumas das piores epidemias se originam no Ocidente. A gripe aviária de 1918, a chamada gripe espanhola, não teve nada a ver com a Espanha. Você sabe, pobre Espanha - a Espanha foi o único país que relatou a gripe e, portanto, passou a ser chamada de gripe espanhola. Mas essa gripe começou no Kansas. Começa em uma granja militar. Essas epidemias decorrem da agricultura industrial, destruição de florestas, são um problema da modernidade. Não tem nada a ver com chineses ou asiáticos, essa maneira ofensiva de entender isso. Esse foi o principal motivo. Penso que isso precisava ser dito.

 

Em segundo lugar, na China, há um debate, um debate compreensível: quando se descobriu isso pela primeira vez? Foi em 26 de dezembro? Foi no dia 5 de dezembro? O próprio governo está investigando o que aconteceu. Houve uma falha no sistema e assim por diante? Isso é importante. Quando dizem que "a China escondeu, a China fez isso", elas veem a China como uma entidade monolítica. Não existe tal coisa chamada China, amigos. Existe um governo no qual existem pessoas competindo e discutindo entre si. Existem governos provinciais. Existem médicos que discordam de outros médicos. Quero dizer, é uma sociedade humana. Não é uma China, você sabe, como os Borg, onde todos pensam da mesma forma.

 

Então, com meus colegas [Du Xiajun e Zhu Weiyan], decidimos, vamos primeiro tentar estabelecer a linha do tempo. Quando os primeiros médicos de Hubei disseram, “vejam, há um problema aqui. Há uma gripe desconhecida”? “O que está acontecendo?”; “Opacidade nos pulmões e tomografias”; “Isso é incomum”, etc., etc. Vamos olhar para a linha do tempo.

 

Quando os médicos informaram a administração do hospital? Quando o hospital informou o CDC [sigla em inglês, Comitê de Controle de Doenças] da China? Afinal, quando eles informaram OMS? Isso foi importante apenas como um exercício.

 

A segunda pergunta a ser levantada é: houve um debate dentro das instituições chinesas? Sim, houve um debate. É importante registrar isso, sabe. Então foi a segunda coisa: ressaltar elementos desse debate.

 

Houve repressão a pessoas? Sim, houve repressão a pessoas porque, adivinha? Imagine: sou um médico. Vejo algo. Coloco na minha conta no WeChat, na rede social com meus amigos. Sou reprimido. Esse tipo de coisa acontece. Você sabe, um oficial comandante de um navio americano vai e escreve uma carta no jornal da sua cidade natal ou vaza ela ao noticiário. E a administração Trump o remove do comando do navio. É esse o abafamento da história? Não. Ele operou fora da cadeia de comando. É algo diferente. Alguém precisava aparecer e pontuar algumas coisas razoáveis:

 

Primeiro: Os profissionais médicos chineses, inicialmente - em Wuhan, em Hubei - não sabiam o que estavam enfrentando. Isso é importante deixar claro. Não é como se em 26 de dezembro, eles soubessem “ok, esse é o novo coronavírus”. Quero dizer, eles não tinham a mínima ideia do que era isso. Isso foi muito importante. Tivemos que contar a história: como eles ficaram sabendo do que se tratava, quando eles informaram o CDC chinês só três dias depois. Em 26 de dezembro, eles já haviam informado o CDC chinês. 

 

Três dias depois, o CDC chinês informou a OMS. Em 31 de dezembro, o chefe do CDC chinês liga para o CDC dos EUA. Isso aqui é uma questão de dias. Eles ainda não tinham um nome para o vírus. E eles já haviam informado aos americanos. E continuam dizendo que eles esconderam a história. É a honestidade básica de um jornalista. O chefe do CDC dos EUA disse “Me ligaram durante o período de férias. O chefe do CDC da China estava chorando para mim no telefone.” Isso é o chefe do CDC dos EUA dizendo que essa informação foi dada no dia 31 de dezembro de 2019. 

 

“Há um jogo ideológico sendo jogado aqui basicamente por duas razões. Primeiro, pode-se dizer que a China é a culpada por tudo.”

 

Então por que a Associated Press está dizendo que a China escondeu tudo de 14 a 20 de janeiro? Como eles podem ter escondido isso se, no início de janeiro, a OMS, na sua conta no Twitter e no seu site, disse que havia uma questão séria em Wuhan? Há um jogo ideológico sendo jogado aqui basicamente por duas razões. A primeira, pode-se dizer que a China é culpada por tudo. Mesmo nós tendo feito tudo errado, não tendo nos preparado, Trump não tendo se preparado, os italianos não tendo se preparado. Sabe, se os líderes do Ocidente não se prepararam. Não culpem os líderes ocidentais. Culpem a China. É uma coisa muito conveniente. É parte disso.

 

A outra parte disso é, você sabe, você sempre pode usar o anel de ouro do racismo. É a coisa mais fácil, dizer “olhem os chineses. Eles comem comidas bizarras. Eles não comem só cachorros e pangolins e morcegos e Deus sabe o quê.” Mas se você olhar a literatura científica, os cientistas dizem que na verdade não sabemos o caminho da transmissão. Não vamos presumir que é morcego, pangolim, depois humanos. Não é tão fácil. Agora há uma alegação muito maliciosa sendo feita de que o Instituto de Virologia de Wuhan estava desenvolvendo o vírus e depois eles vazaram o vírus. Espera lá. A literatura científica diz que não há uma explicação direta, singular, mas 90% da mídia e a administração Trump, Mike Pompeo e outros, estão jogando um jogo ideológico pesado. Então foi realmente contra esse jogo anticientífico, altamente político e ideológico que nós três autores sentimos que valia a pena escrever a série.

 

COLETIVO QIAO: Estamos curiosos para ouvir seus pensamentos sobre como a COVID-19 está moldando as dinâmicas geopolíticas existentes. Temos visto disputa e competição por suprimentos médicos entre as nações europeias, brigas entre os EUA e a UE, e uma ajuda de alta visibilidade de Cuba e China a lugares como Itália e Espanha. 

