"A corrupção número um, feita pelo sistema financeiro, está incólume”
- Opinión
O discurso de que a economia dá sinais de suspiro em relação à recessão que o país enfrenta nos últimos anos é uma “narrativa que, aparentemente, faz o acalanto geral da sociedade, mas, infelizmente, ela é falsa”, diz o economista Guilherme Delgado à IHU On-Line. “Não há esses sinais de melhora, até porque quem constrói essa narrativa é, ao mesmo tempo, responsável e prorrogador dos ingredientes que a falsificam do ponto de vista dos fatos”, frisa.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Delgado explica que a recuperação econômica depende de alguns elementos que não são visíveis no momento, como o aumento no investimento em infraestrutura, o crescimento do consumo e a redução do desemprego. Por enquanto, afirma, os dados demonstram que 14% da população está desempregada. “Isso significa que há uma faixa de 15 milhões de pessoas desempregadas; esse número dá o grau de magnitude da crise”, adverte.
Na avaliação do economista, o sistema econômico deveria ser orientado por “uma gestão capitalista keynesiana” de modo que fosse possível retomar o investimento estatal em infraestrutura e desenvolver uma política social que permita que, “com ou sem crescimento, haja uma distribuição básica para ajudar as pessoas que estão desempregadas ou em situações de completo desalento do sistema econômico”. Esse sistema de proteção social, justifica, “também cria demanda efetiva no circuito básico da economia”. Além disso, menciona, é preciso investir em “incentivos tecnológicos e educacionais para que haja inovação e aumento da produtividade geral no sistema. Sem esses elementos, não se produz recuperação econômica, e sim falácias, engodos”, reitera.
O economista menciona ainda que os casos de corrupção entre o setor público e o setor privado, desvelados pela Operação Lava Jato, não devem inviabilizar as iniciativas de parceria público-privada. Ao contrário, defende, “aprendemos as lições, mas não podemos ficar a vida inteira sobre um credo moralista de não fazer parceria público-privada por conta da corrupção. Isso paralisa o sistema”. E sugere: “Na realidade, é preciso submeter esse credo moral a uma avaliação mais concreta. Uma coisa é a corrupção número um, outra coisa é a corrupção número dois e outra, a corrupção número três. A corrupção número um, que é a corrupção feita pelo sistema financeiro, está incólume; a corrupção número dois, que é a que se faz através do colarinho branco das empreiteiras, está sendo combatida; e a corrupção número três, que é a do “pé de chinelo”, sempre foi aquela com a qual se teve preocupação. (...) Precisamos introduzir uma ética de valores republicanos em toda a administração pública. Portanto, por que excluir o sistema financeiro ou o mercado de capitais desse processo?”
Delgado também comenta as possíveis candidaturas de Doria, Alckmin, Ciro Gomes, Roberto Requião e Lula para a eleição presidencial de 2018. “O Ciro Gomes, no Nordeste, e o Requião, no Sul, têm perfis parecidos e poderiam ser um plano B na hipótese de o Lula não disputar a reeleição por objeções do sistema judiciário. Portanto, essa hipótese centro-esquerda pode ser um plano B ao qual o PT possa aderir — é difícil o PT aderir e não querer ser ele próprio o protagonista de uma chapa. Considerando a possibilidade dessa chapa, aí sim teríamos um programa de natureza de desenvolvimento com um certo nacionalismo e uma conexão inter-regional”, propõe. Mas adverte: “Essa possibilidade teria que se alimentar de um outro discurso de caráter de um desenvolvimento que recupere esse compromisso com a igualdade, recupere compromissos com um nacionalismo sadio — não esse nacionalismo de ultradireita que circula por aí —, e também tenha capacidade de fazer a ligação com outras bandeiras, como as da moralidade — não do moralismo —, das inovações industriais etécnico-produtivas, da ecologia integral, da solidariedade etc.”
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Depois de três anos de crise econômica, hoje já é possível ter mais clareza de quais foram os elementos que levaram o Brasil a essa situação?
Guilherme Delgado — Vou delimitar a crise econômica a um período mais objetivo, porque existem outras tensões localizadas. A recessão profunda ocorreu no período 2015-2017. Antes disso havia um processo de esfriamento da atividade, mas naquilo que diz respeito ao emprego, a economia ainda não havia se tornado desempregadora líquida. Ela só vai se tornar um problema sério de desemprego aberto a partir de dezembro de 2014 e, fortemente, durante todo o ano de 2015, 2016 e 2017. Então, essa crise tem os condicionantes econômicos já conhecidos da crise das commodities, e foi agravada pela questão da crise política depois da eleição da presidente Dilma, das investigações seletivas e fortes contra o PT, do desenvolvimento da Lava Jato.
