Relatório analisa direitos humanos no Brasil em 2004
02/12/2004
- Opinión
Em seus 37 artigos, o Relatório Direitos Humanos no Brasil
2004, lançado hoje pela Rede Social de Justiça e Direitos
Humanos, traz dados e análises importantes sobre os direitos
humanos no País ao longo dos últimos anos, e especialmente em
relação a situação em 2004.
Os quase 25 anos de estagnação da renda per capita, com
congelamento da péssima distribuição de renda e da riqueza, o
irresponsável atrelamento aos capitais internacionais de curto
prazo e a permanência de política econômica de corte neoliberal
nos anos 90 não poderiam resultar em outro cenário que não o de
predomínio da pobreza e de avanço da desestruturação social.
Esta é a conclusão do professor da Unicamp e Secretário do
Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade do Município de São
Paulo, Marcio Pochmann.
O que se viu no âmbito rural foi a continuidade de um triste
panorama de violações dos direitos fundamentais. Em setembro de
2004, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra realizou um
levantamento demonstrando que apenas 5.440 famílias de seus
acampamentos tinham sido assentadas desde o início do governo
Lula. Dados da Ouvidoria Agrária Nacional indicam que, de
janeiro a agosto de 2004, o número de ocupações de terra
aumentou 47% em relação ao mesmo período no ano passado,
chegando a 271.
O governo rejeitou a proposta de desapropriar 36 milhões de
hectares, a fim de distribuir terra para 1 milhão de famílias, a
um custo de R$ 24 bilhões, alegando que não havia verba
suficiente e diminuiu a meta para 400 mil famílias. Entretanto,
o Ministério da Fazenda aumentou a meta do superávit primário
com o FMI para além de R$ 56,9 bilhões.
O agronegócio, que concentra terra, água e renda, produz a um
custo sócio-ambiental altíssimo, predominantemente para
exportação, gerando divisas para uma elite privilegiada. A
irrigação de suas monoculturas consome 70% da água doce do país.
Suas máquinas substituem a mão-de-obra no campo, num país cujo
maior problema é o desemprego. Nos estados onde se dá a expansão
da agricultura empresarial, cresce tanto a violência privada,
quanto a ação repressiva do poder Judiciário.
Em relação aos transgênicos, o que está em disputa são dois
modelos de desenvolvimento rural: um centrado no latifúndio,
controlado pelos grandes grupos multinacionais e baseado nas
monoculturas dependentes de insumos químicos e outro centrado
nas pequenas e médias unidades de produção agropecuária,
organizado em redes de cooperativas, agroindústrias locais,
empresas nacionais, empresas públicas estratégicas, e baseado na
diversificação produtiva e em tecnologias orgânicas e
agroecológicas.
Para João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST, a
recusa em realizar pesquisas sobre produtos transgênicos gera
grandes dúvidas sobre sua segurança. "Além disso, qual seria o
problema em rotular tais produtos? Os defensores da liberação
não têm coragem de dizer que defendem o monopólio de dez
empresas transnacionais que controlam todas as sementes
transgênicas existentes no mundo. O que está em jogo é se
seremos um país que garante a segurança alimentar de seu povo."
Ao mesmo tempo, a situação das populações atingidas por
barragens continua crítica. A Comissão Mundial de Barragens
(World Commission On Dams- WCD/2000) estimou que 1 milhão de
pessoas foram expulsas de suas terras devido 'a construção de
barragens no Brasil. Isto corresponde a 300 mil famílias.
Oitenta milhões de pessoas já foram atingidas no mundo. Dados do
MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) mostram que a cada
100 famílias deslocadas, 70 não receberam nenhum tipo de
indenização.
O direito à água é um outro ponto levantado pelos pesquisadores
neste Relatório. Se 20% da população brasileira (cerca de 37
milhões de brasileiros) não têm acesso à água potável, 90% da
população rural brasileira não têm saneamento ambiental. A sede
está também nas periferias das cidades, principalmente de médio
e grande porte. Enfim, são os pobres que passam sede.
Mais uma vez, o Relatório retrata a gravidade do trabalho
escravo, situação na qual se encontram milhares de
trabalhadores. De 1995 a 2004, o Grupo Especial de Fiscalização
Móvel do Ministério do Trabalho libertou da escravidão por
dívida 13.119. Entre as pessoas denunciadas, algumas exercem
cargo político. Jorge e Leonardo Picciani, pai e filho
deputados, respectivamente estadual e federal pelo Rio de
Janeiro, têm fazenda denunciada no Mato Grosso; o deputado
pernambucano Inocêncio de Oliveira tem fazenda no Maranhão; e,
com fazenda no Pará, o prefeito João Braz da Silva, de Unaí,
Minas Gerais, e Francisco Donato de Araújo Filho, secretário de
Estado do Governo do Piauí.
No ranking de atividades nas quais são utilizadas mão-de-obra
escrava, a pecuária conta por 50% das ocorrências de escravidão,
o desflorestamento e a carvoagem por 25%, o agronegócio por
outros 25%. Na cadeia produtiva do trabalho escravo, existem
muitos produtos do nosso consumo cotidiano.