 

O que você pensa sobre o papel da China na geopolítica global, particularmente sobre criar espaços para relações multilaterais para além de um sistema mundial de hegemonia dos EUA? E como essa pandemia pode estar moldando essas tendências?

 

VIJAY PRASHAD: Primeiro, vamos retroceder um pouco. Se você olhar para esse período intenso entre 2001 e 2004, você tem os EUA indo à guerra no Iraque, a turbulência financeira da bolha do ponto com, a SARS sacudindo o leste asiático. Você tem o leste asiático mal saindo da crise financeira de 1997. Esse é um período muito intenso. 

 

“A guerra no Iraque demonstrou às pessoas em muitos desses países que os EUA são um governo fora de controle.”

 

Houve muita ansiedade sobre o que os americanos estavam fazendo. A guerra no Iraque demonstrou às pessoas em muitos desses países que os EUA são um governo fora do controle. Eles foram à guerra contra o Iraque, sem nenhuma preocupação real com advertências óbvias. Só foram e destruíram o país. Antes disso, a China em particular tem sido um tanto reticente quanto a aderir a plataformas de cooperação internacional com países do Terceiro Mundo. A China desempenhou um papel interessante na ONU. Por exemplo, havia um grupo nos anos 1960 chamado G-77, um bloco de países em desenvolvimento. A China não aderiu a esse bloco. Mas costumava votar sempre com o G-77, então em muitas resoluções, você vê: “G77 mais C, G77 mais C.”

 

Foi assim por muito tempo. Você sabe, ao longo dos anos Deng Xiaoping, havia uma sensação de que a China fosse cooperar com esses países, mas ela não quis estar amarrada por filiações formais. Então é só depois do fiasco da guerra do Iraque que vimos o governo chinês em negociações internacionais, particularmente em torno de subsídios à agricultura no Norte Global. Na reunião de Cancun de 2003, houve um debate sobre a ordem e o comércio mundial e como deveriam funcionar os regimes de subsídio. Havia questões sobre o financiamento para o desenvolvimento, debates sobre exceções de patentes para medicamentos como remédios para AIDS e tudo mais. Àquela altura, Índia, Brasil e África do Sul criaram um bloco conhecido como IBSA [Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul]. Essa foi a primeira tentativa importante de articular no cenário global essa teoria da multipolaridade. Eles disseram: “estamos entrando num duro mundo unipolar. Os Estados Unidos estão impondo uma agenda gangster. Precisamos de ar e oxigenação na ordem mundial.” E a China começa a aparecer e se envolver nessas negociações comerciais, questões técnicas sobre como as relações comerciais deveriam ser construídas, particularmente em torno de serviços financeiros. A China começou a aparecer e a tomar posição, se envolvendo com esses países. 

 

Então quando afinal o bloco do BRICS é formado, não é BRIS mais C, como se sabe, a China se tornou na verdade um membro pleno do bloco do BRICS. Ao mesmo tempo você via a China sediando esses fóruns África-China em Pequim, depois em partes da África. A China se tornou um membro ativo nesse tipo de movimento diplomático para a multipolaridade. À medida que governos mais à direita chegaram ao poder na Índia e no Brasil e um governo inclinado à direita na África do Sul, nos últimos anos os teóricos chineses têm falado sobre bipolaridade. Eles imaginam que talvez não seja muito credível o surgimento de um mundo multipolar, mas que poderia ser bipolar. Poderia haver um pólo americano e um pólo chinês. Esse é um caminho racional a se seguir. E talvez os russos venham a ter uma relação com os chineses. Então se viu um fortalecimento dos laços com a Rússia; segurança, economia, setor militar e assim por diante. Então isso tem sido uma discussão prática de longa data sobre a reorientação do comércio e tudo mais. 

 

Eu tenho que dizer, porém, que nos últimos 10 anos, muitas das tentativas de criar instituições alternativas - por exemplo, bancos alternativos, um FMI alternativo - foram mal sucedidas. Muitas das instituições simplesmente não apareceram. Alguém precisa fazer uma autópsia: por que, entre 2009 e 2019, esse projeto muito promissor não foi capaz de entregar algo como um Banco Mundial alternativo, um FMI alternativo, uma alternativa ao sistema SWIFT, para que não se fique amarrado a um sistema de pagamento baseado na Europa? São esses sistemas financeiros hegemônicos que bloqueiam o acesso às finanças internacionais ao Irã e à Venezuela sob sanções. Por que essas instituições alternativas não foram erguidas? É uma pergunta muito importante. O Banco de Desenvolvimento Asiático é controlado pelo Banco do Japão, que essencialmente deve lealdade ao Tesouro dos EUA. Não é um Banco de Desenvolvimento Asiático de verdade. É um banco Japão-EUA, que por acaso é sediado em Manila, que por acaso fornece ajuda para o desenvolvimento na Ásia, mas não é exatamente uma instituição independente. Por que não foram erguidas? Essa é uma pergunta importante. 

 

Eu acho que a crise da COVID-19 pôs a questão da multipolaridade novamente à mesa. Mas não é muito bom ter uma atitude emocional sobre isso. Você precisa entender, onde estão as instituições? Quais instituições você vai erguer? Se os EUA estão se retirando da UNICEF, da UNESCO, da UNRWA, a agência palestina, e agora da OMS. Alguém virá e cuidará disso? Haverá outra fundação? 

 

Então a questão da multipolaridade não é só uma questão de descrever “há uma China em ascensão, um crescimento enorme do PIB, o Ocidente está enfraquecendo”. Não funciona assim. Você tem os Estados Unidos - um setor militar massivo, ele controla instituições internacionais. Enquanto esse for o caso, não há multipolaridade. 

