Equador: a necropolítica de um desgoverno

04/05/2020
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Caixões são vendidos na porta de um hospital em Guayaquil
Foto - José Sánchez Lindao/ AFP
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Enquanto os corpos continuam se amontoando e cresce o número de mortos para além do esperado devido à negligência na gestão da pandemia, o governo equatoriano está implementando medidas neoliberais extremas.

 

As autoridades responsáveis pela crise de saúde causada pela covid-19 vêm publicando números confusos sobre a doença há mais de uma semana, de tal forma que eles parecem quase aleatórios. Durante vários dias, o governo decidiu não divulgar nenhum dado, e após um ajuste, incluindo resultados de testes atrasados por falta de equipamento, o país passou de 11.183 para 22.160 casos.

 

No país, faltam kits de teste e equipamentos para processá-los. Sem evidências suficientes, não é possível detectar a quantidade pessoas infectadas e estabelecer o monitoramento epidemiológico para deter a propagação do vírus, mas o governo tem outras prioridades.

 

O Registro Civil não parou de funcionar, portanto, o número total de mortes teoricamente está correto. Mas em Guayaquil, onde a negligência é generalizada, os corpos ainda estão sendo perdidos. São inúmeras as histórias de pessoas que não conseguiram localizar os restos mortais de seus entes queridos. Já outros, foram até ressuscitados! Uma senhora passou duas semanas na UTI e, quando acordou e procurou seus parentes, descobriu que eles tinham recebido a informação de sua morte e até cremado um corpo. Essas cinzas foram devolvidas.

 

Após os casos dobrarem subitamente, o ministro da Saúde, Juan Carlos Zevallos, declarou que haverá cerca de 104 mil mortes, e classificou esse número como “pequenininho”. Ele assume uma taxa de contágio de 60% (que está dentro da faixa de 60 a 70% estimada como necessária para a imunidade coletiva) como o número de pessoas que serão infectadas inevitavelmente e, a partir daí, ele calcula os dados para a população do Equador, de 17 milhões, com uma taxa de mortalidade de 1%. Zevallos poderia ter falado sobre as medidas que poderiam impedir que isso acontecesse, mas o cuidado com a população não parece ser o maior interesse desse governo. 

 

Agora, e o número de mortes por covid-19 até o momento? Pode-se estimar que todas as mortes fora da média mensal normal estão relacionadas à pandemia, seja diretamente (pacientes com covid-19) ou indiretamente (pessoas que não poderiam ser tratadas em hospitais e centros de saúde superlotados). Isso daria um número de 5.700 mortes mensais adicionais apenas na província de Guayas, a mais afetada, enquanto o número "oficial" de mortes em todo o país, divulgado pelo governo em 2 de maio, é 1.467 óbitos para 27.568 casos. Estimativas apontam que o número real de mortes seria 15 vezes maior do que o oficial.

 

Fazer contas definitivamente não é o forte deste governo. Neste momento, eles estão revendo os números econômicos e "descobrindo" que o déficit fiscal tem sido o dobro do que calcularam. É difícil interpretar isso. Será que ocultaram essa informação para trazê-la à tona só agora, já que, segundo esta lógica, poderiam ter mais justificativas para continuar implementando uma das agendas neoliberais mais radicais durante a pandemia? Ou será que eles realmente não conseguem fazer contas e, nesse caso, não se trata apenas de negligência, mas de uma incompetência total?

 

Embora 96% da população avalie a gestão da pandemia conduzida por Lenín Moreno e seu governo como ruim ou muito ruim, o governo é apoiado pelas elites, pelos militares – que têm sido muito beneficiados pelo governo nos últimos anos – e pela imprensa corporativa, que nem sequer o questiona sobre as mortes pela covid-19 que colocam o Equador como um dos países mais afetados pela pandemia no mundo.

 

O governo quer aproveitar a pandemia para aprovar todas as reformas econômicas sem que haja qualquer garantia de direitos humanos. A pandemia será responsabilizada pelas mortes e nós teremos ganho nosso paraíso onde apenas uma pequena porcentagem da população tem direito a algo que pode ser chamado de vida. A classe trabalhadora precisa apenas sobreviver.

 

Moreno decretou um novo corte nos salários dos funcionários públicos, exceto para os trabalhadores da saúde e educação, policiais e militares. Uma medida que reduzirá ainda mais o consumo e afundará ainda mais a economia. Até mesmo o FMI e a União Europeia reconhecem isso, mas o desgoverno do Equador segue na linha neoliberal radical extremista. Em 10 de abril, anunciou que chegaram novos créditos internacionais, explicando que seriam apenas para liquidez das empresas.

 

Ao mesmo tempo, o governo tenta aprovar duas leis na Assembleia. Uma chamada de Ordenamento das Finanças Públicas e outra chamada Lei de Ajuda Humanitária. Com a primeira, tenta sancionar algumas das medidas que a mobilização social de outubro de 2019 interrompeu, embora a Assembleia já tenha aprovado parte delas em 31 de dezembro de 2019.

 

A Lei Humanitária, além de obrigar os servidores públicos a contribuírem com parte de seus salários, quer criar um fundo privado para gerir os recursos assistenciais públicos na mesma linha de privatização. Por outro lado, ela inclui alguns pontos positivos como redução de 10% no nas contas de energia elétrica; proibição do aumento das tarifas de serviços básicos por seis meses; redução de pelo menos 20% nas taxas em todos os níveis de ensino privado; bem como proibição de despejo devido ao atraso no pagamento do aluguel durante a emergência sanitária e 60 dias depois.

