Mais que um dilema, o trilema da globalização
17/09/2007
- Opinión
Enquanto que os defensores da globalização convencional proclamam seus benefícios, tanto econômicos como políticos, na América Latina se somam os conflitos com a democracia e a autonomia nacional que gera a abertura ao comércio e as finanças mundiais. Ingressar na globalização exige renúncias e, embora pouco se fale delas, entre as mais dolorosas estão o debilitamento do Estado e a democracia.
Uma observação atenta permite encontrar vários exemplos: no Peru, a promoção da produção nacional encolhe sob o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, a política agropecuária brasileira segue mais voltada às agroindústrias exportadoras do que a erradicar efetivamente a fome, enquanto que um tribunal internacional de arbitragem notifica a Argentina que deverá pagar uma indenização ao consórcio francês Vivendi, que operava como provedor de água potável.
As bases conceituais destas tensões entre as metas globais e as renúncias nacionais acabam de ser recordadas por Dany Rodrik, um destacado economista da Universidade de Harvard. Quando se aponta para três objetivos: a globalização comercial, manter a soberania nacional e a democracia, se desemboca em contradições inevitáveis, já que os avanços na direção de uma dessas metas exigem renúncias nas outras. Rodrik apresenta esse problema como muito mais que um dilema: é um “trilema”, sujeito a uma impossibilidade prática já que não se podem alcançar as três metas de uma só vez.
Quase todos os governos da América Latina, com diferente ênfase, insistem na inserção na economia global, o que, inevitavelmente, exige que se eliminem as regulações, travas e custos no comércio de bens e do fluxo de capitais. Marchar por esse caminho desemboca em redefinir o papel do Estado-nação, aplicando medidas para atrair investidores e promover exportações. Mas essas ações têm conseqüências, e uma das mais evidentes tem sido uma redução do Estado em vários temas, como desproteger setores produtivos nacionais. Mas o processo é um pouco mais complexo já que, simultaneamente, os governos se fortalecem em outros aspectos para assegurar esse fluxo de mercadorias e capitais. Por exemplo, se abandona o apoio à produção agropecuária, mas se protegem os investimentos, inclusive militarmente, de empresas mineradoras ou petrolíferas.
Esta nova rede global baseia-se em regras e convênios que vão muito mais além do comércio convencional de mercadorias, alcançando temas tão díspares como os serviços ou o fluxo de capitais. Além disso, o Estado-nação subscreve ou aceita compromissos internacionais sob os quais cede parte de suas faculdades de regulação, e ata suas funções à economia global. Em constante competição frente a outros países para atrair investidores, apressam-se as exigências ambientais, reduzem-se os padrões trabalhistas e há um descolamento do ordenamento territorial. Mais cedo ou mais tarde, os agentes globais se apropriam de uma proporção maior de lucros, enquanto que as comunidades locais devem lidar com os efeitos sociais e ambientais negativos. As reações da cidadania são ignoradas, e, em alguns casos, combatidas, devido ao entorpecimento por esse fluxo de capitais, e, portanto, a democracia se deteriora.
Ainda mais, a globalização está gerando sua própria institucionalidade. O CIADI (Centro Internacional de Arranjo de Diferenças Relativas a Investimentos) é um excelente exemplo. Muitas nações firmaram compromissos que transferem a esse centro, dependente do Banco Mundial, os poderes para resolver controvérsias que ocorreram dentro de seu território. Esse centro é o que acaba de resolver que a Argentina deverá pagar uma indenização à corporação francesa Vivendi. Poucos dias atrás, esse mesmo organismo rechaçou um recurso de medidas cautelares apresentado contra o Equador pela petroleira Occidental (Oxy). Semanas antes, o CIADI também rechaçou outra ação contra o Equador, nesse caso levantada pelo MCI Power Group dos Estados Unidos.
A questão chave não reside no êxito ou no fracasso de cada uma dessas resoluções, mas em compreender que a continuada operação de um mecanismo desse tipo sempre é uma renúncia. Renuncia-se a resolver com eficiência e justiça as disputas comerciais, e, para cumprir com as exigências dos agentes econômicos globais, depende-se de um mecanismo que flutua no espaço internacional, baseado em práticas empresariais, onde as decisões são tomadas por árbitros internacionais.
