A posse da terra

Dos filhos deste solo, és mãe gentil, Pátria amada Brasil!

A questão agrária, geradora de enormes desigualdades sociais, continua sendo o maior obstáculo econômico, social, político e ético para o desenvolvimento social e econômico do Brasil.

05/10/2021
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Muito se fala sobre identidade nacional e a busca do Brasil por esta identidade. Um de seus elementos é o local de origem e o pertencimento ao grupo desse local, que representa também um espaço de território. A identidade requer a sensação de pertencimento ao local-espaço-território e ao grupo que o habita e de convivência. Como entender esse local-espaço-território dentro de nossa imensidão continental e diante da histórica redução das possibilidades de uso do espaço-território no Brasil por parte da maioria da população?

 

O Hino Nacional, um dos símbolos nacionais, retrata o Brasil como “mãe gentil dos filhos” deste solo. Fala claramente de solo. Não seria, pois, exagero esperar correspondência entre a expressão “Pátria amada”, slogan identificador do atual governo federal, e a ocupação desse território continental pelos filhos desta Pátria, sua população: conexão, inclusão, participação da população, o primeiro elemento, com este solo-território continental do Brasil, segundo elemento. Cabe a pergunta: — efetivamente que parte do território brasileiro pertence individualmente a cada integrante da grande população do Brasil? — Quem exerce o domínio, na forma de posse ou propriedade, deste imenso “solo pátrio”? Para ampliar mais a questão, o território abrange algumas variáveis relacionadas com o relevo geográfico, os recursos hídricos, rios superficiais e rios subterrâneos, tipo de vegetação, biomas, recursos minerais, o espaço aéreo; a divisão do espaço em área rural e área urbana. Essas variáveis do território nacional têm potencial para formas de uso e de exploração. Em breve revisão histórica, as limitações reais impostas às pessoas em geral para o uso do território e para a distribuição das terras indicam as origens da atual situação de injustiça fundiária na área rural e na área urbana com consequências graves para a maior parte da população.

 

Desde a época da Colônia, a criação das capitanias hereditárias e sesmarias como opção da colonização das terras pelos portugueses no Brasil representou uma forma concentradora de terras com os índices mais altos do mundo, os latifúndios e, mais recentemente, na forma do grande agronegócio de exportação de “commodities”. São os produtos primários “in natura”, cultivados (produtos agrícolas) ou de extração mineral (minério não beneficiado). A concentração das terras nas mãos de uma minoria contribuiu para a captação de poderes públicos no âmbito privado e para a formação de uma hierarquia social baseada na relação entre a posse de extensões de terra e o poder de explorá-las e entre o fortalecimento do poder privado. Dados históricos indicam que o uso de violência permeou a posse de terras no Brasil e exerceu influência para a conformação de limites nas condições econômicas e sociais do povo.

 

A população nativa do Brasil composta por muitos povos indígenas foi subjugada, grande parte escravizada e expulsa de suas terras, principalmente entre os anos 1540 e 1580, apesar da tentativa dos jesuítas em sua defesa no seu trabalho de evangelização. É reconhecido o fato da drástica redução da população nativa e a destruição de muitos elementos da sua cultura original. No século XX, ganhou importância a defesa dos povos indígenas com o trabalho do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, o primeiro diretor do Serviço de Proteção aos Índios – SPI, criado em 1910, que visou assimilar os povos originais à civilização brasileira e que foi substituído pela FUNAI – Fundação Nacional do Índio pela Lei nº 5.371, de 1967. A Constituição Federal de 1988 constitui um paradigma no reforço da luta pelos direitos dos povos indígenas, sua cultura e a demarcação de suas terras. Atualmente, verifica-se grave retrocesso por conta de medidas do governo do presidente Bolsonaro que suspendeu as demarcações de terras indígenas, confirmando as suas declarações de intenção antes de eleito. Em resposta a essas inconstitucionalidades, houve uma avalanche de ações do Ministério Público Federal na Justiça cobrando atos para avançar nos procedimentos legais.

 

