Qual globalização?
08/02/2002
- Opinión
Os povos de Porto Alegre e os povos de Davos-Nova Iork se batem pela
globalização. Qual globalização? Os poderosos, e por isso são
poderosos, se apropriaram da palavra globalização e lhe impuseram uma
significação que serve a seus interesses. É o processo mundial de
homogeneização do modo de produção capitalista, de globalização dos
mercados e das transações financeiras, do entrelaçamento das redes de
comunicação e do contrôle mundial das imagens e das informações. A
lógica que a preside é a competição de todos com todos. Aqui reside o
drama bem formulado pelo geneticista francês Albert Jaquard: “O escopo
de uma sociedade é o intercâmbio. Uma sociedade cujo motor é a
competição, é uma sociedade que me propõe o suicídio. Se me ponho em
competição com o outro, não posso intercambiar com ele, devo eliminá-
lo, destrui-lo”.
Pois é exatamente isso que está ocorrendo com a globalização proposta
pelo povo de Davos-Nova Iork. Ou você está no mercado competitivo,
vence e existe. Ou você é derrotado, desiste e inexiste. Entre as
vítimas desta lógica se encontra quase metade da humanidade, condenada
à impiedade da exclusão e da falta de qualquer sustentabilidade. Pode
ser humano um projeto global que elimina os humanos ou os faz mero
carvão, lembrando o saudoso Darcy Ribeiro, para a máquina
produtivista?
Face a essa crueldade, ganha dignidade ética a alternativa proposta
pelo povo de Porto Alegre. Ele nega esse tipo tiranossáurico de
globalização. Propõe outra globalização que passa pela solidariedade a
partir de baixo, pela mundialização dos direitos humanos, pela
socialização da democracia como valor universal, pelo controle social
dos capitais especulativos, passa, outrossim, pela aplicação em todas
as economias da taxa Tobin, pela criação de instâncias de governança
mundial, pela universalização do cuidado para com a Terra e os
ecosistemas e pela valorização da dimensão espiritual do ser humano e
do universo. Esse povo de Porto Alegre se faz assim o guardião da
humanidade mínima. Afirma a possibilidade real de vivermos juntos como
humanos e nos mostra como devemos passar de uma consciência de nação e
de classe para uma consciência de espécie e de planeta Terra. Somente
esse tipo de globalização constrói a Terra como Casa Comum dos humanos
e de toda a comunidade de vida.
Essa proposta de globalização se adequa ao que há de mais
contemporâneo no pensamento que se orienta pelo novo paradigma
científico Pois, vê a globalização como uma nova etapa da Terra e da
Humanidade. Os povos estavam em diáspora pelos continentes e
enraizados em seus estados-nações. Agora começaram a se mover e se
encontram num único lugar, a Terra como Casa Comum. E não temos outra.
Já em 1933 escrevia profeticamente Teilhard de Chardin: “A idade das
nações já passou. Se não quisermos morrer, é a hora de sacudir os
velhos preconceitos e de construir a Terra”. Queremos construir a
Terra prolongando o dinamismo que a está forjando há bilhões de anos.
Com efeito, somos fruto de um processo evolucionário de l5 bilhões de
anos, processo único, complexo, contraditório (caótico e harmônico) e
complementar que entrelaça todos os seres em teias de relações, fora
das quais ninguém existe. A seta do tempo irreversível vai mostrando
uma direção: a emergência de ordens cada vez mais complexas, auto-
organizadas, interiorizadas e convergentes de vida e de criatividade.
Terra e Humanidade formam uma única entidade, exatamente como os
austronautas testemunham quando vêem a Terra de fora da Terra. O ser
humano é a Terra que num momento de sua evolução começou a sentir, a
pensar, a amar e a venerar. Por isso que homem vem de humus, terra
fecunda. Agora estamos elaborando essa consciência terrenal e
planetária.
Esta compreensão nos fornece a base experimental e científica para
entendermos a atual globalização em curso. Ela é um momento avançado
de um processo anterior e maior de convergência de energias,
dinamismos e intencionalidades que estão atuando desde o comêco da
cosmogênese e da biogênese. A globalização cria as condições para um
salto qualitativo da antropogênese: a irrupção daquilo que Teilhard de
Chardin chamou de noosfera: a criação de uma nova harmonia entre os
humanos na qual técnica e poesia, produção e espiritualidade, coração
e pensamento encontram uma nova sintonia mais alta e e mais
sinfônica.
O mérito do povo de Davos-Nova Iork foi o de ter criado as condições
materiais para esse salto. Mas ele mesmo não saltou. O mérito do povo
de Porto Alegre foi o de ter mostrado sua possibilidade e ensaiado os
primeiros movimentos para esse salto. E o salto, finalmente, virá
porque ele representa o que deve ser. E o que deve ser tem força.
* Leonardo Boff, teólogo e escritor e autor de A nova era: a civilização
planetária.
https://www.alainet.org/en/node/105594
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