Mas foi principalmente a desorganização do sistema econômico após a adoção da política do ministro Levy, em 2015, continuada e aprofundada pelo ministro Meirelles, que produziu um sistema de recessão profunda, a qual praticamente dobrou em dois anos e meio. A taxa de desemprego aberto foi de 6% em janeiro de 2015 para quase 14,5% em meados deste ano. Desemprego aberto – para traduzir para o público em geral – é a quantidade de trabalhadores dentro da população economicamente ativa que está procurando emprego no mês de referência e não encontra. Isto é, em uma população de 103,0 milhões de habitantes, se 14% dessa população procura emprego e não encontra, isso significa que há uma faixa de 15 milhões de pessoas desempregadas; esse número dá o grau de magnitude da crise.
IHU On-Line — Qual diria que é a atual situação da economia brasileira neste momento? O governo diz que a economia começou a se recuperar. Essa visão é correta? As políticas econômicas adotadas pelo governo estão dando resultado ou não?
Guilherme Delgado — Essa narrativa oficial é a que vai ao encontro dos desejos coletivos, pois ninguém gostaria de ter uma crise prorrogada e aprofundada para frente. Então, todas as pessoas — à esquerda, à direita, ao centro ou independente de posição ideológica — querem um lenitivo à situação. Em cima dessa expectativa e desejo coletivo, cria-se uma narrativa que, aparentemente, faz o acalanto geral da sociedade, mas, infelizmente, ela é falsa. Não há esses sinais de melhora, até porque quem constrói essa narrativa é, ao mesmo tempo, responsável e prorrogador dos ingredientes que a falsificam do ponto de vista dos fatos.
Por exemplo, ao analisar a situação do desemprego, temos que considerar os dados reais. Atualmente existem três medições de desemprego oficiais: a pesquisa de mão de obra das capitais e regiões metropolitanas feita pelo IBGE; a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Pnad mensal; a Pnad trimestral, que mede todo o país a partir de uma amostra; e o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados - Caged, que mede de forma cadastral todo o emprego e desemprego formal. Portanto, para traçar um quadro da realidade, é preciso cotejar essas três fontes, e não pegar uma única fonte.
Dados do desemprego
O que está acontecendo no terceiro trimestre, cotejando essas três fontes? Do ponto de vista do emprego formal, que é aquele emprego com carteira assinada ou com contribuição ao INSS, o que temos é uma diminuição do desemprego. Portanto, se pegarmos o período que vai até julho de 2017, temos, segundo dados do Caged, um saldo líquido negativo de cerca de 400 mil empregos perdidos, que são os empregos cessados deduzidos dos empregos criados. No último mês de julho, e em alguns meses anteriores, houve um movimento de 35 mil empregos criados no mês e, ao longo dos 12 meses, foram criados 160 mil empregos segundo o Caged.
Mas, ainda de acordo com o Caged, do Ministério do Trabalho, o acumulado dos oito primeiros meses do ano mostra que foram abertas 163 mil vagas e, no mesmo período, foram extintas 544 mil vagas. Desse modo, há um saldo negativo de 400 mil vagas. Ora, para quem estava com um saldo negativo de 1,5 milhão de vagas nos anos anteriores, pode-se dizer que diminuiu o tamanho do desemprego, mas, dizer que nós temos no mercado formal uma situação alvissareira, é muita cara de pau do ministro Meirelles.
Na pesquisa Pnad, que mede os mercados formal e informal, aparece um movimento maior do mercado informal no terceiro trimestre. O mercado informal, que estava para a linha residual na fase de criação de empregos, passou a ser muito mais evidente, mas o mercado informal é formado pelas pessoas que criam, por iniciativa própria, atividades de sobrevivência. Se há uma recuperação do mercado informal, mas o mercado formal continua negativo, temos que colocar uma dúvida nessa recuperação, pois é uma recuperação que joga os antigos empregos na informalidade, ou seja, os retira da proteção social e os retira de um mínimo de garantia de direitos. Assim, os dados da Pnad do segundo trimestre de 2017 mostram uma certa recuperação no setor informal, com cerca de um milhão de empregos criados, mas os dados do Cagedmostram um saldo líquido negativo do mercado formal.
