O TPI não libertará a Palestina, mas pode responsabilizar seus algozes

Um passo importante para que o TPI investigue as denúncias de crimes de guerra perpetrados por Israel na Palestina está dado: a admissão da jurisdição da Corte.

12/02/2021
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Protestos em Gaza, na Grande Marcha de Retorno (2018-2019)
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Um passo importante para que o Tribunal Penal Internacional (TPI) investigue as denúncias de crimes de guerra e crimes contra a humanidade perpetrados por Israel na Palestina, acumulando há vários anos no escritório de sucessivos promotores, está dado: a admissão da jurisdição da Corte. Que a questão é eminentemente política é evidente. Como dizem palestinos engajados na defesa da sua causa no âmbito jurídico, não é o TPI quem vai libertar a Palestina, mas a corte pode cumprir sua promessa fundadora ao responsabilizar os seus algozes.

 

Respondendo à consulta que a promotora Fatou Bensouda fez após concluir em dezembro de 2019 o moroso e protelado exame preliminar sobre as denúncias, os juízes de instrução, que avaliam o mérito do processo e a aplicabilidade da jurisdição da corte, decidiram na sexta-feira passada, 5 de fevereiro que sim, o TPI pode investigar os ditos crimes no território ocupado do Estado da Palestina, que acedeu à corte em janeiro de 2015, retroativamente, desde 13 de junho de 2014.

 

Israel, por óbvio, assim como os Estados Unidos, opuseram-se e continuam a fazê-lo, por rejeitarem o reconhecimento do Estado da Palestina antes da conclusão do infindável e moribundo processo diplomático e, é claro, buscarem evitar repercussões finalmente práticas e palpáveis. Citado pelo diário The New York Times, o Premiê de Israel Benjamin Netanyahu, ele próprio em meio a um julgamento por acusações de corrupção em Israel, disse que o TPI demonstra, com a decisão, não só ser politizado e anti-Israel, como também antissemitismo, a acusação de praxe a qualquer condena das políticas do regime israelense.

 

O TPI, que julga indivíduos por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, tem jurisdição sobre o território palestino ocupado por Israel porque o Estado da Palestina firmou seu Estatuto de Roma e passou a ser membro do organismo em 2015, no âmbito dos seus esforços por integrar instituições internacionais e também responsabilizar Israel pela ocupação e colonização dos seus territórios. Com a admissão da jurisdição da Corte, agora cabe à promotora decidir iniciar a investigação, mas ela pode ainda deixar a matéria a cargo do seu sucessor, pois seu mandato termina em junho, como nota o New York Times.

 

A saga tem origem ainda anterior: pelo menos desde 2008-2009 é que as autoridades palestinas têm pedido que a Corte investigue as denúncias contra Israel. Naquela época narrava-se a Operação Chumbo Fundido de Israel contra a Faixa de Gaza como causadora de uma destruição inédita concentrada no tempo e no espaço, com mais de 1.400 palestinos mortos em poucas semanas. Ao menos duas ofensivas mais tarde, em 2014, é que o recorde novamente espantaria o mundo, com cerca de 2.400 palestinos mortos, inclusive cerca de 500 crianças. A proporção de civis entre as vítimas, pessoas e infraestrutura, é aterradora.

 

Entretanto, essas não foram as primeiras nem as últimas vezes que o mundo se chocou com a brutalidade da ocupação israelense. O recurso ao TPI é, portanto, uma tentativa de proteger os palestinos sob ocupação, à mercê de uma força descomunal de devastação e de violações normalizadas, cotidianas, não apenas durante ofensivas declaradas, e de responsabilizar Israel, para finalmente impor custos diretos pela ocupação e a colonização da Palestina.

