Contra a privatização da água

Água: fonte de vida ou fonte de lucro?

Importa reconhecer que a água não é um bem econômico como qualquer outro. Ela está tão ligada à vida que deve ser entendida como algo vital e sagrado. A vida não pode ser transformada em mercadoria.

16/07/2021
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Hoje há duas questões maiores que afetam toda a humanidade: o aquecimento global e a crescente escassez de água potável. Ambas obrigam a profundas mudanças no nosso modo de viver, pois podem produzir um colapso de nossa civilização e afetar profundamente o sistema-vida.

 

Atenhamo-nos à questão da água, cobiçada pelas grandes corporações para privatizá-la e lucrar enormemente. Ela pode ser motivo de guerras como de solidariedade social e cooperação entre os povos. Já se disse que se as guerras do século XX eram por petróleo, as do século XXI serão por água potável. Não obstante isso, ela pode ser referência central para um novo pacto social mundial entre os povos e governos em vista da sobrevivência de todos

 

Consideremos os dados básicos acerca da água. Ela é extremamente abundante e ao mesmo tempo escassa.

 

Existe cerca de um bilhão e 360 milhões de km cúbicos de água na Terra. Se tomarmos toda essa água que está nos oceanos, lagos, rios, aquíferos e calotas polares e distribuíssemos equitativamente sobre uma superfície terrestre plana, toda a Terra ficaria mergulhada na água a três km de profundidade. 97% é água salgada e 3% é água doce. Mas somente 0,7% desta é diretamente acessível ao uso humano. Destes 0,7, 70% vão para a agricultura,22% para a indústria e o restante para o uso humano e a animal.

 

A renovação das águas é da ordem de 43 mil km cúbicos por ano, enquanto o consumo total é estimado em 6 mil km cúbicos por ano. Há, portanto, superabundância de água mas desigualmente distribuída: 60% se encontra em apenas 9 países, enquanto 80 outros enfrentam escassez. Pouco menos de um bilhão de pessoas consome 86% da água existente enquanto para 1,4 bilhões é insuficiente (em 2020 serão três bilhões) e para dois bilhões, não é tratada, o que gera 85% das doenças constatáveis. Presume-se que em 2032 cerca de 5 bilhões de pessoas serão afetadas pela crise de água.

 

O problema não é a escassez de água mas sua má gestão e distribuição para atender as demandas humanas e dos demais seres vivos.

 

O Brasil é a potência natural das águas, com 13% de toda água doce do Planeta perfazendo 5,4 trilhões de metros cúbicos. Apesar da abundância, 46% dela é desperdiçada, o que daria para abastecer toda a França, a Bélgica, a Suíça e o Norte da Itália. Carecemos ainda de uma cultura da água.

 

Por ser escassa, a água doce se tornou um bem de alto valor econômico. Como passamos de uma economia de mercado para uma sociedade de marcado, tudo se transforma em mercadoria. Em função desta “grande transformação”(Karl Polaniy) verifica-se hoje, uma corrida mundial desenfreada para privatizar a água e ter grandes lucros. Assim surgiram as empresas multinacionais como as francesas Vivendi e Suez-Lyonnaise, a alemã RWE, a inglesa Thames Water e a americana Bechtel, entre outras. Criou-se um mercado das águas que envolve mais de 100 bilhões de dólares. Ai estão fortemente presentes a Nestlé e a Coca-Cola, buscando comprar fontes por toda a parte no mundo.

 

O grande debate hoje se trava nestes termos: A água é fonte de vida ou fonte de lucro? A água é um bem natural, vital, comum e insubstituível ou um bem econômico a ser tratado como recurso hídrico e como mercadoria?

 

Importa, de saída, reconhecer que a água não é um bem econômico como qualquer outro. Ela está tão ligada à vida que deve ser entendida como algo vital e sagrado. A vida não pode ser transformada em mercadoria. É um dos bens mais excelentes do processo da evolução e um dos maiores dons divinos. Ademais, a água está ligada a outras dimensões culturais, simbólicas e espirituais que a tornam preciosa e carregada de valores que em si não têm preço.