Com o tamanho do desemprego aberto e com o tamanho da força de trabalho, temos que dizer que o governo está criando muita expectativa em cima de um fato, de uma factualidade discutível. Até porque, para realmente ativar o mercado de trabalho, é preciso realizar investimentos em setores altamente criadores de mãos de obra, como a construção civil, a construção pesada, a atividade industrial etc., e esses setores estão claudicantes. Sempre temos que estar torcendo pela recuperação do mercado de trabalho e agir na perspectiva de resolver os problemas da conjuntura, mas torcer é uma coisa. Torcer os fatos, como faz o governo, é outra totalmente diferente.
IHU On-Line — Além desses dados em relação ao emprego, há outros dados que confirmam sua tese de que não há melhora significativa na economia?
Guilherme Delgado — Para recuperar a economia é preciso ter alguma sinalização de crescimento do investimento, de crescimento do consumo, de crescimento da diversificação das exportações, mas esses chamados fatores de demanda efetiva, que fazem a conexão com a criação de empregos, estão estacionados. Mesmo as exportações, sobre as quais é passada uma imagem distinta da real, não estão muito bem. Se formos verificar a trajetória de crescimento das exportações, veremos que, primeiro, as exportações são muito concentradas em todos os quadros e, segundo, que elas não estão crescendo em termos reais; estão crescendo em termos físicos. O investimento, tanto privado quanto público, das contas nacionais está bem atrasado, e o consumo das famílias também, por conta dessa situação de desemprego. Em uma economia como essa, em uma crise como essa, se não tivermos um protagonismo da política estatal para contrapor as tendências do mercado, não será possível recuperar a economia. Esperar que o mercado tenha remédios virtuosos para tirar a economia da crise não é fazer uma leitura correta da história econômica, nem da teoria econômica do mercado de trabalho; não é assim que funciona.
Política anticíclica
Nós precisamos, sim, de uma política anticíclica. Simplesmente ter inflação baixa ou baixar a taxa de juros — aliás, baixar a taxa de juros que ainda é, em termos reais, a mais alta do mundo — não é suficiente. É preciso ter políticas de demanda efetiva, ou seja, é através da criação de demanda efetiva, quando os setores do mercado estão deprimidos, quando a atividade privada está deprimida, que é possível sinalizar um novo momento, uma nova situação. Essa nova situação não se cria com a verdadeira camisa de força que o governo colocou para si próprio, impedindo os orçamentos públicos de terem crescimento real nos próximos 20 anos. Portanto, o doutor Meirelles está fazendo o discurso da magia, e não um discurso da realidade. A política oficial se autoesterilizou do ponto de vista da demanda efetiva, o sistema financeiro ficou ilimitado sem os limites que se impôs ao gasto primário, o consumo foi paralisado pela dificuldade das pessoas de terem renda e acesso ao emprego. Ele está esperando o quê? Que os mercados privados vão, por virtuosidade inerente a sua condição espiritual, investir?
A ideia de que já estamos mostrando sinais de recuperação é discurso para inglês ver: se olharmos os dados do mercado de trabalho e o funcionamento da indústria e do comércio, veremos que esses dados não corroboram esse discurso.
IHU On-Line — Já é possível sentir os efeitos da PEC 55, do teto dos gastos? Quais são as implicações sociais do ajuste fiscal feito pela equipe econômica do governo e quais as implicações da redução do orçamento social de 2018?
Guilherme Delgado — Sim, claramente. O BNDES está constrangido a devolver prematuramente recursos para fechar as contas do governo. Portanto, ele nem financia a infraestrutura, nem financia as concessões.
O orçamento social da saúde e da seguridade social estão constrangidos pela PEC do teto. Mesmo que haja recursos via recuperação econômica, supondo que ela venha a partir de agora, e mesmo que os recursos da arrecadação tributária e patrimonial da União cresçam, e as contribuições sociais vinculadas à seguridade social cresçam acima da inflação, a PEC do teto impede que esse crescimento se converta em aplicação em saúde e assistência social. O sistema de saúde está sendo desmontado na base de orçamentos cada vez mais constrangidos. Apesar da propaganda do governo em relação à educação básica e ao novo currículo, na prática não existe recurso nem para manter o padrão educacional nem para diversificar várias formas e modalidades de ensino médio, como propõe a lei.
