Israel oculta provas dos crimes de limpeza étnica contra os palestinos – I
- Análisis
A partir de maio de 1948, isto é, durante o período imediatamente subsequente à implantação do Estado de Israel, 800 mil palestinos – mais da metade da população autóctone – foram forçados a abandonar seus lares e seu país, em um dos processos de limpeza étnica mais sordidamente planejados e executados de todos os tempos.
Agora, estudo de Hagar Shezaf, divulgado pelo jornal israelense, Haaretz (matéria publicada em 5 de julho intitulada “Enterrando a Nakba: como Israel sistematicamente esconde evidências da expulsão dos árabes em 1948”), revela que órgãos de serviços secretos israelenses, diretamente ligados ao Ministério da Defesa (sic), atuaram também para apagar as evidências dessa expulsão em massa, sob terror e massacre, naquilo que os palestinos passaram a chamar de Nakba, catástrofe em árabe.
A versão oficial forjada por Israel é a de que os palestinos saíram do país por orientação dos líderes árabes com a promessa de que voltariam ilesos e sem sofrerem com a guerra, após a destruição do nascente Estado. Se por um lado, não há nenhuma comprovação dessa versão fantasiosa (colocando a culpa da desgraça nas suas vítimas), as provas do massacre e terrorismo israelense, naquele período e no posterior, são abundantes. Para que a versão israelense pudesse prevalecer, a destruição dos documentos, as provas do crime, tinham que ser apagadas e a seção que foi encarregada da localização e destruição de documentos tem a função definida como de “segurança da defesa” e tem o nome hebraico de Malmab.
O Malmab foi um departamento fundado em 2007 por Yehiel Horev para ocultar arquivos com informação ‘sensível’ sobre o armamento nuclear israelense. A posse de bombas atômicas por parte de Israel, em Dimona, foi mantida como segredo de Estado até que um ex-funcionário, Mordechai Vanunu, resolveu fotografá-las e divulgá-las, tornando o mundo ciente do risco que é, Israel, um país segregacionista e armado com bombas nucleares no seio do Oriente Médio. Vanunu foi sequestrado por agentes do serviço secreto israelense, Mossad, na Itália e mantido preso incomunicável por anos a fio; de 1986 a 2004 (ver matéria http://www.horadopovo.com.br/2004/abril/27-04-04/pag7d.htm).
Acontece que o trabalho do Malmab se estendeu a partir do momento em que as denúncias da limpeza étnica de 1948 se avolumaram. Segundo o Haaretz, “foram encontradas evidências de que o Malmab ocultou testemunhos de generais israelenses sobre a matança de civis e a demolição de aldeias, assim como a expulsão dos beduínos durante a primeira década do Estado”.
Segundo o Haaretz, “além desses testemunhos, outros problemas foram também escondidos”. Um deles é um informe do serviço militar de espionagem de junho de 1948 denominado “A emigração dos árabes da Palestina”.
O documento – acerca do qual trataremos com mais detalhes adiante – lista –sem meias palavras – as razões para que os palestinos abandonassem seus lares, incluindo “operações diretas e hostis das forças judaicas da Haganah [predecessoras do exército israelense, IDF – sigla em inglês] e do próprio IDF contra povoados árabes” e descreve que “70% dos residentes deixaram suas comunidades e migraram como resultado destas operações”.
O mesmo documento, reparem que é apenas um dos mais de 100 ocultados, calcula que a limpeza étnica de 219 aldeias e quatro cidades, estas e outras ainda mais depopuladas imediatamente após o momento em que foi produzido o informe.
Detalhe é que o levantamento é de primeira mão por um dos elementos do serviço secreto israelense, em seus primeiros passos.
A expulsão e destruição– conforme veremos – detalhada por Sabri Jiryes no seu livro pioneiro, Os Árabes em Israel – Haaravim B’Israel, em hebraico – publicado em 1965, e no levantamento do professor Ilan Pappe, no seu “A Limpeza Étnica da Palestina”, publicado em Londres, em 2006 e no Brasil em dezembro de 2016, seguiu a pleno vapor até 1952, atingindo mais de 500 aldeias e bairros árabes.
Outro documento escondido pelo Malmab diz: “Safsat [antiga aldeia palestina perto da cidade milenar de Safed] – 52 homens foram pegos e atados uns aos outros, foi cavada uma vala e atiraram neles. 10 ainda estrebuchavam”.
Mais adiante, prossegue o informe, “mulheres vieram, pedindo clemência. Foram encontrados corpos de seis homens idosos. Ao total 61 corpos. Houve quatro casos de estupro, em um deles, uma menina de 14 anos de Safed. De um deles cortaram um dedo com uma faca para tirar um anel”.
