Jacob Gorender: “O ar estava carregado de eletricidade”
- Opinión
Aos 53 anos do golpe militar, a Pública traz uma entrevista inédita com o historiador Jacob Gorender. Falecido em 2013, aos 90 anos, o militante comunista é autor de obras clássicas da historiografia nacional como O escravismo colonial e Combate nas Trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada.
Nessa conversa de 15 anos atrás, Gorender fala de detalhes do seu 31 de março de 1964, o dia crucial para o golpe, desfechado no dia 1 de abril. “Para mim, foi inesperado. Era impressão, não só minha, como de tanta gente que estava do lado democrático naquela época, que nós venceríamos a parada, que conseguiríamos realizar reformas importantes e levar o país para frente.”
O golpe jogou Gorender na clandestinidade por seis anos até ser preso em 1970. Nesta entrevista, ele fala das experiências vividas como militante durante o período de exceção (1964-1985). “Eu achava que a esquerda marxista não devia capitular como a direção do PCB, mas também não devia se precipitar em ações de assalto, que estavam custando muito caro”, diz o historiador.
Onde o senhor estava no dia 31 de março de 1964?
Eu estava num hotel e planejado para viajar de Goiânia a Brasília no dia seguinte. À noite no hotel, ouvi pelo rádio o discurso de Jango aos sargentos no Automóvel Clube. Eu tive um presságio de que a coisa estava muito esquentada.
O presságio veio quando o senhor ouviu o discurso?
Sim. O ar estava carregado de eletricidade. E no dia seguinte – eu conto isso no meu livro Combate nas trevas – tinha uma banca de jornal quase à porta do hotel, comprava lá os jornais que vinham do Rio, mas quando fui no 31 de março me disseram que os jornais não tinham chegado. Algo estranho, né? Pouco depois, eu estava cortando o cabelo na barbearia do hotel e me entregam o telefone. E um companheiro de Goiânia me diz: “Olha, acaba de haver um levante contra o governo do Jango”. Assim que o barbeiro terminou o serviço, eu, pelo telefone, avisei um companheiro para que viesse ao hotel me pegar de automóvel; arrumei minhas coisas, fechei a conta e saí. Eu compreendi ali que a coisa tinha virado.
À noite, Marco Antônio Coelho [dirigente do PCB e editor do jornal Voz Operária durante a ditadura militar] me ligou: “O governo está deposto”, disse. “O Jango saiu do Rio, veio pra Brasília e já foi para o Rio Grande do Sul. A Presidência foi declarada vacante.”
A partir daí começaram seis anos de clandestinidade até eu ser preso em janeiro de 1970.
Jango discursa no Automóvel Clube, no Rio de Janeiro, em 30 de março de 1964 (Foto: Divulgação/Dossiê Jango)
O senhor imaginava que haveria um golpe?
Para mim, foi inesperado. Era impressão, não só minha, como de tanta gente que estava do lado democrático naquela época, que nós venceríamos a parada, que conseguiríamos realizar reformas importantes e levar o país para frente.
A ideia de que daria certo não era muito otimista?
Nós tínhamos confiança. Antes de sair para Goiânia, eu assisti ao comício da Central do Brasil [abaixo, o áudio da convocação], no Rio de Janeiro, em que Jango foi o orador final e anunciou duas medidas importantíssimas. Havia um clima de que nós conseguiríamos projetar o Brasil no rumo de mudanças, que eram as chamadas reformas de base. Duas eram particularmente importantes. Uma limitava as remessas de lucro do capital estrangeiro. Tinha-se conseguido uma lei proposta pelo deputado Sérgio Magalhães, um nome hoje pouco lembrado, mas que naquela época tinha muita projeção, como deputado nacionalista… Ele tinha feito aprovar na Câmara um projeto segundo o qual as remessas se limitariam a 10% sobre o capital que vinha de fora investido no Brasil. Quer dizer, o excedente, o capital que aumentou à custa de lucros no Brasil, ficava fora do cálculo dos 10%. Uma medida que desagradou profundamente às multinacionais, suscitou protestos do embaixador americano, mas passou na Câmara. Por sinal, foi uma das primeiras leis revogadas assim que o golpe foi vitorioso. E a outra medida foi a da reforma agrária, a da limitação das propriedades na faixa de 10 km de cada lado das rodovias federais. Toda propriedade de mais de 100 hectares seria desapropriada além dos 30 hectares que fossem na margem de açudes e de outras obras financiadas pelo governo federal.
Isso colocou os fazendeiros possessos e estabeleceu a união deles de norte a sul para derrubar o governo.
Antes disso, é claro, Jango já tinha contra si todo o conjunto de forças conservadoras e ultrarreacionárias. Jango era um homem sabidamente discípulo do Getúlio Vargas, inclusive eram vizinhos estancieiros, como dizem no Rio Grande do Sul, em São Borja. Getúlio terminou tragicamente. As mesmas forças que levaram Getúlio ao suicídio, os coronéis e seu famoso manifesto, que já eram generais quando Jango assumiu o poder, se uniram contra ele. E entre elas, é claro, Carlos Lacerda, que já era o governador da Guanabara, que fez uma campanha violentíssima contra Jango.