 

COLETIVO QIAO: Ficamos particularmente interessados em quantos consultores e especialistas em política econômica dos EUA enxergaram essa pandemia como consequência da “globalização que deu errado” no sentido de culpar particularmente a dependência excessiva dos EUA da manufatura chinesa. Há uma ideia de que foi um erro integrar a China nas cadeias de suprimentos globais da forma que o Ocidente o fez e que a COVID-19 é o ponto de ruptura para esse relacionamento. O que você acha que essa pandemia significa especificamente para o futuro das relações comerciais entre EUA e China e para o papel anterior da China na economia global como a “fábrica do mundo” em geral?

 

VIJAY PRASHAD: Então, há três coisas que eu penso que devem ser ditas. Uma é que eu quero contestar as alegações das pessoas de que “nós globalizamos demais e trouxemos a China para a cadeia” - vamos olhar o contexto histórico para isso. É verdade que há uma relação entre pandemia e redes de transporte. Obviamente, se não fôssemos conectados uns aos outros, a pandemia não aconteceria pois a definição de pandemia é que ela atravessa fronteiras. 

 

Se houvesse mais controle de fronteiras e menos aviões, seria mais difícil. Por exemplo, eu disse anteriormente que a primeira pandemia moderna foi a cólera de 1832. Mas se os britânicos não tivessem colonizado a Índia, eles poderiam não ter pego a cólera de Bengala e trazido-a de volta à Inglaterra. Você sabe, que pena que vocês vieram e colonizaram Bengala. 

 

Não é uma questão de algo novo. Se você pega a influenza de 1918, 1919, ela devastou o mundo. Mas a China mal foi afetada por ela. A razão é que a China não estava totalmente integrada ao mundo naquele tempo. Não havia tantas ferrovias na China. O povo chinês não estava sendo tirado e trazido de volta. Sim, havia trabalho forçado no Caribe, em partes do sudeste da Ásia e assim por diante, mas eles não estavam indo e voltando. Sessenta por cento das pessoas que morreram na gripe de 1918-1919 vieram da Índia. E a razão pela qual eles morreram é porque os soldados voltaram da Primeira Guerra Mundial e trouxeram a gripe de volta aos portos e isso devastou as comunidades na Índia. 

 

“Temos que insistir nessa ideia da globalização ser apenas um bebê, com apenas algumas décadas, o que não tem sentido. Na verdade, é amnésia sobre o colonialismo.”

 

Então 60% das mortes no mundo ocorreram na Índia, comparadas a uma porcentagem quase insignificante na China, porque não havia tropas voltando da Primeira Guerra e assim por diante. Então para essas pessoas encurtar o relógio da globalização para 1990 é trivial. A globalização num sentido genérico é uma longa história de colonialismo, de utilização de tropas de uma parte do mundo para outra, e assim por diante. Então devemos insistir nessa ideia da globalização ser apenas um bebê, com apenas algumas décadas, o que não tem sentido. Na verdade, é amnésia sobre o colonialismo. 

 

Eles estão falando sobre a nova cadeia de suprimentos na medida em que ela é construída com as cidades chinesas sendo boa parte do setor de manufatura da cadeia de suprimentos e assim por diante. Isso é novidade, concordo. Mas sejamos sinceros, pessoal, se você é uma empresa de fabricação alemã, uma empresa de alta tecnologia, você continuará fabricando. E se não for em Wuhan, você vai se mudar para algum outro lugar mas continuará na China. Por que? Quero dizer, quantos trabalhadores alemães desejam trabalhar do jeito que trabalhadores chineses trabalham? Os trabalhadores chineses têm algumas vantagens. Um está sendo altamente qualificado, porque a taxa de alfabetização são muito mais altas na China do que na Índia, em Gana ou mesmo no Brasil. Eles também são muito mais disciplinados. Eles aprenderam disciplina. Eles são mais saudáveis. Na Índia, há pandemia ininterrupta, só não é chamada de pandemia porque ela atravessa estados indianos mas não sai do país. Então por muitos motivos, a classe trabalhadora chinesa não vai ser simplesmente descartada. É muito difícil mobilizar essa questão específica da cadeia de suprimentos. Noventa por cento da Vitamina C usada nos EUA vêm da China. Então você diz, ok, vamos agora manufaturar Vitamina C nos EUA. Como você vai fazer isso? Quais trabalhadores desejam ir trabalhar numa fábrica produzindo comprimidos de Vitamina C por esse preço? 

 

E se você disser, “ah, vamos só comer laranjas”. Quem é que vai aderir? Quantos trabalhadores nascidos nos EUA estão dispostos a aceitar esses salários inferiores para colher laranja na Flórida? Isso não vai acontecer. Você sabe, então é muito difícil dinamizar a infraestrutura da cadeia de suprimentos. Mas também culturalmente, quero dizer, quantos trabalhadores dos EUA desejam trabalhar por tipo seis dólares a hora? Você sabe, não vai acontecer se essas empresas não estiverem interessadas. Eles estão acostumados a grandes margens. Então, nesse sentido, o giro produtivo não será tão rápido. 

 

“A China tem estado muito atenta ao fato de estar num abraço satânico com os mercados ocidentais. De muitas formas, a Iniciativa do Cinturão e Rota é um jeito de tirar a China da dependência dos mercados dos EUA e da Europa.”

 

Mas a China tem estado muito atenta ao fato de estar num abraço satânico com os mercados ocidentais. De muitas formas, a Iniciativa do Cinturão e Rota é um jeito de tirar a China da dependência dos mercados dos EUA e da Europa. A redução da pobreza ainda aumenta o mercado interno na China. Mas também há esses outros mercados, na Ásia Central, no Oriente Médio, etc. Há um entendimento de que esse abraço satânico não é sustentável. A China empresta dinheiro a consumidores americanos, que então compram produtos chineses, mas a maior parte do lucro não é acumulado na China porque boa parte é repatriado pelas grandes firmas. Mas esse excedente indo de um lado para o outro é ridículo. O excedente chinês está subscrevendo o fato de que as empresas americanas não aumentam os salários há cerca de 35 anos. 