Nos quase dez anos de existência do Grupo Especial de
Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, 1.260 propriedades
foram fiscalizadas - em mais de 300 era utilizada mão-de-obra -
e pelo menos R$ 13,5 milhões foram pagos em indenizações
trabalhistas.
A dívida com os povos indígenas permanece gigantesca. No cômputo
geral das terras indígenas, tem-se hoje a seguinte situação:
terras indígenas registradas como patrimônio da União: 37,21%;
demarcações homologadas: 6,66%; terras com portarias
declaratórias do Ministro da Justiça: 6,06%; terras
identificadas como indígenas pela Funai: 4,60%; terras "a
identificar": 20,60% e terras "sem providências": 21,81%. Em
relação aos casos de violência contra os povos indígenas, é
importante destacar que em 2004, até o presente momento, o
Secretariado Nacional do Conselho Indigenista Missionário teve
conhecimento da ocorrência de 16 assassinatos de indígenas.
No âmbito urbano, os migrantes são um dos destaques desta obra.
Trabalhar nas oficinas de costura em São Paulo tornou-se idéia
comum na Bolívia. Anúncios nas estações de rádio oferecem
trabalho com salários até dez vezes maior que o mínimo
boliviano, além de casa e comida. Tudo parece fácil. Como não é
exigida experiência, muitos são os interessados. Mesmo para
aqueles que não podem custear sua viagem, há opção: os "gatos"
lhe pagam a viagem para depois descontar os custos de seus
salários. Mas as despesas de viagem são infladas e o valor do
salário, corroído. Cria-se o vínculo por dívida.
A situação da impunidade no Estado do Espírito Santo também está
aqui retratada. Em 2003, após um ano de atuação da Missão
Especial de Combate ao Crime Organizado, o número de homicídios
subiu para 1.782, ou seja, 54,8 de cada grupo de 100.000
habitantes, e o número de mortes violentas foi 2.228, o que
representa 106,7 de cada 100.000 habitantes. Vitória é a capital
brasileira com maior índice de mortes de pessoas com idade entre
15 e 24 anos: 197,1 assassinatos por grupo de 100.000
habitantes. Vale lembrar que a UNESCO considera situação de
guerra civil quando o índice é acima de 50 por cada grupo de
100.000 habitantes.
O déficit habitacional do Brasil é de 6,6 milhões de moradias.
Destas, 5,3 milhões encontram-se em áreas urbanas e 1,2 milhão
em áreas rurais. Mais de 10 milhões de domicílios são carentes
de infra-estrutura e 84% do déficit habitacional brasileiro é
concentrado nas famílias com renda de até três salários mínimos.
A média de crescimento da população brasileira foi de 1,6 % ao
ano e da população favelada de 4.3 % ao ano, entre 1991 e 2000.
O censo de 2000 registrou a existência de 1,7 milhões de
domicílios localizados em assentamentos precários, totalizando
6,6 milhões de pessoas.
As perdas salariais dos trabalhadores também foram grandes.
Comparando os ganhos com reajustes salariais com as perdas
salariais devido à rotatividade, no primeiro semestre de 2004
tivemos cerca de 5,1 milhões de trabalhadores contratados e 4
milhões de trabalhadores demitidos. A rotatividade implicou em
uma perda salarial média de 40% para os que foram recontratados.
Outro dado alarmante: o tratamento de Aids no Brasil, que é
referência mundial, está ameaçado a partir de 2005, por conta do
acordo TRIPS (Trade-Related Aspects on Intelectual Property
Rights), feito junto com outros 12 acordos durante a criação da
Organização Mundial do Comércio (OMC), e que dá uma série de
poderes 'a empresas que controlam patentes e submetendo muitos
países 'a dependência tecnológica. O Trips, assinado durante o
governo Fernando Henrique Cardoso, dá monopólio ao titular do
conhecimento de produtos essenciais, como alimentos e
medicamentos. Esse é o caso do tratamento para a Aids. Os países
em desenvolvimento que assinaram o Trips tinham um prazo de 10
anos para aplicarem o acordo. E foi o que fizeram, por exemplo,
a Índia e a Tailândia, que desenvolveram produtos médicos a
preços baixos. O Brasil, por outro lado, aceitou aplicar o Trips
desde o primeiro ano da assinatura, o que o impediu de produzir
genéricos e o tornou dependente dos genéricos da Índia. Como a
partir de 2005 a Índia também não poderá mais produzir esses
medicamentos, os gastos do Brasil com o tratamento de Aids podem
passar de R$ 700 milhões ao ano para R$ 3,5 bilhões ao ano.
Outro tema monitorado regularmente no Brasil é a tortura. Apesar
de certos dispositivos adotados pelo governo brasileiro contra a
tortura e maus tratos, a efetivação das recomendações da ONU
encontra-se em nível aquém do esperado. Os abusos cometidos por
policiais ainda são constantes. A investigação dos crimes
cometidos por policiais continua a ser realizada por tribunais
parciais e ineficientes. O sistema penitenciário brasileiro
encontra-se em estado precário, com cadeias superlotadas,
violação de prazos de detenção e ausência de informações aos
familiares sobre a situação dos presos.
https://www.alainet.org/en/node/110982
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