Dois historiadores israelenses, Benny Morris e o citado acima, Ilan Pappe (este último que tive a oportunidade de entrevistar para o Hora do Povo quando de sua vinda ao Brasil para o lançamento de seu livro), pesquisaram e abordaram extensivamente estes documentos.
O historiador Ilan Pappe descreve os estupros ocorridos em Sa’sa: “Os sobreviventes recordam-se de como três mulheres e uma garota foram estupradas na frente de outros aldeões e de como uma mulher grávida foi esfaqueada com baioneta”.
O historiador Ilan Pappe trata o caso macabro, descrevendo os estupros ocorridos em Sa’sa: “Os sobreviventes recordam-se de como três mulheres e uma garota foram estupradas na frente de outros aldeões e de como uma mulher grávida foi esfaqueada com baioneta”.
Vale aqui destacar que as equipes deste organismo começaram a atuar logo após a publicação do livro de Pappe, cuja primeira edição sai na Inglaterra em outubro de 2006. O professor, impedido de trabalhar e sob ameaças pessoais deixou Israel e hoje leciona na Universidade inglesa de Essex.
Em 2002, quatro anos antes da publicação do livro do professor Pappe, escrevi um livro que intitulei “O Apartheid de Israel – Racismo, Agressão e Usurpação, os focos do conflito atual”.
Os relatos detalhados da limpeza étnica de 1948 em diante (planejamento e execução), fornecidos pelo historiador, ainda não eram tão conhecidos. O trabalho de Benny Morris, que o antecedeu, era ainda pouco divulgado por aqui. Tive que me valer de algum material que eu consegui coletar ou que tive acesso durante minha estadia em Israel (1968 a 1975), partir das minhas observações no local, participação em debates sobre a ocupação da Palestina e trabalhos em hebraico. Ressalto duas obras que foram centrais para o meu livro, o primeiro, o do advogado Sabri Jiryes, palestino israelense que viveu e sentiu na pele aqueles momentoso, o já citado “Os Árabes em Israel”, trabalho pioneiro produzido em 1965.
Com base nesse conjunto de elementos pude trazer ao Brasil informações que agora estão no centro do debate sobre o conflito entre israelenses e palestinos aqui e em todo o mundo. À época da publicação de “O Apartheid de Israel”, o livro e este autor, foram taxados de “antissemita” e a mim de portador de um suposto “anto-ódio”. O cordão sanitário que a direção sionista no Brasil tentou impor não impediu que o livro estimulasse um intenso debate que, claro, incomodou os que advogavam, na comunidade judaica, uma adesão incondicional e absolutamente acrítica ao regime israelense, classificando, como já dissemos, a contestação de “antissemita”, um outro aspecto dessa luta ideológica que o livro aborta e que prometo trazer aos nossos leitores em futuro próximo).
A outra obra foi “Question Juive – La Tribu, La Loi, L’Espace”, de Ilan Halevi, com quem atuei na mesma organização, a Aliança Comunista Revolucionária, e que foi o primeiro judeu a sair de Jerusalém para Beirute, para se pedir filiação na Organização de Libertação da Palestina, OLP.
Parti deste dinâmico material, para estar seguro em afirmar: “O despovoamento da Palestina, de sua população árabe, foi intensamente perseguido de 1948 a 1952, a partir de uma política de limpeza étnica planificada pelo Estado sionista. Mesmo depois desta fase, mais intensa, as agressões prosseguiram de forma intermitente ao longo da história de Israel”. É um trecho do capítulo “Em benefício da colonização judaica, a política do pulso firme”.
A solução dos dois Estados
À época, resgatei também um trabalho de um companheiro com também atuou na Aliança, Rami Livneh, filho de Meir Levenbraun, à época um dos dois deputados do Partido Comunista israelense. A obra de Rami é intitulada “A verdade sobre o caso Khirbet Hizeh” (Haemet al Parashat Khirbet Hizeh, em hebraico). O autor informa que “existia efetivamente um plano do Estado Maior Unificado da Haganah, sobre a direção de Ben Gurion, o secreto ‘Plano Daleth’ (Plano D) que previa a evacuação da população palestina para fora das zonas destinadas ao Estado da Palestina pela ONU em 1948”.