 

E então, a China está tentando avançar no caso? Eu não acho que nada seja tão claro. Eu acho que há contradições envolvidas aqui. O establishment chinês, intelectuais, e o governo, são muito cautelosos em relação a esse período específico. Porque como consequência da COVID-19, o volume do comércio global reduziu 32%. Então isso está causando um impacto na China. Você pode mandar as pessoas voltarem às fábricas. Isso aconteceu, até 80% da capacidade. Mas os portos não estão abertos porque você pode mandar um navio para o porto de Los Angeles, mas basicamente está congestionado. Então eu penso que na China, a atitude não é “ah vamos vencer agora”. A atitude é sóbria: em primeiro lugar, a COVID-19 tem que ser desarmada. Segundo, precisamos determinar uma estratégia de longo prazo para lidar com essa nova turbulência no mundo. Mas você deve entregá-la ao establishment chinês. Quero dizer, esses intelectuais não pensam em dois meses, três meses, eles pensam em décadas, em 10 anos, 20 anos, 50 anos. Eles têm projetos de longo prazo. 

 

COLETIVO QIAO: Muitas pessoas pensam a integração da China num sistema econômico capitalista global como prova de que a China abandonou o caminho socialista. Mas é claro que é importante ver o que acontece quando o capital entra na China, como a China reinveste o excedente que é capaz de capturar nesse sistema, e tudo mais. É claro que a pergunta “A China ainda é socialista?” é simplista demais de início, mas como você acha que nós enquanto marxistas podemos abordar essa questão criticamente? 

 

VIJAY PRASHAD: Então, eu quero reformular o que você está me perguntando. Essas perguntas - “a China restaurou o capitalismo?” “A China é socialista?” - eu acho que essas perguntas estão erradas porque elas são, de certa forma, perguntas não-marxistas. Uma pergunta não marxista é: “alguma coisa é isso ou aquilo?”Você sabe, você quer uma resposta direta. Essas binárias. Mas a tradição marxista é uma tradição diferente. Nós acreditamos que a história humana se dá através de uma série de difíceis contradições entre as aspirações das pessoas, as suas relações sociais, e as forças produtivas que elas herdam. Essas coisas estão numa certa tensão. Depois há as tradições herdadas que temos. O materialismo histórico é uma tradição muito rica de entendimento de como as mudanças acontecem. Você sabe, só porque há uma revolução não significa que no dia seguinte haverá comunismo. Não é assim que funciona. Quando a República Soviética foi formada, os primeiros dez, quinze pronunciamentos das lideranças que você pode ler, eles estão todos em luta. Como criamos? Como começamos um processo de construção socialista? É um processo. Não é um evento. Você sabe, uma revolução é tanto um evento quanto um processo. Mas a construção socialista é um longo processo e é um processo de debate porque você está herdando instituições do passado. Você tem que transformá-las. Você herda suas limitações. 

 

Por que que todas essas revoluções acontecem nos assim chamados países atrasados, Rússia, China, Cuba, Vietnã - digo, um país que experienciou uma guerra química dos Estados Unidos. Sua agricultura foi destruída por Napalm e pelo Agente Laranja. E agora as pessoas perguntam, “por que não é socialista?”. Amigos, você não pode destruir a agricultura de um país e depois dizer “ah, bom, eles deveriam simplesmente coletivizar”. Durante todo o caminho de Ho Chi Minh, você não pode plantar nada lá por mil anos, podendo até morrer se comer essas coisas. Então é preciso uma dose de paciência. 

 

E na China, tem havido uma série de debates ao longo do tempo. Não só dentro do movimento comunista, mas um debate societal chinês mais amplo. Qual o caminho para avançar? Se você olhar para a experiência chinesa e soviética nos anos 80, são experiências muito diferentes. O que as lideranças chinesas entenderam rapidamente foi que a mudança tecnológica estava acontecendo muito rapidamente. Eu lembro de ler os documentos internacionais da Comissão do Sul, presidida por Julius Nyerere. E os membros que estavam na comissão da China estavam muito, muito interessados em como essas transferências de tecnologias e conhecimento aconteciam. Eles entenderam que estavam - vamos usar a palavra antiga - atrasados em ciência e tecnologia e que eles precisavam aprender sobre informatização e novas formas de produzir as coisas e assim por diante. 

 

Então na China, eles entenderam: é melhor aprendermos essas coisas porque não podemos alimentar o povo dessa forma. Algumas pessoas acreditam: vamos avançar as forças produtivas para que possamos transportar melhor os recursos. E essa é uma forma legítima de pensar nas coisas. Você sabe, não se pode socializar a pobreza. Isso foi o que aconteceu no Camboja. Mas essa não é uma forma legítima de construção socialista, na qual você toma o poder e depois diz simplesmente: “bom, somos pobres. Então vamos dividir a pobreza entre todos os domicílios.” Isso não é aceitável como caminho para mim. Isso é algo romântico. Alguns intelectuais vivendo num apartamento com um computador romantizam a socialização da pobreza. Mas isso não é aceitável. Não se pode condenar as pessoas ao analfabetismo e à fome e dizer: “todo mundo passa fome um pouco”. Isso não é aceitável para mim. Então a questão de avançar as forças produtivas soa dura e talvez eu não concorde com tudo que tem sido feito, mas eu entendo que o argumento é real e dentro da China há uma argumentação de longa data sobre o qual longe você vai. 

 

“Esse é um debate, e você teria que estar desinteressado no fato de que o povo chinês é tão pensador quanto político, [teria] que ignorar isso. Isso é um tipo de racismo incipiente.”

 

Como você pode ver em Hu Jintao, Xi Jinping, a todo momento há uma recalibragem. Você sabe, agora estamos vendo a desigualdade ficando muito alta. Então precisamos de mais atenção prestada aos mais pobres. Isso é um debate, e você teria que estar desinteressado no fato de que o povo chinês é tão pensador quanto político, [teria] que ignorar isso. Isso é um tipo de racismo incipiente.

