Aos trancos e barrancos, o Brasil diante da crise
- Análisis
Um dos elementos mais significativos desta crise é a imprevisibilidade. Simplesmente não sabemos qual é a profundidade do poço. Até agora o vírus está se espraiando a partir do andar de cima da sociedade, de pessoas que têm como se isolar e se proteger, e está se alastrando de maneira ainda contida. Mas, ainda que seja de letalidade relativamente baixa, se espraia de maneira extremamente fácil, e o potencial é dramático. À medida que o número de atingidos aumenta e a contaminação penetra em zonas habitacionais onde as pessoas têm pouca possibilidade de se proteger, seu controle fica muito mais difícil. Em média, uma pessoa contamina outras três. O processo é exponencial.
A China, a Coreia do Sul e a Alemanha conseguiram conter o espraiamento, mas com medidas de isolamento e de identificação precoce dos contaminados muito fortes. Os Estados Unidos, a Itália, a Grã-Bretanha e outros estão patinando, pois começaram a tomar medidas sérias quando a contaminação já estava se generalizando. O Brasil, que tinha a vantagem de já conhecer seus impactos e as medidas que funcionam em diversos países, pela entrada mais tardia do vírus, podia ter se concentrado em medidas drásticas nos focos iniciais, mantendo o espraiamento sob controle enquanto estava limitado a algumas cidades. Evidentemente não foi o que aconteceu.
A massa da população no andar de baixo não tem como deixar de trabalhar e de ter contatos, isso sem falar de milhões que não têm acesso a água corrente. O mundo carcerário é muito ameaçado, e se trata no caso brasileiro de quase 1 milhão de pessoas. As estatísticas do que está acontecendo na Europa e nos Estados Unidos mostram a elevadíssima letalidade entre idosos. Como se espraiará o vírus, com que impactos sistêmicos, uma vez que atinja os mais de 100 milhões que no Brasil vivem em condições precárias, é assustador. É o caso de bilhões no mundo, e estamos na fase inicial de espraiamento na África e em outros países com baixas condições de prevenção e tratamento.
É fato também que em nenhum lugar o vírus parou de se manifestar. O que se conseguiu na Alemanha, por exemplo, foi baixar o índice de contaminação para 0,8, ou seja, em vez de uma pessoa contaminar três, contamina em média menos de uma, permitindo uma situação de relativo equilíbrio entre as novas manifestações e os meios disponíveis para testar as pessoas e eventualmente tratá-las nos hospitais. A capacidade econômica, de infraestruturas e de organização da Alemanha é relativamente excepcional. O mundo, desse ponto de vista, não é como a China nem como a Alemanha.
Neste final de abril de 2020 – e os artigos que escrevemos no caso presente precisam ser datados –, em termos de governo, o Brasil se caracteriza por uma balbúrdia total em relação à capacidade organizada de enfrentar a pandemia. Seria o momento em que precisamos de uma liderança forte e clara, unificadora da nação, já que trata de nosso desafio comum. O que temos, porém, é evidentemente um vazio de poder, brigas de egos e em particular encaminhamentos e recomendações contraditórios, segundo setores do governo e inclusive segundo posições políticas.
Montou-se assim um confronto absurdo entre proteger as pessoas ou a economia. Na gritaria política fica abafada a voz dos únicos que entendem como combater uma pandemia, que são os médicos e os serviços de saúde em geral, especialmente o SUS. Aqui o Brasil reproduz com atraso os erros dos Estados Unidos. A lógica é simples: na fase inicial, quando a contaminação se manifesta apenas em alguns pontos, o fechamento drástico e generalizado de atividades econômicas e o isolamento das pessoas representam um custo forte, mas limitado no tempo. No caso norte-americano, o atraso em tomar as medidas de isolamento, mesmo com travamento econômico, levou a uma generalização da contaminação e consequentemente a um travamento econômico muito mais amplo. Assim terminamos não resolvendo nem o problema da saúde nem o da economia.