Rami Livneh (condenado a 10 anos de prisão a partir de 1974, pelo ‘crime de espionagem’ por estar entre os primeiros israelenses a se encontrar, desde o início dos anos 1970, com dirigentes do Fatah, presidido por Arafat e da Frente Popular Democrática de Libertação da Palestina, dirigida por Nayef Hawatme. Eram encontros clandestinos realizados nos territórios palestinos e desafiando a ocupação, reuniões para as quais eu estava encarregado de leva-lo e trazê-lo em meu carro. Eu estive bem perto de ter destino semelhante mas permaneci em liberdade devido ao fato de Rami ter resistido às pressões para entregar nomes de demais participantes, judeus e árabes, naquelas ações, assumindo para si toda a responsabilidade pelo estabelecimento daquelas conversas pioneiras, permitindo a mim e a outros de seus companheiros seguirmos atuando em liberdade em Israel e na Palestina e divulgarmos o texto que escreveu em sua defesa diante da Corte de Israel).
Para se ter uma ideia do aspecto vanguardeiro destes encontros, o ex-deputado e editor da revista Haolam Hazeh (Este Mundo), Uri Avnery, fundador do Gush Hashalom, Bloco da Paz, só veio a ter com o líder palestino, presidente do Fatah, Yasser Arafat, em famoso encontro em 1982. Ou seja, o encontro de Avnery, considerado o primeiro de um parlamentar israelense com liderança palestina, ocorreu mais de dez anos após os encontros entre membros das representações palestinas e Rami Livneh.
Aliás, a bem do resgate da História, o que Rami levava à discussão com o Fatah e a FPDLP não tinha nada a ver com a acusação – que ficou em maus lençóis ao defender a tese da ‘espionagem’ para manter Rami preso – era nada mais nada menos do que a saída para a crise: Rami pagou um alto preço por estar enquanto israelense, pela primeira vez, debatendo com palestinos, a questão dos dois Estados, Israel e Palestina, coexistindo em paz, lado a lado, base para os acordos de Oslo, pouco mais de 20 anos depois. Foi o conteúdo humano e progressista daquelas discussões que serviu de base para o pronunciamento de Rami em sua própria defesa. Sem dúvida, uma bela linha de pesquisa para os historiadores israelenses.
O plano de a Casa Vermelha
Voltemos ao plano de limpeza étnica: como disse, em 2006, em seu livro, Pappe traz mais detalhes sobre o hediondo plano que andei investigando.
Ele descreve o local onde o plano citado por Rami foi realizado: a “Casa Vermelha”, situada na Rua Yarkon, próxima ao mar, em Tel Aviv, projetada para sediar o conselho dos trabalhadores hebreus (daí sua denominação), acabou se tornando o QG da Haganah que Pappe descreve como “a principal milícia clandestina sionista na Palestina”.
“As ordens vinham com uma descrição detalhada dos métodos a empregar para despejar à força as pessoas: fazer intimidação em grande escala; sitiar e bombardear vilarejos e centros populacionais; atear fogo a casas, propriedades e bens; expulsar; demolir; e, finalmente, depositar minas entre os escombros para impedir o retorno de qualquer um dos habitantes expulsos”, relata o historiador Pappe
É nessa casa, segundo relata o historiador, que os detalhes finais do projeto foram elaborados e distribuídos:
“Nesse edifício, à tarde de uma fria quarta-feira, 10 de março de 1948 [pouco mais de 60 dias do estabelecimento oficial do Estado de Israel], um grupo de 11 homens, dirigentes veteranos do sionismo e jovens oficiais militares judeus, deu os últimos retoques a um plano de limpeza étnica da Palestina. Na mesma noite, ordens militares foram expedidas para as unidades espalhadas pelo território, para que se preparassem à expulsão sistemáticas dos palestinos de vastas regiões do país. As ordens vinham com uma descrição detalhada dos métodos a empregar para despejar à força as pessoas: fazer intimidação em grande escala; sitiar e bombardear vilarejos e centros populacionais; atear fogo a casas, propriedades e bens; expulsar; demolir; e, finalmente, depositar minas entre os escombros para impedir o retorno de qualquer um dos habitantes expulsos”.
Assim, prossegue, “cada unidade foi escalada para uma lista de vilarejos e bairros, como parte dos alvos desse plano mestre, o Plano D (Dalet, em hebraico)”.
Segundo estes historiadores, ativistas e pesquisadores, parte importante dos documentos nos quais baseiam seus textos estavam arquivados na sessão árabe do partido Mapam (Partido dos Trabalhadores Unificado) – que defendia um estado binacional (árabe-judaico) mas, cujos membros judeus cederam em seus princípios e acabaram participando das ações de limpeza étnica pela Haganah.