Os afrodescendentes constituem outra parcela importante na formação da população brasileira. A partir de 1559, a permissão oficial pela metrópole portuguesa do tráfico negreiro para o Brasil Colônia acrescentou à concentração fundiária das capitanias hereditárias a imposição pelos donos das terras da exploração desumana do trabalho de forma vil das pessoas de raça negra sequestradas da África. Essa fase longa e vergonhosa da história da vida brasileira gerou formas ilegítimas de acesso ao patrimônio por famílias que se perpetuaram como elite social, detentoras do monopólio de estabelecer regras e costumes subordinando-lhes a sociedade como um todo. No período de 329 anos entre 1559 e 1888 essa forma de comportamento consolidou a formação de um pensamento dominante na sociedade baseado num modelo econômico e social espoliador, tanto da mão de obra escravizada, excluída de qualquer valor humano, estigmatizada pela cor da pele e destituída de direitos, como da forma de acesso a terra no território do Brasil, e também da exploração dos recursos naturais que eram, e continuam sendo, exportados sem preocupação com sua finitude. Os movimentos sociais pelo reconhecimento de uma identidade própria e da valorização da cultura dos afrodescendentes vem crescendo de forma progressiva. No entanto, os 133 anos até nossos dias representam apenas 40% do total do tempo durante o qual vigorou o sistema escravagista no Brasil, que deixou marcas sociais indeléveis com tristes consequências sociais, econômicas e culturais, e também em termos de preconceitos, que persistem de forma latente ou explícita em camadas da sociedade brasileira, questão analisada pelo sociólogo Jessé Souza na obra A Elite do Atraso: da escravidão à lava jato. Os afrodescendentes sofreram imensa defasagem, pois a importância da abolição da escravidão não foi devidamente acompanhada de garantia de meios de sobrevivência com trabalho pago, substituído pela mão de obra remunerada dos imigrantes da Europa.

 

Tanto a atividade agrícola quanto a atividade extrativa, que serviram de base para a economia no Brasil, e assim prosseguem, envolvem a posse e a exploração de terras que beneficiam parte reduzida da população na distribuição dos lucros dessas atividades econômicas, restando para a maioria e para as gerações seguintes o ônus da degradação ambiental. A tendência de concentração de terra e de seus benefícios pelo agronegócio e pela atividade de extração de minérios para fins de exportação em larga escala não socializa os benefícios e os lucros, apenas os prejuízos ambientais e sociais. É o pensamento dominante da “elite política” na opção por interesses privatistas mancomunados, de forma crescente a partir do golpe empresário-militar de 1964, com as diretrizes da globalização econômica, ao invés da proteção ao interesse público nacional.

 

Também os descendentes dos colonizadores e de imigrantes tiveram que conviver com esse sistema concentrador de terras e de exploração das riquezas naturais e a ele se sujeitar. A partir de 1850, com a Lei de Terras n. 601, que reconheceu a propriedade privada da terra, e com a Lei Euzébio de Queiroz n. 581, que criminalizou o tráfico de africanos escravizados, houve perda do valor comercial da propriedade do negro escravizado, compensada pela valorização da propriedade privada da terra. Na prática, a lei de Terras perpetuou a existente concentração de terras pela impossibilidade econômica do acesso à compra de terras pelos alforriados da escravidão e pelos imigrantes pobres da Europa, que sofriam descontos indevidos em seu pagamento pelos donos das fazendas. O problema fundiário continua a gerar insegurança vital e econômica para a maioria da população rural do Brasil, submetida a uma relação próxima à servidão, bem retratada na literatura em prosa e verso por autores como Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Itamar Vieira, Carolina Maria de Jesus e João Cabral de Melo Neto.

 

A reforma agrária idealizada a partir dos anos 1950 não teve seguimento como política pública. Nos governos militares nos anos 1970, foi substituída por programas de colonização para expansão da fronteira agrícola na região do Brasil Central, que contemplou, na distribuição de recursos públicos e de terras devolutas (públicas), setores mais abastados da produção por influência de corporações ligadas com a aplicação de agrotóxicos na produção maciça de grãos. Faltou interesse político para apoiar a agricultura em pequena escala, necessária para a subsistência da parcela maior da população trabalhadora no campo. Nem houve interesse pela preservação dos recursos naturais, em especial do bioma do Cerrado, no Brasil Central. Essa utilização de terras públicas teve a função também de atrair um contingente de pessoas do Nordeste e amenizar as pressões sobre a terra nas regiões de origem, de ocupação mais antiga, e reduzir os conflitos pela posse da terra, embora houvesse também casos de expulsão de colonos nessas fronteiras agrícolas por abandono pelos governos.

 

O Brasil continua com débito histórico com a população na questão fundiária. As migrações internas no Brasil de uma região para outra em busca de uma vida possível indicaram a carência de políticas públicas para assegurar o acesso a terra no local de origem e meios para a exploração. A partir de 1950, o abandono do campo em várias regiões do país, em parte, residiu no atraso estrutural deste, com destaque para o modo de produção pré-capitalista a determinar condições socioeconômicas de grande dependência sem garantias de respeito à legislação trabalhista, como no caso dos trabalhadores volantes (bóias-frias) no interior do Estado de São Paulo. Outro fator de deslocamento forçado de pessoas da região de origem é a construção de grandes barragens, quando os habitantes das áreas inundadas não conseguem indenizações adequadas para recuperar suas formas originais de vida.