 

Não se está interessado no fato de que há um debate no Partido Comunista. È um partido muito enorme. Há milhões de pessoas nele e há facções e grupos e eles debatem entre si. Cheng Enfu, um acadêmico da Academia Chinesa de Ciências Sociais, escreveu um artigo brilhante identificando as diferentes escolas de pensamento na China: há maoistas, neoliberais, liberais jeffersonianos que ele identifica, porque há um debate. E a ironia é que os intelectuais chineses estão dizendo “nós temos debates”. Então eu não entendo. Ou há liberdade de expressão ou esses intelectuais estão mentindo. Certamente se pode dizer “nós queremos permitir mais opiniões extremas no debate político”. Mas não se pode dizer que não há liberdade de expressão. 

 

Então se alguém no Ocidente me fala “bom, sabe, a China, eles são só um país capitalista”. Bem, você tem direito a uma opinião mal informada. Mas antes de dar essa opinião, você poderia nomear dois debates importantes que aconteceram na sociedade chinesa nos últimos três anos? Você sabe o nome de cinco pessoas na China que escrevem sobre pobreza? Você sabe que tipos de esquemas de pobreza há lá? E com relação à COVID-19, por que a reação chinesa foi tão diferente? Tanto a reação do estado quanto a do público - socialismo, não é sobre o estado sozinho. É sobre comitês de bairro, organizações e associações civis. Por que suas reações são tão diferentes?

 

“Se quiser perguntar “o que é o socialismo em Kerala?”, “o que é socialismo na China?”: olhe para a qualidade da ação pública, os comitês de bairro e o voluntariado.”

 

Como é que em um distrito, 440.000 pessoas se voluntariaram? Em países de industrialização avançada, as pessoas não sabem como se voluntariar. Você sabe, se pega seis pessoas aqui envolvidas com ajuda mútua. Isso é brilhante, lindo. Pessoas sensíveis estão lá fora alimentando os sem-teto e tudo mais. Mas quatrocentas e quarenta mil pessoas se voluntariaram. Em Kerala, quatro milhões e meio de mulheres entre 17 milhões estão em uma cooperativa chamada Kudumbashree. Eles estão por aí alimentando as pessoas, fazendo máscaras e desinfetante para as mãos. Se quiser perguntar, “o que é o socialismo em Kerala?”, “o que é o socialismo na China?”: olhe para a qualidade da ação pública, os comitês de bairro e o voluntariado. 

 

Você deve ter visto o charmoso vídeo dos doutores enfileirados tirando suas máscaras, um por um, como dançarinos de ballet. Se você olhar com cuidado, cada um deles tinha a lapela do Partido Comunista. Eles eram todos do Partido Comunista. A questão é que o partido instruíu os médicos e disseram: “vejam, preferimos que você vá porque você fez um compromisso de servir ao povo. Se há médicos que não são do partido que querem estar lá, eles podem estar lá. Mas se quiserem sair, nós vamos os substituí-los por vocês porque vocês se comprometeram a servir ao povo.” Isso é ação pública. O estado não os disse para irem lá, isso é o Partido Comunista. Eu sei que alguns diriam que o Partido Comunista e o estado são idênticos. Não é verdade. Não são idênticos. Há instituições na sociedade chinesa que estão fora do Partido Comunista. Então vamos olhar para isso de forma mais realista, não por esse tipo de estereótipo, de que tudo é de cima para baixo, de que há um imperador. Há séculos de estereótipos sobre a China que superam inclusive o anticomunismo. 

 

COLETIVO QIAO: O que você acha das acusações, vindas principalmente do Ocidente, de que a China está se tornando um poder imperialista? Especificamente com relação a Iniciativa do Cinturão e Rota, CPEC, e esses outros programas de infraestrutura e investimento. Cada vez mais progressistas estão aceitando a alegação de que essas ações são predatórias. O que você acha dessas alegações? E se não é um motivo simplesmente de lucro, então qual motivo você acha que a China tem em expandir suas relações particularmente com os países do Sul Global? 

 

VIJAY PRASHAD: Então primeiramente, eu acho que é importante esclarecer o que é imperialismo. Porque é fácil usar essa palavra pejorativamente, mas o que é imperialismo? Um resumo muito rápido: imperialismo implicaria em seu sistema econômico se baseia em usar internacionalmente forças extra-econômicas de um tipo ou de outro para obter vantagens para suas próprias empresas. 

 

Isso pode ser um país dizendo: “se você não compra de nós, então vamos usar força diplomática e militar para te sancionar ou para de alguma forma deixar a sua vida miserável. Então você termina assinando o contrato. Evidente que é mais complicado que isso, mas eu acho que é um bom pequeno esboço. Então vamos ver o continente da África, porque é o ponto mais sensível dessa conversa. 

 

Em 1885, os países europeus se reuniram em Berlim. E sem a presença de nenhum africano, eles dividiram o continente entre eles. Então todo o continente africano foi dividido entre as potências europeias e os Estados Unidos também estavam na reunião. Não vamos normalizar o passado. Desde aproximadamente 1880, quando houve essa intervenção colonial direta, até os anos 1960 e em alguns casos 1970, o Ocidente solapou a soberania do povo africano. E nem vou voltar ao comércio de escravos, estou falando apenas sobre as décadas de 1880 a 1970. O Ocidente essencialmente roubou a soberania do povo africano e saqueou o continente. A mais horrível é a história da Bélgica, obviamente, quando Leopoldo essencialmente exterminou a população com o objetivo de fazer uma tonelada de dinheiro. Ok, vamos colocar isso na mesa. Isso, sabemos, é o colonialismo. Também sabemos que é imperialismo porque depois que o Ocidente “deixou” o continente africano, como Kwame Nkrumah escreveu no seu livro de 1965, Neocolonialismo: você partiu, nos devolveu a soberania política, mas depois, nos fez render nossa soberania econômica. Até hoje, os países francófonos da África são parte do franco francês e seus lucros estão basicamente guardados em bancos franceses. Esses países têm uma independência econômica limitada. Se você olha pro Congo, quero dizer, é basicamente pilhagem gratuita para grandes corporações. A Glencore, registrada na Suíça, é a maior extratora de cobalto do Congo. Então vamos encarar isso: é basicamente um monte de companhias mineradoras europeias, australianas, canadenses e americanas que continuam a pilhar o continente. As principais companhias que atualmente estão explorando o continente africano são da Austrália, Canadá, Estados Unidos e de muitos países europeus. Esse é o grosso da exploração. A China tem uma história muito diferente na África. Sua história inicial foi através de um tipo de orientação socialista maoista, construindo a ferrovia TAZARA, relações antigas com o governo de Julius Nyerere na Tanzânia e assim por diante. Uma pessoa fantasticamente importante e um maoista em sua orientação, A.M. Babu, que inclusive estava no governo Nyerere, era parte de uma corte de líderes que acolheu os chineses na África para lhes dar assistência técnica e tudo mais, e em Angola também. Durante esse período, a intervenção do governo chinês na África foi baseada amplamente numa relação de estado para estado. 