Então, na verdade nós temos uma fantasia vendida ao país e uma mídia que não faz análise crítica da situação, porque o próprio governo não tem um projeto capitalista para o país. Não é como na época do golpe de 64, em que a dupla (Roberto) Campos e (Otávio Gouvea) Bulhões tinha um projeto capitalista para o país. Atualmente não existe isso. O que existe é uma política bastante curto-prazista para resolver problemas do sistema financeiro. Agora, o sistema econômico como um todo e a sua recuperação, assim como o desenho de um ciclo novo, não estão desenhados em lugar nenhum.
IHU On-Line — Muitos criticam o modelo econômico neoliberal e dizem ainda que essa tem sido a linha orientadora do governo Temer, como havia sido do governo Dilma. Qual seria o modelo econômico ideal para a situação brasileira?
Guilherme Delgado — É preciso ter um ente público com capacidade de protagonizar o investimento em infraestrutura. Esse ente público nos governos Lula e Dilma foi o BNDES, que fazia a gestão de fundos do Tesouro e financiava o investimento. Mas o fato de ter havido uma má utilização dos recursos é outra questão. Se não tiver esse planejamento para infraestrutura através do ente público, o ente privado não entrará como carregador de risco para elevar a economia a um patamar A ou B. Ele entra quando tem uma parceria público-privada ou uma ação estatal específica. Não tem mistério. Ou seja, é o receituário keynesiano que tem os elementos para enfrentar esse tipo de crise. Não que Keynes tenha dito tudo e previsto tudo a respeito do sistema, que na época nem tinha as características mundiais que tem hoje.
Meirelles sabe ganhar dinheiro, mas fazer política de reestruturação, não. Ele não sabe gerir um pacto de economia política para tirar a economia do fosso ou da estagnação permanente. Portanto, deveríamos trazer para o sistema econômico uma gestão capitalista keynesiana, porque a gestão neoliberal não faz isso. Ela simplesmente vai vendendo ativos e criando mecanismos totalmente favoráveis aos mercados financeiros para que eles entrem e resolvam o problema da economia, como se fizesse parte desses setores a caridade pública ou os objetivos nacionais e sociais.
Falta política de investimento na área de infraestrutura, falta o vetor de política social, o qual permite que com ou sem crescimento haja uma distribuição básica para ajudar as pessoas que estão desempregadas ou em situações de completo desalento do sistema econômico. Esse sistema de proteção social também cria demanda efetiva no circuito básico da economia. E teria que criar os incentivos tecnológicos e educacionais para haver inovação e aumento da produtividade geral no sistema. Sem esses elementos, não se produz recuperação econômica, e sim falácias, engodos.
IHU On-Line – Pelo menos neste momento há um certo descrédito em relação às parcerias público-privadas por conta da corrupção desvelada nesses casos. Como garantir esse tipo de investimento público sem cair na corrupção?
Guilherme Delgado — Esse é um campo sobre o qual precisamos pensar bem. O país está envolvido numa cruzada moral e tem alguns elementos reais e tangíveis, mas, de outro lado, existe um moralismo bastante discutível e farisaico, e esse lado é ruim. Ou seja, praticar uma política de colocar a água suja fora junto com a criança, porque o importante é colocar a água suja fora, não dá. E a criança? Estamos no terceiro ano de recessão profunda e temos 14 milhões de desempregados. Então, temos que trazer como prioridade o resgate da dignidade das pessoas que estão jogadas no lixo. O mundo da vida é o mundo da forma como ele existe. Ou seja, aprendemos as lições, mas não podemos ficar a vida inteira sobre um credo moralista de não fazer parceria público-privada por conta da corrupção. Isso paralisa o sistema.
Na realidade, é preciso submeter esse credo moral a uma avaliação mais concreta. Uma coisa é a corrupção número um, outra coisa é a corrupção número dois e outra, a corrupção número três. A corrupção número um, que é a corrupção feita pelo sistema financeiro, está incólume; a corrupção número dois, que é a que se faz através docolarinho branco das empreiteiras, está sendo combatida; e a corrupção número três, que é a do “pé de chinelo”, sempre foi aquela com a qual se teve preocupação. Então, na verdade, o discurso moralista é seletivo: temos uma Medida Provisória - MP 784, vigente desde julho, que transforma os ilícitos financeiros praticados no Banco Central e pela Comissão de Valores Imobiliários insuscetíveis de conhecimento público e de punição. Se quer maior estímulo à corrupção do que o da corrupção do sistema financeiro?