 

O poder de atração de centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, como solução individual para suprir as carências nos locais de origem, não resolveu as expectativas dos migrantes. Nessas metrópoles a situação de falta de acesso a terra até para moradia reproduz as dificuldades criadas pelo sistema dominante da especulação imobiliária, no caso, urbana e pela ausência de políticas públicas apropriadas para recepcioná-los, agravada pelo impacto da globalização econômico-tecnológica neoliberal que foi limitando as possibilidades de adequação às novas exigências dos postos de trabalho, tendo que assumir os trabalhos menos valorizados nas cidades. Muitos migrantes nas grandes metrópoles, por falta de acesso a terra para moradia, ficam sujeitos a se fixar em espaços reduzidos, as favelas, verdadeiros guetos urbanos.

 

Diante das pressões do poder econômico e político sobre os pequenos espaços ocupados por moradores no campo e com difícil acesso ao sistema de Justiça, principalmente diante de ameaças e agressões a populações na implantação de projetos de hidrelétricas, foi organizado o Movimento dos Atingidos por Barragens, na década de 1980 de âmbito local e regional, transformado mais tarde em organização nacional para a defesa dos direitos dos atingidos, antes, durante ou depois da construção dos empreendimentos.

 

Em relação aos trabalhadores rurais, as dificuldades do acesso a terra e sua manutenção geraram conflitos agrários, onde a disputa por direitos foi causa de assassinatos de pessoas a mando de grandes fazendeiros. A espoliação, por motivos vários, da posse da terra e de seu cultivo para milhares de pessoas, que antes viviam da agricultura, gerou insegurança individual e levou à organização do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST, em 1984, no 1º Encontro Nacional de Trabalhadores Sem Terra, no Paraná, levando em conta também o aprofundamento das desigualdades sociais no país durante os governos militares. Apesar de inserido na Constituição Federal de 1988 o requisito de cumprimento da função social da propriedade da terra, na maioria das vezes, prevalecem os interesses da especulação imobiliária rural, da grilagem de terras, sobre os direitos trabalhistas. Após a promulgação da Constituição, dados fornecidos pelo MST e pela Pastoral da Terra revelam na década de 1990 que cerca de oitenta mil trabalhadores no Brasil trabalhavam no campo na condição de escravos, isto é, sem remuneração e sem condições de abandonar o lugar de trabalho. A questão agrária, geradora de enormes desigualdades sociais, continua sendo o maior obstáculo econômico, social, político e ético para o desenvolvimento social do Brasil e, por consequência, para o seu desenvolvimento econômico.

 

São desalentadores os dados mais recentes do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística sobre a utilização das terras na área rural. O Censo Agropecuário de 2017 na comparação com o Censo de 2006 apresenta aumento da concentração de terras na área rural, com quase metade de toda a área produtiva no Brasil ocupada por apenas 1% dos proprietários de grandes fazendas agropecuárias; tendência de diminuição das pequenas propriedades (até 10 hectares), sendo apenas 2,3% das terras para a agricultura familiar, com encolhimento de postos de trabalho, redução dessa forma de agricultura que beneficia diretamente o acesso ao alimento na mesa do brasileiro, com elevação no preço para o consumidor final. Aumento do uso de agrotóxicos pelo agronegócio em 20,4%, impactando mais a saúde pública, além do progressivo aumento de aprovação dessas substâncias pela ANVISA a partir de 2018. Perda de postos de trabalho no campo para cerca de 1,5 milhão de pessoas, considerando a diferença entre a redução de 2,2 milhões de trabalhadores na agricultura familiar e o aumento de 702 mil pessoas no setor do agronegócio.

 

Em relação às terras públicas, faltou o cumprimento do artigo 51 do Ato das Disposições Transitórias da CF de 1988 no prazo de três anos para a revisão, por uma comissão mista, de todas as doações, vendas e concessões de terras públicas, com área superior a três mil hectares, realizadas entre janeiro de 1962 e 31 de dezembro de 1987. O Brasil possui ainda 47% de terras públicas sob o controle do Estado, sendo que 10% do território brasileiro é terra pública sem destinação, ou seja, não é terra indígena, nem unidade de conservação, nem assentamento da reforma agrária. Percebe-se uma simbiose entre o interesse generalizado da cadeia do agronegócio pelo avanço do mercado de terras – em especial, sobre as terras da região Amazônica — e o atual governo federal, excluindo, novamente, a população dessas terras públicas.

 

Persiste a dificuldade de acesso a terra e continua o “sistema de capitanias hereditárias” sob a denominação de agronegócio. A maioria da população brasileira trabalha, produz, paga impostos e mantém acesa a esperança de ser reconhecida sua cidadania neste Brasil continental com um pedaço de terra que considere seu. A progressiva negação do acesso ao solo para a maioria do povo brasileiro retarda o imenso sonho coletivo de criação de uma Nação, por falta do reconhecimento real como “filhos deste solo” pela “mãe gentil, Pátria amada”

 

Fonte: https://dowbor.org/2021/10/dos-filhos-deste-solo-es-mae-gentil-patria-am...

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/214007?language=en
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