 

Depois das reformas de 1978, isso começou a mudar. Você sabe, companhias chinesas começaram a chegar e arrematar projetos. Mas vamos ver o caso da Zâmbia como exemplo. Empresas chinesas concorrem a projetos. Elas não chegam e vão e vêem o presidente do país e dizem, se você não nos der o projeto nós vamos nos retirar, vamos dizer ao FMI para não te ajudar com sua dívida a ser quitada. 

 

Até agora, vamos encarar. Qual evidência sugere que as firmas chinesas, até as estatais que vêm e concorrem a contratos, estão concorrendo numa base comercial. Então o que você entende como comércio? Você sabe, a economia chinesa cresceu rapidamente e um monte de matéria prima que vai para a China não termina na China. Elas vão através do cobalto minerado pela Glencore, através de uma companhia alemã na China onde é manufaturado, e é vendido no Ocidente. A China é o território no qual a matéria prima é processada e manufaturada em um bem, mas isso não vai para a China. Mesmo quando uma companhia governamental chinesa ou uma entidade privada chinesa extrai o minério na África, ele normalmente vai para companhias europeias ou americanas dentro da China para manufatura - nem sempre, mas frequentemente.

 

Vamos ser claro que isso é certamente parte do capitalismo moderno. A Zâmbia tem matéria prima. Em um outro mundo, a Zâmbia não teria que vender sua matéria prima por preços tão baixos. Gostaríamos que o cobre não fosse vendido tão barato. É algo precioso. Precisamos encontrar uma forma para que um país como a Zâmbia generalize o tipo de lucro do cobre para a sua população. É escandaloso que na região do cinturão do cobre da Zâmbia, das crianças que vivem sobre esses depósitos de cobre, 60% delas não sabem ler. Isso é porque a riqueza é tirada e na verdade nada é dado a essas pessoas que vivem logo ali. Isso é um grande ponto de crítica. Mas a China não é a parte responsável aqui. A parte responsável é o capitalismo. A culpa está no capitalismo. Eu acho que se deve focar nisso.

 

“É conveniente que tanta imprensa ataque a China por ‘colonialismo’ na África. Vamos lá. Vamos ser sérios. Há uma longa história de verdadeiro colonialismo [...] Mas não é a China a autora aqui.”

 

É conveniente que tanta imprensa ataque a China por ‘colonialismo’ na África. Vamos lá. Vamos ser sérios. Há uma longa história de verdadeiro colonialismo. Isso é comércio. Eu tenho um problema com o capitalismo. Eu tenho problema até com alguns tipos de comércio. Mas não é a China a autora aqui, a China está participando de um sistema global. Isso é uma questão maior, separada. O problema é o capitalismo global, não a China. 

 

Agora, você pergunta, a China está fazendo negócios de uma forma diferente de outras companhias ou países? Depende. Há entidades privadas que fazem negócios. Elas não têm nenhuma obrigação. Por que teriam? Isso é capitalismo. Se uma empresa chinesa vem e concorre a algo, quando eles dizem “vamos construir um hospital”, isso é para propósitos humanitários ou para ganhar o contrato? Não sejamos ingênuos. Quero dizer, uma companhia privada diz, “eu vou construir uma estrada” - isso é para beneficiar seu contrato, para ganhar o contrato. Mas depois quando você vê governos entrando, não é exatamente o mesmo. A Iniciativa do Cinturão e Rota no Paquistão é um bom exemplo. O governo chinẽs entendeu por um longo tempo, e os intelectuais do Cinturão e Rota escrevem sobre isso, que há uma necessidade de integrar a Ásia. Estive em Pequim, na Universidade de Tsinghua, tomando um café, e eu olhei em volta e tinham três estudantes paquistaneses e seis, sete estudantes da China, todos falando em Mandarim, e fluentemente, entre si, porque esses estudantes paquistaneses vêm a essas faculdades e aprendem Mandarim. Isso é a integração. Estive em universidades na China onde estudantes falam comigo em urdu, estudantes chineses que aprenderam urdu. Essas coisas acontecem também. Isso é inteiramente sobre comércio, para que eles possam fazer negócios lá? Bom, parte disso é sobre comércio. Mas há um outro lado disso, que eu não quero exagerar, mas está lá. Quero dizer, há benefícios mútuos que estão ocorrendo. Quando o terremoto atingiu o Paquistão, médicos chineses foram ajudá-los. Quando houve o terremoto de 2008 em Sichuan, médicos paquistaneses vieram. Isso é a construção de uma relação entre povos. E eu estou dando esse exemplo porque eu espero ternamente que Índia e China desenvolvam uma relação, e que a Índia e o Paquistão desenvolvam uma relação e que, sabe, Índia e Bangladesh… quero dizer, esse é o sonho. Esses países devem cooperar entre si. Parte do Cinturão e Rota é inteiramente comercial, tudo bem, as parte dele é essa cooperação.