Então Jango tinha à frente uma coalizão muito forte. Mas nós tínhamos esperança de que ele conseguiria realizar essas reformas e de que nós teríamos força para levar o país a mudanças e a um rumo progressista.
Quando o senhor diz que “nós” tínhamos esperança, quem o senhor inclui?
Nós, no caso, os comunistas. Naquela época era o Partido Comunista Brasileiro [PCB], já tinha o PCdoB [Partido Comunista do Brasil], que surgiu em 1962, mas ainda era um partido de menor influência e já pregava a luta armada, mas que naquele momento ainda não tinha significação. Além do PCB, existiam as forças que se agrupavam na chamada Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), presidida pelo deputado Sérgio Magalhães. E aí entravam os comunistas e os nacionalistas em geral. Era assim que se chamavam na época aqueles que queriam reformas anti-imperialistas, contra o capital estrangeiro, contra as multinacionais, com uma política externa independente, uma frente latino-americana, enfim… que se contrapunham às forças conservadoras que não admitiam reforma agrária, as multinacionais que queriam seus interesses intocados, obviamente.
O grande capital estrangeiro e nacional que não admitia concessões aos sindicatos, aos trabalhadores. Uma das acusações que faziam a Jango e que propiciaram o golpe é que ele estava planejando introduzir no Brasil o que eles chamavam “a república sindicalista”.
Jango estimulou muito os sindicatos?
O Jango tinha muita ligação com os sindicatos, Getúlio tinha menos. O Jango, pessoalmente, era um homem muito acessível.
O senhor o conheceu?
Nunca estive com ele. O vi em comícios, mas no comitê central do partido eu não tinha essa tarefa. O Prestes [Luiz Carlos Prestes] esteve frequentemente com ele. Quando ele queria, o Jango o atendia. E também os sindicalistas, líderes sindicais, tinham acesso fácil ao Jango. O Getúlio era homem reservado, colocava as pessoas à distância, enquanto o Jango não. Já existia, acredito que foi fundado em 1962, o CGT, Comando Geral dos Trabalhadores, que unia os sindicatos, federações, justamente nessa luta pelas reformas de base, então também integrava a FPN.
Como foi sua vida após o golpe?
Quando eu saí do Rio depois do comício do dia 13 de março e fui pra Goiânia, eu estava tranquilo. Saí do Rio certo de que as coisas estavam marchando bem, de que nosso apoio ao Jango estava certo e que as reformas seriam realizadas, e nós triunfaríamos contra a frente conservadora, reacionária do Carlos Lacerda, dos generais e de toda a politicada conservadora da época. Eu tinha essa tranquilidade. E esse era também o estado de espírito do pessoal do comitê central do partido, dos dirigentes do partido e dos aliados. Era uma confiança de que nós iríamos triunfar.
A época também nos incitava a ter esse pensamento. Era 1964, mas em 1959 havia sido vitoriosa a revolução cubana e vários brasileiros e dirigentes tinham estado em Cuba, o que animava o ambiente. Teve também a luta pela independência na Argélia, que foi vitoriosa. A Guerra do Vietnã ainda estava nos seus primórdios, mas o fato é que nós víamos os americanos sendo batidos em várias frentes; governos socialistas vitoriosos na Itália, na França, tudo isso nos animava, tínhamos uma impressão favorável.
E mesmo na América Latina, o Chile era comandado pelo Eduardo Freire, que não era socialista mas era de esquerda. Na Argentina, a situação era periclitante, mas naquele momento era o Arturo Umberto Illia, um governo moderado, ainda não era a ditadura que depois matou 30 mil pessoas. No México era o Cárdenas, amigo que tinha atitude simpática em relação a Cuba e apoiava os movimentos progressistas da América Latina.
Então vocês foram surpreendidos?
A situação era de tal ordem que nós fomos pegos, como se diz, de calças curtas. Não tínhamos uma preparação no caso de uma virada brusca da situação. Não tínhamos aparelhos até para nos abrigar, ou seja, casas suficientemente resguardadas onde pudéssemos nos esconder. Então, assim que veio o golpe, pelo que me falaram – e acredito que seja verdade –, um grande foco do problema foi onde colocar o Prestes. Dizem que ele dormiu a primeira noite, de 31 de março para 1º de abril, num automóvel, não tinha onde levá-lo, até que procura daqui, procura de lá, encontraram uma casa onde ele podia ficar sem ser, momentaneamente, molestado. Foi um corre-corre para cada um encontrar um lugar onde se abrigar. Quer dizer, um despreparo completo. Em Goiânia também foi com dificuldade que me arranjaram um lugar onde eu pudesse me abrigar, uma espécie de sítio, onde eu fiquei quase um mês antes de viajar para São Paulo. Esse foi o ambiente em que o golpe se produziu. Quer dizer, o espírito de autoconfiança foi danoso e muito nocivo. Dificultou a rearticulação.
Quem o abrigou nesse primeiro mês?
O dono do sítio chamava Benigno, depois ele foi preso, não por causa da minha presença, mas ele ajudou outros também. O sítio era um lugar de moradia da amante dele.