O caos político teria menos impacto se pelos menos deixasse funcionar um comando nos próprios serviços de saúde. Como o coronavírus não tem cura nem vacina, em grande parte as medidas são de organização social, portanto preventivas, freando o ritmo das contaminações para que fiquem dentro de uma dimensão passível de gestão pelo sistema existente de saúde. A troca de ministros e a intervenção politiqueira permanente aumentam radicalmente a vulnerabilidade do país. O presidente chamando a população a retomar as atividades, como se ele estivesse a favor da economia e os que combatem o vírus não, é uma atitude de baixo nível: sabendo que muita gente no andar de baixo não tem como se isolar e precisa ganhar seu pão, ele aparece como estando do seu lado. É de uma demagogia revoltante; não busca ajudar o país e tenta ficar bem na foto com sua turma.
O trunfo que o Brasil tem para se proteger é o SUS. Como é universal e gratuito, com capilaridade organizacional, cobrindo todo o país, está ajudando muito na detecção dos casos e em seu encaminhamento, aconselhamento das famílias e resgate da coerência de ações na base, em contraste profundo com os bate-bocas do nível político. Depois de tanto dizerem que o SUS é ineficiente, de tirarem R$ 20 bilhões de seu orçamento em 2019 e de entupirem as televisões de propaganda dos planos privados de saúde, a ordem agora se inverteu. Ver numa conferência de imprensa um temporariamente ministro da Saúde e sua equipe técnica vestidos todos com colete do SUS, isso que estavam atacando na véspera, dá bem a ideia do que é mais importante no momento em que a ameaça chega em grande escala.
A priorização e a ordem do que tem de ser feito são hoje bastante claras, em particular observando os erros e acertos de países atingidos pela pandemia antes de nós. O isolamento é a necessidade imediata, pois reduz o ritmo de propagação do vírus. Com menos gente transmitindo, reduz-se o crescimento exponencial. Com o fechamento de muitas lojas e atividades econômicas em geral, é preciso assegurar o básico para as pessoas atravessarem a fase crítica. Ou seja, dinheiro para as famílias. A segunda prioridade imediata é reforçar a capacidade de ação dos serviços de saúde, sobretudo do SUS, tanto com financiamento quanto com reconversão produtiva para assegurar máscaras e equipamentos de proteção individual em geral. Como os custos são crescentes, todo atraso em garantir esses recursos significa maiores sacrifícios na frente. Passar semanas discutindo se e quanto dinheiro se destinará, de que forma e beneficiando quem leva a que o vírus se espraie. A inépcia do comando no nível superior da nação tem efeitos trágicos em termos de vidas e de economia.
Em paralelo, é preciso sustentar a economia. As lojas fecham, e em consequência as pessoas não compram, as empresas não recebem encomendas do comércio e os fluxos salariais se interrompem. É preciso lembrar que já antes do isolamento as empresas no Brasil estavam trabalhando a menos de 70% da capacidade, fruto do dreno da renda da massa da população em proveito das elites. Conhecemos o “conjunto da obra”: juros astronômicos, teto de gastos, reforma da Previdência, perda de direitos trabalhistas, desarticulação dos sindicatos, quebra das finanças estaduais e municipais, e assim por diante.
O desemprego tinha subido de cerca de 5% na fase distributiva de Lula-Dilma para mais de 12% depois que os banqueiros assumiram. Mas o drama é muito maior: além dos 13 milhões de desempregados, temos 40 milhões de pessoas no setor informal, onde a renda em média é a metade do que assegura o emprego formal. Somando o desemprego e a informalidade, são 53 milhões de pessoas em situações precárias, para uma força de trabalho de 105 milhões, praticamente a metade. O Brasil já sofre há tempos de uma imensa subutilização de sua força de trabalho, e, para as dezenas de milhões de pessoas que literalmente “se viram” para sobreviver, quando se acrescenta o choque econômico do vírus, a situação fica dramática.