 

Quando aquele trem vai rodar com mais passageiros de Shanghai até o Lago Van na Turquia, isso vai afinal mover pessoas pra lá e pra cá. Não seria incrível ter iranianos indo passar umas férias em Shanghai e ter mais interação e contato de pessoa para pessoa? Um dos chacoalhões da era pós-colonial é que basicamente o Ocidente é que tem sido turista no restante do mundo e as pessoas do restante do mundo não tem sido capaz de bancar uma locomoção. Depois das reformas de 1978, você vê mais turistas chineses mundo afora, muito mais. Mas isso é incomum. Eu gostaria de ver mais pessoas interagirem. E eu espero que a COVID-19 não signifique um recuo nesse tipo de integração, porque não foi o cosmopolitismo que criou a pandemia. 

 

COLETIVO QIAO: É interessante como a história do colonialismo ocidental em lugares como a África é apagada e dá lugar a alegações de predação chinesa. Parece sempre haver um enquadramento das relações EUA-China como uma rivalidade imperialista, com a alegação de que a China deseja simplesmente recriar as estruturas hegemônicas que vimos sob o imperialismo e o colonialismo dos EUA e ocidental, que simplesmente deixam nações mais pobres na África ou América Latina sob a armadilha do subdesenvolvimento e extração de recursos. 

 

Mas quando olhamos para os investimentos em empreendimentos estatais chineses em lugares como a Zâmbia ou a Bolívia antes do golpe, parece ter um modelo alternativo de desenvolvimento que corre contra a armadilha neoliberal do FMI do subdesenvolvimento. Por exemplo, a Bolívia se voltou ao investimento chinês para ajudar a nacionalizar sua indústria de lítio e para construir empreendimentos estatais de manufatura de lítio para que a Bolívia pudesse capturar uma parte do processo de agregação de valor que há tanto tempo tem sido de domínio de corporações ocidentais. Então você pensa que a China está oferecendo um modelo alternativo de desenvolvimento para as nações do Sul Global? 

 

VIJAY PRASHAD: Eu acho que a questão dos caminhos do desenvolvimento é muito preocupante. Por muitos anos a ideia era de que o Ocidente prestaria ajuda aos países, que é uma ajuda vinculada. Damos-lhe dinheiro, mas você compra nossos produtos com ele. É quase como se você estivesse recebendo crédito. Mas agora eles estão em dívida com você e compram seus bens e assim por diante. Esse foi o modelo de ajuda estrangeira ocidental nos primeiros anos após a descolonização. O Banco Mundial forneceria alguns empréstimos, e você pode construir alguma infraestrutura e ver como vai. Mas é claro que era tudo ajuda vinculada, não era real.

 

Então os japoneses tinham outra teoria chamada de teoria dos gansos voadores, quem em todas as regiões do mundo existe um “ganso líder” e os outros gansos ficam nessa formação em V. O ganso líder tem a tecnologia mais avançada. E à medida que ele avança tecnologicamente, ele transfere a tecnologia anterior ao próximo ganso. E assim vai indo pra trás. Então se a tecnologia mais avançada é 5G, você poderá transferir o processamento de lítio para o próximo ganso, de algumas formas. Eu acho que exatamente agora o modelo dos gansos voadores é o melhor que temos sobre a mesa. O que os chineses têm feito é essencialmente o modelo dos gansos voadores. Você sabe, seria melhor processar o lítio na Bolívia. Mas, você sabe, estamos avançando agora para a fase digital, a próxima fase da tecnologia e tudo mais. Esse é um modelo de gansos voadores, e ele é bem melhor do que o modelo de ajuda ocidental, que foi essencialmente deixar as nações mais pobres na extração do minério. O modelo de ajuda ocidental diz “vamos cavar o minério, processá-lo e desenvolver as novas tecnologias e teremos propriedade intelectual. Nós ficamos com tudo e vocês sem nada.” Quanto mais se seguir o modelo Ocidental, mais desbalanceado o mundo se torna. E há um problema se um país fica com todo o excedente e todos os outros países ficam todos em débito, como você recicla o excedente? Não há mecanismos para reciclar o excedente. Então você deixa as nações mais endividadas. Então o mecanismo de reciclagem no Ocidente era essencialmente um ciclo de dívida perpétua. Aquele do modelo de desenvolvimento ocidental. 

 

O que o governo chinês parece estar fazendo agora é o modelo dos gansos voadores. A questão é, há um mecanismo de reciclagem do excedente? O governo chinês disse, “se tivermos grandes superávits, vamos transferir nosso excedente para vocês construindo infraestrutura, e nós vamos construir muita infraestrutura.” Então, ao meu ver, os chineses desenvolveram alguma forma de mecanismo de reciclagem de excedente. Minha opinião é sobre a questão do desenvolvimento e sobre a questão dos assuntos macroeconômicos. Precisamos de um debate internacional robusto sobre a criação de um mecanismo de reciclagem de excedente melhor. Você sabe, a Alemanha tem um excedente. A Grécia tem um déficit. Como o excedente alemão pode ir para Grécia? Não é como se esse dinheiro fosse alemão. Só acontece, é como funciona o capitalismo. Um lugar se apropria de mais riqueza. 

 

Me parece que em termos de comércio internacional, os chineses tomaram a posição: sim, esse comércio nos beneficia, nós temos um enorme superávit em conta, e agora vamos reciclar o excedente construindo uma rede de transportes. Eu acho muito mais produtivo do que se vê do modelo de ajuda estrangeira. Mas ainda é insuficiente. Ainda precisamos de um debate público. Qual é o melhor jeito de reciclar excedente? Vou dar um exemplo. Os excedentes não deveriam ser reciclados mais democraticamente? Neste momento o governo chinês vai dizer que devemos construir uma estrada aqui, ou um trem ali. Eu acho que devemos avançar para o estágio no qual tenhamos organizações regionais, organizações mundiais, que sejam um mecanismo para o debate. Você sabe, é questão de amanhecer e anoitecer. Quando você constrói uma linha férrea, a cidade ao redor da linha férrea floresce. A cidade no lugar onde a linha não foi construída morre. Mas isso não é justo. Isso requer um tipo de pensamento de igualdade regional para o qual você precisa de instituições públicas que estão aptas a tomarem decisões sobre reciclagem de excedentes. Você não pode deixar isso para um país. Quero dizer, a China está fazendo um trabalho admirável nisso. Mas não se pode deixar que um país com excedente determine como o excedente deve ser reciclado. Nós temos que avançar nessa conversa.