Temos que colocar o discurso da corrupção nos devidos termos e ter uma conduta equilibrada para trazer ao sistema capitalista uma nova forma de relacionamento com o Estado em todos os domínios e não somente no das empreiteiras, mas no domínio do mercado de capitais, no domínio da administração pública, da política. Precisamos trabalhar uma cultura da honorabilidade sistêmica e não uma questão seletiva como fazem certos setores do MP e do Judiciário.
IHU On-Line – Mas em relação ao sentimento da população em geral, diria que há somente um moralismo? Não há também uma condenação ao mau uso do dinheiro público?
Guilherme Delgado — Sim, mas uma coisa é moralidade e outra é moralismo. Estou dizendo que precisamos introduzir uma ética de valores republicanos em toda a administração pública. Portanto, por que excluir o sistema financeiro ou o mercado de capitais desse processo? Numa sociedade capitalista e monetária como a nossa, a massa de dinheiro que circula para todas as finalidades se dá pelo sistema bancário e pelo mercado de capitais, e não nas malas e meias e cuecas das pessoas.
Agora quando se exclui o sistema financeiro dessas regras e práticas, que moralidade é essa? Nós precisamos questionar isso. E outra coisa, precisamos trabalhar com os critérios da ética pública e não do moralismo, porque todo moralismo é sempre uma coisa escusa; estamos trabalhando na aparência com a legalidade, mas por fora se age de outra forma. Então, nada de moralismo; precisamos do princípio da ética republicana. Infelizmente esse princípio nunca foi tão desprezado como neste governo: como um governo com duas denúncias sucessivas e que não se deixa investigar, tem credibilidade para mover um processo de transição em que a ética pública é central?
IHU On-Line — Recentemente algumas pesquisas que são elaboradas com base nos dados do Imposto de Renda têm demonstrado que não houve uma redução das desigualdades no país nos últimos 15 anos. Como reage ao resultado dessas pesquisas? O que impede o Brasil de enfrentar, definitivamente, as desigualdades?
Guilherme Delgado — Vamos “historicizar”: há uma situação até 2013 e outra situação de 2014/2015 para cá. Até 2013, com a aplicação dos direitos sociaisconstitucionalizados, houve, sim — e isso está empiricamente demonstrado —, uma melhoria na renda do trabalho, por conta dos direitos sociais e da expansão rigorosa do mercado de trabalho formal, o qual é impelido pela força do mercado, mas é associado ao direito social. O que fracassou, nesse período que estou mencionando, foram tentativas de completar essa melhoria da igualdade com uma forma de financiamento dessa igualdade ou desses direitos que fosse mais equilibrada do ponto de vista tributário. Quem estava pagando esses direitos sociais e essas políticas de valorização do salário mínimo e de inclusão de novas pessoas no mercado de trabalho era uma estrutura tributária muito vinculada às folhas salariais e às despesas de consumo; não era o segmento mais rico da sociedade que estava pagando isso.
Mesmo com uma melhoria relativa na distribuição da renda do trabalho pela via dos direitos sociais, a forma de financiar isso foi tirar dinheiro dos pobres e da classe média, mas não dos ricos, o que rebelou a classe média contra isso. De 2015 para cá tem um processo de regressão desse processo, e a regressão se dá por conta do excessivo aumento do desemprego aberto, da ampliação da população dependente da informalidade, da ampliação da população desalentada, que nem procura mais emprego, porque sabe que não vai encontrar. Portanto, do ponto de vista distributivo, piorou muito, nesse período, a pequena melhoria que houve na distribuição. Portanto, tem que separar o joio do trigo.
Houve sim — temos dados sobre isso —, no período de 2000 a 2013, uma melhoria na distribuição funcional da renda, que é a distribuição da relação trabalho/capital, sem que os mais ricos perdessem. O 1% mais rico da população aumentou a sua participação, e a faixa de pessoas que ganham até três salários mínimos — a classe C, como foi denominada — melhorou também, mas melhorou com uma estrutura tributária perversa porque não se conseguiu e, mesmo, nem se propôs fazer uma reforma tributária progressiva no período. Agora isso foi perdido, e os fatores causais dessa melhoria da renda do trabalho, que eram o crescimento do emprego e o crescimento das remunerações pelos direitos sociais, também estão perdidos. Agora estamos em uma fase regressiva dupla.