O “trilema” de Rodrik adverte sobre essa problemática. Se se aprofunda a integração comercial global, não poderão ser atendidas as exigências cidadãs nacionais para reverter suas conseqüências negativas e, portanto, a democracia acaba diminuída. Apesar disso, regimes políticos tão diferentes, como Alan García no Peru, ou Tabaré Vázquez no Uruguai, apostam na chegada dos investidores, e revelam, pelo exemplo, um Estado-nação que não se enfrenta com a globalização, mas que facilita e alenta sua inserção global. São governos absorvidos em assegurar um mercado aberto, que seja “amistoso”, “confiável” e “seguro” para o capital internacional.
As políticas públicas encolhem-se diante de medidas mercantis, e sua especificidade nacional se desvanece ao fazê-las compatíveis com as necessidades dos mercados globais. As decisões políticas reduzem-se a custo de fortalecer a interconexão econômica; a busca ativa do desenvolvimento se enfraquece, já que é esperado como conseqüência mecânica do crescimento econômico. Essa redução da política obriga a isolar as instituições e mecanismos de decisão política, e limitar a participação da cidadania.
As estreitas vinculações dessas tensões com o sonho globalizador não recebem a atenção que merecem, e, em muitos casos, o “trilema” de Rodrick é ignorado. Assim é que as propostas econômicas governamentais não discutem as implicações negativas da globalização, embora suas conseqüências sejam sofridas. Os processos de integração regional dentro da América do Sul esquecem seu potencial para permitir outra forma de inserção internacional, recuperando a autonomia frente à globalização.
Ao contrário, insistem em permanecer como acordos intergovernamentais baseados no protagonismo presidencial. Terminam sendo plataformas para mergulhar ainda mais dentro da globalização, quando, na realidade, poderiam ser os marcos para fortalecer o Estado e a democracia na busca de um desenvolvimento comprometido com as necessidades nacionais e regionais.
29/08/2007
* E. Gudynas é pesquisador em D3E (Desenvolvimento, Economia, Ecologia, Eqüidade – América Latina), em Montevidéu, no Uruguai.
Tradução do espanhol para o português de Omar L. de Barros Filho, editor de ViaPolítica e membro de Tlaxcala, a rede de tradutores para a diversidade lingüística.
Fonte: Alai – America Latina en Movimiento
Uma observação atenta permite encontrar vários exemplos: no Peru, a promoção da produção nacional encolhe sob o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, a política agropecuária brasileira segue mais voltada às agroindústrias exportadoras do que a erradicar efetivamente a fome, enquanto que um tribunal internacional de arbitragem notifica a Argentina que deverá pagar uma indenização ao consórcio francês Vivendi, que operava como provedor de água potável.
As bases conceituais destas tensões entre as metas globais e as renúncias nacionais acabam de ser recordadas por Dany Rodrik, um destacado economista da Universidade de Harvard. Quando se aponta para três objetivos: a globalização comercial, manter a soberania nacional e a democracia, se desemboca em contradições inevitáveis, já que os avanços na direção de uma dessas metas exigem renúncias nas outras. Rodrik apresenta esse problema como muito mais que um dilema: é um “trilema”, sujeito a uma impossibilidade prática já que não se podem alcançar as três metas de uma só vez.
Quase todos os governos da América Latina, com diferente ênfase, insistem na inserção na economia global, o que, inevitavelmente, exige que se eliminem as regulações, travas e custos no comércio de bens e do fluxo de capitais. Marchar por esse caminho desemboca em redefinir o papel do Estado-nação, aplicando medidas para atrair investidores e promover exportações. Mas essas ações têm conseqüências, e uma das mais evidentes tem sido uma redução do Estado em vários temas, como desproteger setores produtivos nacionais. Mas o processo é um pouco mais complexo já que, simultaneamente, os governos se fortalecem em outros aspectos para assegurar esse fluxo de mercadorias e capitais. Por exemplo, se abandona o apoio à produção agropecuária, mas se protegem os investimentos, inclusive militarmente, de empresas mineradoras ou petrolíferas.