 

As reformas econômicas incluem a continuidade da mais selvagem reforma trabalhista que o país já conheceu, iniciada no ano passado. Quem retornar ao trabalho após da quarentena, o fará mediante um "acordo entre as partes" e as empresas terão liberdade para demitir trabalhadores, cortar salários e prolongar o horário de trabalho. Além disso, no dia 20 de abril, o ministro de Energia anunciou que o plano para eliminar os subsídios dos combustíveis está pronto.

 

Na atual situação de caos sanitário, e sem dados exatos sobre número de casos ou de mortes, eles pretendem suspender a quarentena na próxima segunda-feira, 4 de maio, devido à pressão dos empresários. A reação social ao anúncio feito dez dias antes foi tão forte nas redes sociais e na mídia, incluindo ameaças de mobilizações e greves, que levou o governo a alterar sua ideia inicial e inventar um sistema epidemiológico de "semáforos", de acordo com a situação de cada região.

 

Agora, em cada município, junto com coordenação com o Comitê de Operações de Emergência (COE) local, a prefeitura deve decidir quando implementar cada fase. De forma resumida: nos locais com sinal vermelho, praticamente todas as restrições atuais serão mantidas, diminuindo o toque de recolher apenas para táxis e delivery; nos locais com sinal amarelo, no máximo 50% dos funcionários das empresas poderá trabalhar presencialmente mantendo distância, o toque de recolher será reduzido e o comércio e o transporte público poderão funcionar com lotação máxima de 30%. Já nas cidades que receberem sinal verde, as empresas poderão trabalhar presencialmente com um máximo de 70% de funcionários, o comercio e o transporte público poderão funcionar com lotação máxima de 50% o toque de recolher será reduzido ainda mais.

 

A única vantagem política – de interesse para o governo atual, já que os mortos são apenas anedóticos para ele – desse sistema gradativo é que transfere grande parte de sua responsabilidade para os governos locais.

 

Nisso, o presidente Lenín Moreno é coerente, pois assim têm sido sua atitude e seu discurso durante todo o seu mandato: não fazer nada e, diante de qualquer questão, buscar outros culpados. O favorito de longa data é o ex-presidente Rafael Correa, cujo nome Moreno repete como um mantra diante de qualquer situação ou problema, não importa qual seja.

 

Durante a crise, embora Moreno já esteja na presidência há quase três anos, ele continua culpando Correa pela situação econômica. Desta vez, como não pode culpá-lo pelo vírus, culpa, repetidamente, os cidadãos por ficarem doentes e morrerem. Agora, se algum município suspender as restrições de quarentena e a epidemia se agravar, bom, terá os culpados que precisa. Além disso, se os grandes empresários não gostarem da medida, então a briga deles será com os prefeitos. Assim, vemos um governo tentando não governar.

 

Até agora, nenhum município manifestou qualquer intenção de suspender as restrições, aliás, todos estariam com sinal vermelho, já que a situação de calamidade nacional é evidente para todos, menos para o governo. No entanto, se os municípios não têm os dados corretos – dado que, na verdade, ninguém tem – nem têm competências sobre educação e saúde, entre outras, como conseguirão administrar a crise?

 

Em mais uma demonstração de cuidado e respeito, na manhã do dia 29 de abril, o governo declarou que a covid-19, não poderia ser considerada uma doença ocupacional, para nenhuma categoria, contrariando as recomendações da OMS. À tarde, recuou na proposta, incluindo a doença causada pelo novo vírus como ocupacional somente no caso dos trabalhadores da saúde. Para comprovar que a doença está vinculada ao ambiente de trabalho, os profissionais desse setor devem agora enfrentar um trâmite complexo.

 

Ao mesmo tempo, há a ameaça da chamada "morte cruzada", com a qual o governo chantageia a Assembleia para aprovar as reformas enviadas pelo presidente. A "morte cruzada", figura contemplada nos artigos 130 e 148 da Constituição de 2008, prevê que o Executivo pode dissolver a Assembleia ou vice-versa, e imediatamente seriam convocadas novas eleições presidenciais e legislativas, nas quais o atual presidente não pode participar. Essa figura só pode ser aplicada nos primeiros três anos de um mandato presidencial (que dura um total de quatro), portanto, no caso de Moreno, só poderia ser aplicada até 24 de maio deste ano.

 

O que a chegada da quarentena no Equador não suspendeu foi o lawfare. Em um processo cheio de irregularidades e acusações não confirmadas, o ex-presidente Rafael Correa foi condenado e os dois principais líderes da CONAIE, a organização indígena mais importante do país, que liderou os fortes protestos em outubro de 2019, foram chamados a depor sob acusações de terrorismo.

 

O povo equatoriano, em meio à pior crise sanitária de sua história, ainda não pode esperar nada de seu governo, já que este se ocupa de tentar limpar a própria barra para ver se ainda tem candidatos para as eleições de fevereiro de 2021. Ou se deveria, de uma vez por todas, se livrar dos instrumentos democráticos e encontrar uma saída mais rápida para continuar o desgoverno.

 

Edição: Luiza Mançano

 

https://www.brasildefato.com.br/2020/05/03/artigo-equador-a-necropolitica-de-um-desgoverno

 

https://www.alainet.org/de/node/206337?language=es
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