IHU On-Line — Hoje cogita-se e especula-se a possibilidade de o ministro Henrique Meirelles ser candidato a presidente pelo PSD, sendo o candidato pelo Centrão. Como vê essa possibilidade? Qual seria a possível agenda econômica de um governo Meirelles?
Guilherme Delgado — Horrível, como é o ministro Meirelles, e pior ainda se for o presidente Meirelles. Eu não vejo, do ponto de vista do processo eleitoral direto, nenhuma possibilidade de ele ser presidente, a menos que fizesse um acerto com o Congresso, criando um parlamentarismo de ocasião, ou se ele virasse um primeiro-ministro de ocasião, com esse tipo de agenciamento. O Meirelles foi eleito deputado federal em Goiás pelo PSBD no começo dos anos 2000, mas não assumiu, pois em seguida assumiu como ministro do Banco Central no governo Lula. É uma pessoa sem experiência política e com uma gestão econômica que, do ponto de vista da maioria da população, não tem nenhuma qualidade.
O fato de se veicular como uma solução faz parte desse jogo de narrativas, mas sem nenhuma correspondência com os fatos. Meirelles não está conduzindo a nenhuma política de recuperação; está conduzindo a uma política de desestruturação e de anomia social, porque conduz à desestruturação da Ordem Constitucional de 1988, conduz o processo de desestruturação da política de crescimento econômico do governo anterior — governo Lula —, do qual ele participou, conduz um processo de gestão nas finanças públicas totalmente desequilibrado, e se apresenta como salvador da pátria. Mas quem tem os resultados, onde estão os resultados dessa salvação, que ninguém vê?
IHU On-Line — Também há uma especulação em relação às candidaturas de Ciro Gomes e Bolsonaro. Na sua opinião, o que constituiria um programa econômico desses candidatos?
Ciro Gomes, no Nordeste, e o Requião, no Sul, têm perfis parecidos e poderiam ser um plano B na hipótese de o Lula não disputar a reeleição
Guilherme Delgado — São especulações distintas. O Bolsonaro é de extrema-direita, é o campo do fascismo — não sei qual é o projeto econômico dele e nem sei se tem projeto. Não parece alguém que tenha perfil minimamente preparado. Ele é uma espécie de aríete que está no sistema para funcionar como espantalho. Na verdade, eu acredito que a direita vem por outros caminhos, com Alckmin, Doria, mas não com Bolsonaro, porque ele é, também do ponto de vista da direita, imprevisível.
O Ciro Gomes, no Nordeste, e o Requião, no Sul, têm perfis parecidos e poderiam ser um plano B na hipótese de o Lula não disputar a reeleição por objeções do sistema judiciário. Portanto, essa hipótese centro-esquerda pode ser um plano B ao qual o PTpossa aderir — é difícil o PT aderir e não querer ser ele próprio o protagonista de uma chapa. Considerando a possibilidade dessa chapa, aí sim teríamos um programa de natureza de desenvolvimento com um certo nacionalismo e uma conexão inter-regional. Talvez uma chapa desse tipo possa surgir, mas vai ser difícil saber quem vai aceitar ser a cabeça e quem será vice; será uma disputa por vaidades.
Agora, essa possibilidade teria que se alimentar de um outro discurso de caráter de um desenvolvimento que recupere esse compromisso com a igualdade, recupere compromissos com um nacionalismo sadio — não esse nacionalismo de ultradireita que circula por aí —, e também tenha capacidade de fazer a ligação com outras bandeiras, como as da moralidade — não do moralismo —, das inovações industriais e técnico-produtivas, da ecologia integral, da solidariedade etc. Enfim, trazendo sangue novo e, principalmente, alento para a sociedade e prometendo respostas o mais rápido possível para o clima de desalento, porque a sociedade está imersa — está aí o porquê de não se manifestar — nesse quadro que fomos metidos de 2015 para cá. O governo Temer agravou o processo, mas isso vem de antes.
IHU On-Line — Mas haveria diferenças substanciais nos programas econômicos de Doria, Alckmin, Ciro, Lula?
Guilherme Delgado — O Doria teria um programa reciclado do PSDB: é a ideia do Estado mínimo, da abertura aos mercados, da desregulação e a continuidade do programa econômico do governo Temer, confiando que o mercado irá socorrê-lo lá na frente. O Alckmin é algo disso, mas um pouco mais experiente politicamente. Aliás, acredito que a possibilidade da candidatura do PSDB é mais pela linha do Alckmin do que do Doria, pois o Doria é muito iniciante no processo.