Esta nova rede global baseia-se em regras e convênios que vão muito mais além do comércio convencional de mercadorias, alcançando temas tão díspares como os serviços ou o fluxo de capitais. Além disso, o Estado-nação subscreve ou aceita compromissos internacionais sob os quais cede parte de suas faculdades de regulação, e ata suas funções à economia global. Em constante competição frente a outros países para atrair investidores, apressam-se as exigências ambientais, reduzem-se os padrões trabalhistas e há um descolamento do ordenamento territorial. Mais cedo ou mais tarde, os agentes globais se apropriam de uma proporção maior de lucros, enquanto que as comunidades locais devem lidar com os efeitos sociais e ambientais negativos. As reações da cidadania são ignoradas, e, em alguns casos, combatidas, devido ao entorpecimento por esse fluxo de capitais, e, portanto, a democracia se deteriora.
Ainda mais, a globalização está gerando sua própria institucionalidade. O CIADI (Centro Internacional de Arranjo de Diferenças Relativas a Investimentos) é um excelente exemplo. Muitas nações firmaram compromissos que transferem a esse centro, dependente do Banco Mundial, os poderes para resolver controvérsias que ocorreram dentro de seu território. Esse centro é o que acaba de resolver que a Argentina deverá pagar uma indenização à corporação francesa Vivendi. Poucos dias atrás, esse mesmo organismo rechaçou um recurso de medidas cautelares apresentado contra o Equador pela petroleira Occidental (Oxy). Semanas antes, o CIADI também rechaçou outra ação contra o Equador, nesse caso levantada pelo MCI Power Group dos Estados Unidos.
A questão chave não reside no êxito ou no fracasso de cada uma dessas resoluções, mas em compreender que a continuada operação de um mecanismo desse tipo sempre é uma renúncia. Renuncia-se a resolver com eficiência e justiça as disputas comerciais, e, para cumprir com as exigências dos agentes econômicos globais, depende-se de um mecanismo que flutua no espaço internacional, baseado em práticas empresariais, onde as decisões são tomadas por árbitros internacionais.
O “trilema” de Rodrik adverte sobre essa problemática. Se se aprofunda a integração comercial global, não poderão ser atendidas as exigências cidadãs nacionais para reverter suas conseqüências negativas e, portanto, a democracia acaba diminuída. Apesar disso, regimes políticos tão diferentes, como Alan García no Peru, ou Tabaré Vázquez no Uruguai, apostam na chegada dos investidores, e revelam, pelo exemplo, um Estado-nação que não se enfrenta com a globalização, mas que facilita e alenta sua inserção global. São governos absorvidos em assegurar um mercado aberto, que seja “amistoso”, “confiável” e “seguro” para o capital internacional.
As políticas públicas encolhem-se diante de medidas mercantis, e sua especificidade nacional se desvanece ao fazê-las compatíveis com as necessidades dos mercados globais. As decisões políticas reduzem-se a custo de fortalecer a interconexão econômica; a busca ativa do desenvolvimento se enfraquece, já que é esperado como conseqüência mecânica do crescimento econômico. Essa redução da política obriga a isolar as instituições e mecanismos de decisão política, e limitar a participação da cidadania.
As estreitas vinculações dessas tensões com o sonho globalizador não recebem a atenção que merecem, e, em muitos casos, o “trilema” de Rodrick é ignorado. Assim é que as propostas econômicas governamentais não discutem as implicações negativas da globalização, embora suas conseqüências sejam sofridas. Os processos de integração regional dentro da América do Sul esquecem seu potencial para permitir outra forma de inserção internacional, recuperando a autonomia frente à globalização.
Ao contrário, insistem em permanecer como acordos intergovernamentais baseados no protagonismo presidencial. Terminam sendo plataformas para mergulhar ainda mais dentro da globalização, quando, na realidade, poderiam ser os marcos para fortalecer o Estado e a democracia na busca de um desenvolvimento comprometido com as necessidades nacionais e regionais.
29/08/2007
* E. Gudynas é pesquisador em D3E (Desenvolvimento, Economia, Ecologia, Eqüidade – América Latina), em Montevidéu, no Uruguai.
Tradução do espanhol para o português de Omar L. de Barros Filho, editor de ViaPolítica e membro de Tlaxcala, a rede de tradutores para a diversidade lingüística.
Fonte: Alai – America Latina en Movimiento
Link: http://www.alainet.org/active/19304&lang=es
https://www.alainet.org/en/node/123302
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