Assim, além de uma renda imediata para as famílias e do financiamento ampliado para os serviços de saúde, é necessário assegurar um fluxo de caixa para as empresas, em especial milhões de pequenas e médias empresas (PMEs) – e entre elas a agricultura familiar, que produz o essencial de nossos alimentos –, para que possam funcionar, ainda que em ritmo reduzido. Aqui é necessário assegurar a gestão de como e para quem se deve priorizar os recursos. Os US$ 350 bilhões disponibilizados pelo governo norte-americano para as PMEs se esgotaram em poucos dias, e as tensões continuam.
O que algumas pesquisas recentes mostram, no plano internacional, é a mudança do perfil de consumo da população. De repente já não é tão essencial comprar a bolsa Louis Vuitton ou a caneta Montblanc, sem falar de outras superficialidades. As pessoas estão começando a pensar, afinal, nas coisas de que realmente precisam. Esse choque relativo ao consumismo surrealista é uma mudança cultural significativa, e, em termos de amenizar o choque da pandemia, é importante dar suporte às empresas que produzem aquilo de que as pessoas realmente necessitam.
O pacote de R$ 1,2 trilhão que o governo apresenta é profundamente desequilibrado. Para cerca de 50 milhões de pessoas que deverão receber R$ 600 durante três meses, é sem dúvida positivo, mas isso representa apenas uma parte daqueles que necessitam de ajuda. Trata-se, na proposta, de cerca de R$ 100 bilhões, menos de 10% do pacote. É ridículo diante do montante geral. Grande parte do restante não é dinheiro aportado pelo governo, e sim suspensão de pagamento de taxas, tributos e outras contribuições que as empresas não teriam como honrar.
Causa maior preocupação o fato de a massa de dinheiro ser repassada para os bancos, com a esperança de que eles, por sua vez, repassem para as empresas e as famílias. É dinheiro público, em grande parte transferido para bancos por meio da compra dos chamados “títulos podres”, papéis como dívidas de difícil recuperação que passarão para as mãos do governo, enquanto o dinheiro ficará com os bancos. Magicamente, o dinheiro aqui passa a se chamar “liquidez”, e a capacidade de controle de seu uso é muito baixa. São nossos impostos.
É essencial a questão das contrapartidas. Os trilhões de dólares que o governo norte-americano repassou para os bancos durante a crise de 2008 foram justificados como necessários para reativar a economia. Deviam melhorar as condições de milhões de famílias que estavam perdendo a casa por causa das formas irresponsáveis de concessão de crédito. Evidentemente, o dinheiro não saiu dos bancos, permitindo aumentar os bônus e os dividendos, com algumas demissões devidamente suavizadas com os “paraquedas de ouro”, como foram chamados. Em nosso caso não há menção de contrapartidas em relação a centenas de bilhões de reais repassados aos bancos.
O segundo problema é que os bancos perderam no Brasil a cultura de prestação de serviços financeiros tanto a pessoas jurídicas como a pessoas físicas. Os gerentes de crédito, que em outras épocas se apoiavam em economistas para analisar as reais necessidades ou viabilidade dos pedidos de financiamento, hoje apenas drenam o máximo possível. Empurram até mesmo seguros e outras “reciprocidades”. Faz parte do que Marjorie Kelly chama de “capitalismo extrativo”. A Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac) apresenta os juros efetivamente praticados para empresas nas agências bancárias: em fevereiro 2020, uma média de 45%. Quem pode tocar um negócio pagando juros desse porte? Na Europa, esses juros se situam entre 2% e 5% ao ano.1
Pessoas físicas no Brasil pagam 96% ao ano. Os gerentes de crédito são estimulados a empurrar produtos complementares, prática que, junto aos crediários das grandes lojas – cobrando em média 75% ao ano –, leva a que tivéssemos, na véspera da crise atual, 64 milhões de adultos “negativados”, ou seja, incapazes de pagar seus débitos. Se acrescentarmos as crianças, trata-se de algo como 40% da população brasileira. Como ordem de grandeza, na véspera da crise, o que o sistema bancário extraía das empresas e das famílias, portanto sobre dívidas do setor privado, sob forma de juros, representava 15% do PIB.