Vejamos como o articulista Shezaf denuncia o acontecido com estes e outros documentos:
“Desde o início da década passada, equipes do Ministério da Defesa apagam ou removem lotes de documentos históricos para ocultar as provas sobre a Nakba
“Quatro anos atrás, a historiadora Tamar Novick foi sacudida por um documento que encontrou nos arquivos de Yosef Waschitz, do departamento árabe do partido de esquerda (sic) Mapam, no centro de memória Yad Yaari, em Givat Haviva (centro escolar da Federação dos Kibutzim (aldeias dirigidas pelos partidos Mapam e Mapai)”.
O massacre e estupro em Safsaf
O documento traz detalhes como os do massacre em Safsaf, que reproduzimos acima. Segundo a matéria do Haaretz, o massacre de Safsaf fez parte da operação Hiram (nome tomado do rei bíblico que reinou na cidade libanesa de Tiro) através da qual os líderes israelenses ambicionavam despovoar de árabes toda a Galileia e até o sul do Líbano.
Ao tratar da Operação Hiram, o professor Pappe descreve: “Alguns vilarejos sofreram mais que do que outros com as bombas constantes: Rama, Suhmata, Malkyya e Kfar Bir’im”.
Ele prossegue, mais adiante: “A maioria dos vilarejos da Alta Galiléia foi tomada em único dia, em finais de outubro de 1948: Deir Hanna, Ilabun [onde, segundo descreve Ilan Halevi em seu “Question Juive”, os aldeões mais jovens foram queimados vivos no interior de uma igreja], Arrabe, Iqrit, Farradiyya, Mi’ilya, Khirbat Irribin, Kfar Inan, Tarbbikha, Tarshiha, Mayrun, Safsaf, Sa’sa, Jish Fassuta e Qaddita. A lista é longa incluindo outros dez vilarejos”.
A ‘purificação’
A ampla descrição da limpeza étnica (que os líderes sionistas chamavam, entre si de ”tihur”, purificação em hebraico) teve no advogado palestino-israelense, Sabri Jiryes, um denunciante que antecedeu em muito a Ilan Pappe e Beny Morris. Embora, sem a riqueza de detalhes das atrocidades, Jiryes aponta para um aspecto desse tihur, ocorrido já com o Estado de Israel firmemente instalado, onde as aldeias foram esvaziadas de uma forma direta e sem a necessidade de recurso às atrocidades usadas durante os meses da refrega para a implantação do Estado de Israel, devido ao fato dos aldeões já estarem justificadamente amedrontados.
Foi assim que durante os anos que se seguiram aos horrores e à expulsão maciça da Nakba, a limpeza prosseguiu: os habitantes árabes simplesmente recebiam ordens de deixar as suas moradas, ou eram conduzidos em comboios para fora das fronteiras de Israel. Sem o acesso aos documentos que Pappe e Morris descobriram ao pesquisar posteriormente (anos 1980 em diante), Jiryes, em 1965, fez um esforço hercúleo, para publicar essas informações, buscando-as nos julgamentos, nos jornais israelenses e nos pronunciamentos do parlamento, o Knesset.
Eis um trecho do histórico livro de Jiryes:
“Em 28 de fevereiro de 1949, 700 refugiados [que já haviam sido expulsos de outras aldeias], foram expulsos da aldeia de Kafr Yassif. Grande parte deles foram colocados em caminhões e levados até a fronteira, onde eram forçados a atravessar. Em junho de 1949, a polícia e o exército israelense cercaram as aldeias de Hisam, Qatiya e Jauneh e expulsou seus habitantes. Os aldeões de Ghabisiya receberam uma notificação que os obrigava a deixarem suas casas em dois dias, em 24 de janeiro de 1950. Mais tarde eles apelaram à Suprema Corte, que determinou que a ordem não tinha validade até sua publicação no Diário Oficial. As autoridades militares recusaram-se a permitir o retorno dos moradores e consideraram o caso encerrado com uma declaração de que a região da aldeia era uma ‘área fechada’ publicada. No início de 1950, os habitantes de Batat foram expulsos de sua aldeia. Em 17 de agosto os moradores de Mijdal receberam uma ordem de expulsão e logo um primeiro grupo foi levado à Faixa de Gaza; a expulsão foi concluída em três semanas. Treze aldeias no Vale Ara (Wadi Ara, em árabe) foram evacuadas e seus habitantes levados para o outro lado da fronteira em fevereiro de 1951”.
- Nathaniel Braia, Hora do Povo
15 de julho de 2019
https://horadopovo.org.br/israel-oculta-provas-dos-crimes-de-limpeza-etnica-contra-os-palestinos-i/
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