As figuras do tipo Requião e Ciro Gomes, primeiramente, têm um jogo midiáticomuito forte no sentido da moralidade — e até do moralismo também. Isso, neste momento, ganha voto, mas, principalmente, eles têm compromissos com o nacionalismo econômico e com a ideia do crescimento. Talvez eles não tenham a mala de votos suficientes que precisariam, portanto, essa mala de votos só poderia ser obtida com o apoio direto, ostensivo ou tácito do Lula, caso ele seja candidato. Agora, falo isso numa perspectiva puramente eleitoral, porque, na verdade, 2018 só tem condições de mudar o jogo se a figura da eleição presidencial associar uma tese plebiscitária, todo um conjunto de “nós” que o governo Temer deu na situação, principalmente com a PEC do teto, que, uma vez vigente, não permitirá governar. A PEC do teto é a camisa de força que torna inviável a governabilidade.
Precisamos de uma Reforma da Previdência, mas não dessa que está aí, e sim de uma reforma que torne o sistema de direitos sociais sustentável. Precisamos de uma reforma tributária progressiva, no sentido de captar recursos dos ricos para passar aos pobres, não o inverso. Precisamos de política agrária e mudanças na estrutura agrária, precisamos de reformas no sistema financeiro, pois ele é o grande sorvedouro da situação do desequilíbrio fiscal-financeiro da República, e ninguém fala disso. O sistema financeiro virou uma espécie de entidade independente do Brasil a quem todos estão subordinados, e nem sequer se discute isso. Precisamos colocar, também, freios no sistema do agronegócio, sem qualquer limitação do ponto de vista socioambiental. Agora, essas teses, se colocarmos todas juntas, não sei se dão votos, mas precisam ser discutas, caso contrário, na hora de chegar ao governo não se terá conhecimento e convicção para poder iniciar um projeto novo.
IHU On-Line — Como o senhor reage tanto à postura do PT em relação à delação do Palocci, quanto à carta de resposta do Palocci ao PT? Qual é o impacto político dessa situação?
Guilherme Delgado — O que existe nesse processo de delação envolvendo o Lula é uma seletividade enorme e uma curiosa orquestração também. Quando o fato midiático direto é a segunda denúncia contra o Temer, assim como foi a primeira denúncia contra ele, salvou-se a pessoa do Temer e, de repente, a mídia escalou o assunto Lula e passou a veicular notícias sobre ele com mais tempo e estridência do que as denúncias contra o governo Temer. Portanto, é pelo menos algo curioso.
Em suas revelações, Palocci não disse nada de novo e nem de objetivo, ele simplesmente disse que passou dinheiro, fez isso e aquilo, ou seja, pega os mesmos fatos midiáticos em consideração na justiça, que é o sítio em Atibaia, o apartamento vizinho ao que o Lulatem em São Bernardo e o episódio do tríplex, o que me parece muito mais uma construção ao agrado dos promotores e do juiz de Curitiba para justificar um benefício. Em termos de factualidade e de evidência, ele não acrescenta nada. Do ponto de vista midiático, o Palocci acusar o Lula é estrondoso em termos de imagem pública negativa. No entanto, do ponto de vista do fato jurídico, é um zero à esquerda.
Porém, como no mundo da política, como dizia César, “não importa ser honesto, mas parecer honesto”, estão investindo na tese de desfigurar a alegada honestidade de Lulapara, tendo esse trunfo na mão, conseguir justificar suas sentenças já brevemente preparadas.
Não acho que o Lula deva ser encarado como o salvador da pátria, nem é essa figura que a mídia costuma apresentar como “o grande criminoso nacional”; não é nada disso. Ele cumpriu um papel, no seu tempo histórico, razoável — que até acho bom. Ele tem o direito de concorrer à Presidência da República. Porém, não aposto na sua eleição ou na sua reeleição como um caminho que possamos trilhar com segurança, dada a quantidade de armadilhas que os adversários criaram contra ele. Portanto, sem ser o salvador ou a besta negra da pátria, ele tem que ser respeitado. Acredito que esses processos conduzidos por um judiciário partidarizado não nos esteja dando um processo de reconstrução política do país, mas atrapalhando esse processo.
- Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.
02 Outubro 2017
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