 

COLETIVO QIAO: Ao longo dos últimos anos, temos visto uma intensificação das agressões dos EUA contra a China: o chamado giro à Ásia, a expansão das bases dos EUA cercando a China, acordos bélicos com países asiáticos vizinhos e tanta distorção da mídia sobre a China. Porque você acha que os EUA estão avançando com essa agressão política, militar e midiático? E com o aumento das tensões, você vê a possibilidade do que alguns chamam de “eixo da resistência” se opondo à hegemonia americana?

 

VIJAY PRASHAD: Então, vamos pegar a primeira parte da questão. É verdade que os Estados Unidos têm usado uma espécie de alavanca para tentar reduzir o crescimento da China e evitar que a China tenha influência no mundo. Nos anos 1990 e início dos 2000, os EUA forçaram duas vezes o governo do Japão a rever a taxa de câmbio entre o yen e o dólar. Se tenta fazer isso com a China repetidamente. Mas a China disse, “não vamos fazer isso”. Eles reajustaram as taxas com o RMB, mas a China tem sido menos disposta, menos flexível que os japoneses. E isso realmente incomodou os americanos, que a China basicamente não se curvou à pressão dos EUA. 

 

Então se vê várias maneiras de “encurralar” a China. Mais recentemente, a administração Trump desvelou a estratégia Indo-Pacífica, que é basicamente uma abordagem EUA-Índia-Austrália. Eles estão dando esses subsídios do Desafio do Milênio aos países, como uma maneira de fazer com que os países participem da estratégia Indo-Pacífica. Portanto, os Estados Unidos têm tentado construir várias estruturas institucionais. Isso é de um lado.

 

Eu não acredito que haja um eixo de resistência, e eu pessoalmente não gosto dessa linguagem porque eu acho que as engrenagens devem ser lubrificadas, não queimadas. Eu sinto que a abordagem tomada por muitos desses governos, do governo venezuelano, do governo chinês, do governo cubano - tem sido muito sóbria. Eles dizem basicamente, “vejam, nós não queremos um conflito”. Eles querem que isso acabe, você sabe. Então eu acho errado absorver a energia negativa das forças imperialistas e depois vir dizer, “não, estamos resistindo”. Não é assim, na verdade, por duas razões. Uma é que eu penso que esses países estão totalmente cientes que eles não podem dar combate de verdade numa confrontação militar com os Estados Unidos, uma confrontação de verdade. Os EUA têm uma capacidade militar enorme. Nenhuma autoridade chinesa quer isso. O mesmo na Venezuela. Mesmo líderes da oposição, Falcón, Capriles. Todo esse pessoal, quando os EUA mandam navios de guerra, todos eles dizem, “mandem-os de volta. Não os queremos.” Ninguém quer isso. Então é errado usar esse tipo de linguagem. Não estou interessado nisso, mesmo no tipo de beligerância nas mídias sociais. 

 

“Essa não é uma guerra do povo chinês contra o povo americano. É uma guerra entre o imperialismo e o futuro.”

 

A segunda razão disso estar errado é que na verdade não é esse o futuro que queremos construir. Não estamos tentando construir um castelo com um fosso em volta. Queremos construir a humanidade. Não queremos ter séculos de tensão entre diferentes partes do mundo. Essa não é uma guerra do povo chinês contra o povo americano. É uma guerra entre o imperialismo e o futuro. E eu acho que se você aceita os termos desse eixo da resistência, você está aceitando os termos dos imperialistas. Nós rejeitamos esse conflito. Nós queremos construir o futuro. E o futuro é um futuro socialista sem conflito. Eu acho que o que importa ser dito é que não queremos aceitar esse enquadramento imperialista. 

 

Nós estamos tentando construir a humanidade e esse é o nosso objetivo. E eu penso que qualquer atitude que vá contra o projeto de construir a humanidade está errada. Então, eu acho que menosprezar as pessoas nos Estados Unidos e na Europa é errado. Quero dizer, são pessoas lutando no seu próprio mundo. Você sabe, temos que nos aliar com todas as pessoas desse mundo contra esse sistema, que é um sistema criminoso. Eu acho que o internacionalismo genuíno, a compaixão genuína, sabemos que esses países socialistas estão interessados nisso.

 

Você sabe a razão pela qual a China teve um interesse tão grande na Itália, mandou suprimentos e tudo mais? É porque quando a China estava lidando com o terremoto de Sichuan, médicos italianos foram lá. Só alguns, e não foram mandados pelo governo. Eu não sei o que os levou lá, mas alguns médicos italianos, médicos paquistaneses, foram ajudar. E o papel deles foi destacado na mídia chinesa: “eles vieram nos ajudar”. A China não foi nacionalista e disse “Nós chineses, vamos sobreviver a isso sozinhos”. Não, não. Então quando houve um problema na Itália, não foi difícil dizer “vamos mandar suprimentos”. Estamos tentando construir esse tipo de humanidade. Não estamos tentando construir nacionalismos concorrentes. Anti-imperialismo é a humanidade contra o imperialismo. Isso é realmente fundamental. Não é somente um lugar moral e ético para um socialista. Mas eu acho que é apenas algo que sinto estar certo. Eu não gosto de jingoísmo. Sim, eu sou um nacionalista de tipo socialista, mas não sou um nacionalista daquela forma perversa. Eu acredito no direito dos países à autodeterminação e tudo mais. Tudo isso. Não daquele jeito estreito e seco. Nós não temos que ser o inimigo. Você sabe, nós somos o futuro, não o espelho do inimigo. 

 

https://www.qiaocollective.com/translations/prashad-sobre-o-socialismo-chines

 

https://www.alainet.org/en/node/207381
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