As dificuldades Jurídicas para a implementação da ALCA
04/09/2002
- Opinión
1 - A igualdade entre Estados
1.1 - O art. 4º da nossa Constituição estabelece os seguintes princípios pelos quais
o Brasil deverá reger-se em suas relações internacionais:
“Art. 4º ...
I - independência nacional;
II - prevalência dos direitos humanos;
III - autodeterminação dos povos;
IV - não-intervenção;
V - igualdade entre Estados;
VI - defesa da paz;
VII - solução pacífica dos conflitos;
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de asilo político.”
1.2 - O que chama logo a atenção, quando se trata de discutir a nossa integração em
um bloco econômico, ou simplesmente numa associação de mercado livre, são os itens
grifados, vale dizer, a independência nacional e a igualdade entre Estados. Os dois
itens estão, a toda evidência co-relacionados, pois a igualdade entre Estados
pressupõe a independência nacional.
1.3 - Assim, qualquer tratado internacional que venha a ser assinado não pode
abdicar da independência nacional (inclusive no que concerne a possibilidade de
denunciar o tratado e retirar-se da associação) nem desrespeitar a igualdade entre
Estados, o que nos levaria a exigir absoluta igualdade de tratamento.
1.4 - A primeira dificuldade portanto seria exigir dos Estados Unidos a queda das
barreiras referentes aos produtos brasileiros. E isto parece impossível visto que o
Congresso Norte-Americano, pela voz de diversos dos seus membros, tem dito que a sua
função é proteger os produtores americanos .
1.5 - A inclusão do princípio da igualdade entre os Estados como orientador da
política externa brasileira visou estabelecer uma coerência lógica entre os
comportamentos interno e externo dos nossos poderes públicos. Sabemos que a nossa
Constituição atual dá uma relevância especial ao princípio da isonomia. Relevância
bem maior do que nas anteriores. Nas nossas outras Constituições, a isonomia era
apenas um dos modos de implementação dos direitos à vida, à segurança, à liberdade,
à propriedade, etc(1) . Hoje, figurando o seu no enunciado no caput do art. 5º, como
primeira afirmação a inspirar todos os incisos que se lhe seguem, a igualdade não é
mais forma de implementação de diretos e garantias, mas é a causa de direitos e
garantias. Por conseguinte, tendo o princípio da igualdade como núcleo de toda a
nossa principiologia constitucional, e sendo cláusula pétrea (art. 60, IV), a
igualdade entre os Estados também terá status, vale dizer, de cláusula pétrea, pois,
ainda que não estivesse expresso, decorreria logicamente de todo o nosso sistema
constitucional.
1.6 - Portanto, enquanto não caírem as barreiras sobre os nossos produtos de
exportação, não haverá possibilidade constitucional de se firmar o tratado da ALCA.
E além disso, as disposições do tratado terão de ser isonômicas. Não poderá haver
qualquer limitação para uma parte, sem que haja igual limitação para outra(2)2.
Havendo, poder-se-á impugnar a cláusula perante o Judiciário brasileiro, uma vez que
o tratado ingressa no sistema judiciário nacional de cada Estado parte(3)3, e, assim
sendo poderão os juízes garantir-lhe ou negar-lhe vigência, tal qual fazem com as
normas jurídicas de produção interna, veiculada por leis, decretos, portarias,
instruções normativas, etc.
1.7 - O tratado não poderá conter nenhuma cláusula que vede sua apreciação política
pelo Congresso Nacional e a sua validade jurídica pelo Judiciário. No que concerne
ao Poder Legislativo, está expresso na Constituição vigente (art. 84, VIII), que
compete ao Congresso referendar os tratados, convenções e atos internacionais
celebrados pelo Presidente da República. No que tange ao Judiciário, não deve ser
esquecido o inciso XXXV, do art. 5º, que veda à lei excluir da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito, e, se o tratado passa integrar o direito
interno, como vimos, poderá ser impugnado. E note-se que as disposições do art. 5º
são cláusulas pétrea e não poderão ser modificadas, nem por Emendas Constitucionais,
e muito menos por tratados.
1.8 - Deve ainda ser notado que o controle judicial, no caso, pode externar-se não
só na forma do controle concentrado, como ainda na forma do controle difuso, pois a
aplicação do tratado poderá ferir concretamente direitos e garantias individuais.