 

Para o relator especial da ONU para a situação dos direitos humanos no território palestino ocupado desde 1967, Michael Lynk, o reconhecimento da jurisdição do TPI sobre o território palestino pelos juízes de instrução é “um grande passo em direção ao fim da impunidade e à garantia da justiça” nestes 53 anos de ocupação, pelos quais Israel tem passado incólume. Embora a ocupação militar esteja prevista no direito internacional humanitário, com sua extensão e duração vagamente definidas, já vai se firmando como consenso até mesmo entre os que se consideram juristas moderados e imparciais que 53 anos já tornam o regime de Israel uma colonização.

 

Para quem não reivindica essa imparcialidade, mas analisa os fatos históricos tomando posição solidária com o povo em luta emancipatória, o regime israelense tem como ideologia fundadora uma ideologia colonizadora, o sionismo. Por isso não é que a ocupação israelense da Palestina esteja tomando contornos de colonização como consequência da ocupação prolongada: esta é a sua natureza. Mesmo assim, o reconhecimento é crucial para que se desvele de uma vez por todas qual é o único caminho para a paz justa na região: a libertação do povo palestino da colonização israelense.

 

Entre as práticas sob investigação estarão as denúncias de crimes de guerra cometidos durante a ofensiva israelense de 2014 contra Gaza, a morte e ferimento de milhares de manifestantes palestinos mobilizados por meses afio entre 2018 e 2019 na Grande Marcha de Retorno, na zona de delimitação entre Gaza e Israel, e as atividades de colonização de Israel em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia, onde em 2016 a ONU estimava que já residiam mais de 570.000 colonos israelenses, de si uma violação do direito internacional em vários âmbitos.

 

Já são inúmeras as resoluções que condenam as práticas israelenses e demandam o fim da ocupação do território palestino, ainda sem resposta prática por parte dos principais atores internacionais e, pior, patrocinadores diretos do regime israelense, como os Estados Unidos. O relator especial da ONU disse que, criando o TPI, a comunidade internacional assumiu o compromisso de “acabar com a impunidade para os perpetradores de crimes graves”, mas “no contexto da protelada ocupação” por Israel tem “permitido que uma cultura de excepcionalidade prevaleça.” Assim, embora seja ela mesma politizada e sofra dos vícios inerentes a um sistema internacional político e jurídico hegemonizado pelas potências e por abordagens menos emancipatórias, a Corte pode finalmente investigar e finalmente trazer consequências.

 

Lynk notou que já há vários relatórios da ONU instando à responsabilização e a que Israel investigue de forma credível as denúncias de crimes graves (uma condição para que o TPI abra investigações, segundo o princípio da complementaridade, é que as cortes nacionais não possam ou não queiram fazê-lo): o relatório sobre a ofensiva de 2008-2009 admite que “a situação prolongada de impunidade criou uma crise de justiça […] que demanda ação”; um relatório de 2013 sobre as implicações das colônias israelenses em território palestino insta Israel a “assegurar responsabilização completa por todas as violações […] e encerrar a política de impunidade”; o relatório de 2014 sobre a ofensiva daquele ano afirma que “a impunidade prevalece” e Israel precisa acabar com esse registro; e um relatório de 2019 sobre os protestos em Gaza, no contexto da “Marcha pelo Retorno”, concluiu que “o Governo de Israel tem falhado consistentemente em investigar e julgar de forma significativa comandantes e soldados por crimes e violações”, colocando em questão sua “disposição para examinar as ações da liderança militar e civil”.

 

Uma vez que nenhum desses apelos por responsabilização foi correspondido, Lynk insta a comunidade internacional a apoiar o processo do TPI. “Acabar com a impunidade e promover a justiça só pode nos levar mais próximos da paz no Oriente Médio”, assegurou. Mas a partir daí, o mundo ainda tem a sua própria responsabilidade no apoio aos passos mais decisivos, na luta pela libertação da Palestina.

 

- Moara Crivelente é cientista política e membro da Direção Executiva do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)

 

https://cebrapaz.org.br/2021/02/10/o-tpi-nao-libertara-a-palestina-mas-pode-responsabilizar-seus-algozes/#more-13577

 

 

https://www.alainet.org/de/node/210943
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