Esse mecanismo, que tira uma massa imensa de recursos das famílias e das empresas e os transforma em lucros financeiros, paralisou a economia, que, só para lembrar, está estagnada desde 2013/2014, quando começou a guerra. Quando se tira dinheiro das famílias, reduz-se a demanda, o que trava as empresas, que já estavam sendo enforcadas pelos altos juros sobre pessoa jurídica. É forte o comentário de um empresário de que “realmente está mais barato eu contratar, mas para que vou contratar se não tenho para quem vender?”. O empresário produtivo não precisa de discursos ideológicos, mas de pessoas com dinheiro para ter para quem vender e de crédito barato para poder investir. No Brasil, ele não tem nem uma coisa nem outra.
Do lado da dívida pública, a partir de 2015 explodiu o volume de recursos do Estado transferidos para os bancos e grandes aplicadores financeiros. Em 2019, esse fluxo nos custou R$ 310 bilhões, equivalentes a dez vezes o Bolsa Família. A PEC 10/2020 desvincula uma série de gastos que o governo queira fazer dos limites orçamentários, “exceto os recursos vinculados ao pagamento da dívida pública” (parágrafo 6). Não se toca na imensa mama que desde 1996 sustenta o rentismo improdutivo no Brasil. Introduziram um “teto de gastos”, em vez do teto de juros.
Os trilhões de dólares para as corporações nos Estados Unidos dinamizaram a Bolsa, e é muito impressionante ver a economia afundando enquanto os dividendos para acionistas sobem.2 As pessoas em geral pensam que a Bolsa sobe quando a economia vai melhor. Mas, quando o rentismo aumenta, há menos dinheiro para investimentos produtivos. O modesto trilhão de reais disponibilizado essencialmente para “os mercados” no Brasil tem um efeito semelhante. Esse mundo não se interessa nem pela saúde nem pela economia: interessa-se pelo rendimento financeiro.
A carta branca que a PEC deve entregar ao governo preocupa: temos um banqueiro na economia, outro no Banco Central, num sistema de governo já há seis anos controlado por banqueiros, paralisando o país. Não esperaram a pandemia. Michael Hudson, ao analisar o sistema em boa parte semelhante instalado nos Estados Unidos, chamou sua obra de Killing the Host, literalmente “matando o hospedeiro”, referência a bactérias irresponsáveis que matam quem infectam. Em muitos aspectos, as bactérias e os vírus têm efeitos semelhantes. Teremos de tratar de ambos, se possível simultaneamente.
1 Anefac, Pesquisa de Juros, mar. 2020. A pesquisa aponta juros médios nos bancos de 96,49% ao ano para pessoa física e 45,43% para pessoa jurídica, nos dois casos “a maior taxa de juros desde dezembro de 2013”. Nossa mídia comercial só repete que os juros foram reduzidos. Disponível em: https://bit.ly/Anefac-mar_2020.
2 Como explica Dean Baker, economista sênior do Centro de Pesquisa Econômica e Política em Washington: “A alta recente significa que os investidores estão apostando que o Congresso e Trump lhes deram muito dinheiro”. Jon Schwarz, “Coronavírus: nos Estados Unidos, mercado de ações dispara enquanto americanos morrem”, Intercept Brasil, 15 abr. 2020.
Le Monde Diplomatique Brasil – Edição 154
- Ladislau Dowbor é professor da Pós-Graduação em Economia Política da PUC-SP e autor de mais de quarenta livros sobre desenvolvimento econômico e social. Seu último livro, A era do capital improdutivo, está disponível online gratuitamente, inclusive em curtos vídeos, em http://dowbor.org. Além disso, a obra foi tema do episódio #06 do Guilhotina, o podcast do Le Monde Diplomatique Brasil. Contato: ldowbor@gmail.com.
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