Enquanto o senhor fugia, como teve acesso à informação do que estava acontecendo?
Eu fui de Goiânia a São Paulo de automóvel levado por um companheiro chamado Walter de Souza Ribeiro, que tinha sido oficial do Exército, mas, como ele deu um “Viva, Prestes” numa solenidade, foi excluído. Era segundo-tenente. É um dos desaparecidos. Figura entre as pessoas que tiveram um fim que ninguém sabe. Morreu, é claro. Ele me trouxe a São Paulo, e de lá eu fui colocado no segundo aparelho coordenado pelo Marco Antônio Tavares Coelho, deputado federal, lugar onde estavam os outros companheiros. Era uma casa onde a gente tinha que ficar em silêncio, não falar em voz alta, e tudo era difícil. Sanitário, tomar banho, alimentação…
Até que eu consegui um outro lugar para ficar. No fim, eu passei seis anos mudando de casa. Calculo que devo ter mudado umas 30 vezes, uma vida muito estressante. Ficava em casas de famílias, mas chegava um ponto que elas também ficavam enervadas e você tinha que sair porque já não havia ambiente favorável.
Quais os momentos de maior tensão nessa peregrinação até sua prisão em 1970?
Eu estava na lista dos cassados, mas consegui despistar. Eu não fiquei esses seis anos totalmente em São Paulo. Eu passei dois anos em Porto Alegre, fiquei de 1966 a 1968, como missão do partido, e me integrei na direção, no comitê estadual da cidade. Então atuei esses dois anos em Porto Alegre até que a minha situação também ficou inviável. Eu fui localizado, a polícia política já sabia que eu estava lá e tinha meus dados físicos, e certos erros cometidos pelos próprios companheiros tornaram inviável a minha permanência. Daí vim pra São Paulo e aqui fiquei. Em 1970 fui preso.
O senhor ficou quanto tempo preso?
Eu fiquei dois anos preso, até 1972. Por que os outros ficaram um tempo bem mais longo? Por que eu não participei de nenhum assalto, nenhum ato dessa natureza. Eu era contra isso, eu achava que a esquerda marxista não devia capitular como a direção do PCB que pregava uma linha, a nosso ver, conciliadora, a título de encontrar brechas na política da ditadura, mas também não devia se precipitar em ações de assalto, que estavam custando muito caro. Quer dizer, a repressão se organizava, tinha muito mais recursos em matéria de automóveis, agentes, pessoal treinado. Os assaltos terminavam, frequentemente, em tiroteio, prisões, e o balanço era negativo, na minha opinião. O que se obtinha de dinheiro numa agência bancária, no final das contas, tinha que pagar o pessoal que assaltava, que se tornava funcionário, tinha que ter uma integração total na vida. Enfim, à medida que mais se assaltava, mais dinheiro se precisava, e isso estava se tornando um ciclo vicioso prejudicial.
A minha opinião, a minha posição, se coaduna com a do Apolônio de Carvalho. Nós fundamos o PCBR. Como éramos dissidentes do PCB, então numa conferência clandestina, criamos um outro partido, mantendo a sigla PCB e acrescentando o R, Partido Comunista Brasileiro Revolucionário.
Apolônio de Carvalho fundou com Gorender o PCBR, uma dissidência do PCB (Foto: Divulgação/Memórias da Ditadura)
A luta armada então foi um erro?
A nossa posição era a de não entrar na onda dos assaltos naquele momento, era de considerar que uma atitude de participação na luta armada devia ter um certo sustento no movimento de massas, no movimento de opinião pública que não existia.
A nossa posição era utópica, porque movimento de opinião pública maciço nas condições da ditadura naquele momento era inviável. A censura era completa. A repressão, tremenda. Quer dizer, sindicatos sob intervenção. Os dirigentes sindicais que tinham sido eleitos foram depostos. Era uma posição realmente utópica. Nós teríamos que esperar, o que ia demorar anos para se formar. E outros companheiros não queriam essa espera. No nosso caso, quem apoiava a luta armada imediata era Mário Alves. Era um companheiro formidável, de grande prestígio pessoal, se comportou heroicamente em todo esse episódio, e morreu sob tortura, literalmente, no Rio de Janeiro, no quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita.
Enquanto nós deliberávamos, o Marighella, com a Ação Libertadora Nacional, já estava em ação, com assaltos e também outros grupos foram se formando, Vanguarda Armada Revolucionária Palmares [VAR-Palmares], Vanguarda Popular Revolucionária [VPR)]… aí foi o desastre da esquerda, se fragmentar em 20 ou 30 grupos. No meu livro Combate nas trevas, no final, tem um glossário de siglas, que dá uma relação dos grupos que se formaram para esse tipo de ação. Isso nos fragilizava tremendamente, a repressão foi aperfeiçoando seus aparelhos, colhendo informações. Enquanto nós perdíamos um companheiro preso ou morto e não tínhamos como substituir, a repressão sempre tinha como formar novos quadros. Criou a Oban, DOI-Codi, os centros de tortura… uma coisa terrível.
31 de março de 2017
Thiago Domenici, da Agência Pública