2 - O mercado interno como patrimônio nacional.
2.1 - Diz o art. 219 da Constituição que “o mercado interno integra o patrimônio
nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-
econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos da
lei federal”.
2.2 - Patrimônio nacional, no caso, não é o patrimônio da União. É algo bem mais
amplo. Se se tratasse de patrimônio da União, estaria arrolado no art. 20. No caso,
a Constituição refere-se a patrimônio da nação.
2.3 - O art. 219, como qualquer outro, não pode ser interpretado isoladamente, mas
sim dentro do Capítulo em que se insere. Tal artigo está colocado no Capitulo IV (Da
Ciência e Tecnologia), do Título VIII (Da Ordem Social). Isto significa que o
mercado interno deve ser prioritariamente favorecido no que diga respeito ao
progresso cientifico e tecnológico. Compete à lei federal (referida no artigo)
definir o modo de viabilizar o desenvolvimento cultural (cultura ai entendida em seu
sentido mais amplo, vale dizer, conjunto de elementos caracterizadores de uma época
ou de uma civilização). Não é certo dizer-se que tal artigo é de eficácia limitada
pelo simples fato de dizer que será implementado “nos termos da lei federal”. O
texto está nitidamente dividido em duas partes. A primeira: “ o mercado interno
integra o patrimônio nacional ...” revela um comando, uma afirmação peremptória,
possuindo eficácia plena. A segunda “ ... e será incentivado de modo a viabilizar o
desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem estar da população e a autonomia
tecnológica do País, nos termos da lei federal....” possui eficácia limitada, mas a
lei limita-se, como vimos a definir o modo de viabilização do ordenamento contido no
texto.
2.4 - O mercado interno é, de conseguinte, um patrimônio inalienável da nação
brasileira e é obrigação dos Poderes Públicos incentivar o seu desenvolvimento e
conferir-lhe autonomia tecnológica. Com isto, fica vedada qualquer cláusula em
tratado que impeça a transferência de tecnologia.
3 - A integração da América Latina como meta preferencial
3.1 - O fato de o mercado interno ser patrimônio nacional não impede a integração do
Brasil com o restante da América Latina. É que o parágrafo único do art. 4º diz
claramente que “a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica,
política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma
comunidade latino-americana de nações”.
3.2 - É certo que o texto não específica o tipo de comunidade. Não diz se se trata
de uma mera união de mercados, de uma integração econômica mais profunda, ou mesmo
de uma Confederação. O que parece vedado é a abdicação da soberania, o que ocorreria
no caso de uma federação.
4 - A questão da soberania
4.1 - Todo Estado é soberano, salvo os Estados-membros de uma federação que abdicam
de parte de sua soberania, pois não possuem personalidade de direito internacional.
Abdicam também de uma parcela da sua soberania interna, pois estão totalmente
submetidos à Constituição Federal. É certo que esta submissão envolve, da mesma
forma a União (personalidade de direito interno – ordem jurídica parcial central)
como a República Federativa do Brasil (personalidade de direito internacional –
ordem jurídica total). Assim sendo, temos de concluir que a soberania está
depositada na ordem jurídica total, que se exterioriza em seu grau máximo na
Constituição Federal. A soberania decorre, portanto, dos ditames da Lei das leis. E
esta é claro ao definir, que entre nós “todo poder emana do povo”. Ora se assim é,
só o povo pode abdicar da soberania.
4.2 - Na questão presente, sem umas manifestação popular convocada, nos termos do
art. 49, XV, da Constituição, seria impossível a assinatura de um tratado com um
Estado que não seja latino-americano, a não ser que4 se trata de meros acordos
comerciais, e ainda assim com respeito absoluto à igualdade entre as partes.
* Doutor em Direito pela PUC-SP. Presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª
Região biênio 1993/1995. Advogado em São Paulo.
Notas:
(1) Veja-se o nosso Princípios Constitucionais Tributários, Malheiros, São Paulo, 2ª edição, 2000, pgs. 16 e segts.
(2) No tratado do Nafta existe tratamento diferenciado em relação ao México, no que concerne as empresas
prestadoras de serviços.
(3) Francisco Rezek, Direito dos Tratados, Forense, Rio, 1984, pg. 382.
https://www.alainet.org/de/node/106334?language=es
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