 

Para entendermos a riqueza da água que transcende sua dimensão econômica, precisamos romper com a ditadura da razão instrumental-analítica e utilitarista, imposta à toda a sociedade. Esta vê a água como mero recurso hídrico com o qual se pode fazer negócios. Só atende a finalidades e utilidades. Mas o ser humano tem outros exercícios de sua razão. Há a razão mais ancestral, sensível, emocional, cordial e espiritual. Este tipo de razão vai além de finalidades e utilidades. Esta razão está ligadas ao sentido da vida, aos valores, ao caráter simbólico ético e espiritual da água.

 

Nesta perspectiva, a água comparece como um bem comum natural, como fonte e o nicho de onde há 3,8 bilhões de anos surgiu a vida na Terra. A água é um bem comum público mundial. É patrimônio da biosfera e vital para todas as formas de vida. Não o existe vida sem a água.

 

Obviamente, as dimensões de água como fonte de vida e de recurso hídrico não precisam se excluir, mas devem ser retamente relacionadas. Fundamentalmente a água pertence ao direito à vida. A ONU declarou no dia 28 de julho de 2010 que a água limpa e segura bem como o saneamento básico constituem um direito humano fundamental.

 

Mas ela demanda, sim, uma complexa estrutura de captação, conservação, tratamento e distribuição, o que implica uma inegável dimensão econômica. Esta, entretanto, não deve prevalecer sobre a outra, ao direito, mas deve tornar a água acessível a todos.

 

Deve-se garantir a todos gratuitamente pelo menos 50 litros de água potável e sã. Cabe ao poder público junto com a sociedade organizada criar um financiamento público para cobrir os custos necessários para garantir esse direito de todos. As tarifas para os serviços devem contemplar os diversos usos da água, se doméstico, se industrial, se agrícola, se recreativo. Para os usos na indústria e na agricultura, evidentemente, a água é sujeita a preço.

 

A visão predominante mercadológica, distorce a reta relação entre água como fonte de vida e água como recurso hídrico. Isso se deve fundamentalmente à exacerbação da propriedade privada que faz com que se trate a água sem o sentido de partilha e de consideração das demandas dos outros e de toda a comunidade de vida. É muito débil ainda, o princípio da solidariedade social e da comunidade de interesse e do respeito pelas bacias hidrográficas que transcendem os limites das nações como ocorre, por exemplo, entre a Turquia de um lado e a Siria e o Iraque do outro, ou entre Israel de um lado e a Jordânia e a Palestina do outro ou mesmo entre os USA e o México ao redor dos rios Rio Grande e Colorado.

 

Para discutir todas estas questões vitais criou-se em 2003 em Florença na Itália o Fórum Mundial Alternativo da Água. Aí foi proposta a criação de uma Autoridade Mundial da Água. Ela seria uma instância de governo público, cooperativo e plural para tratar da água a nível das grandes bacias hídricas internacionais e de sua distribuição mais equitativa segundo as demandas regionais.

 

Paralelamente, formou-se uma articulação internacional em vista de um Contrato Mundial da Água. Como inexiste um contrato social mundial, poderia se elaborar ao redor daquilo que efetivamente une a todos que é a água, da qual depende a vida das pessoas e dos demais seres vivos. Semelhantemente agora com a intrusão do Covid-19, urge um contrato mundial de salvaguarda da vida humana para além de qualquer soberanismo, visto como algo ultrapassado, de outro tempo histórico.

 

Função importante é pressionar os Governos e as empresas para que a água não seja levada aos mercados nem seja considerada mercadoria. Importa incentivar a cooperação público-privado para impedir que tantos morram em consequência da falta de água ou em consequência de águas maltratadas.

 

Diariamente morrem 6 mil crianças de sede e cerca de 18 milhões de meninos/meninas deixem de ir para a escola porque são obrigadas a buscar água a 5-10 km de distância

 

Importantíssimo é preservar as florestas em pé e reflorestar o mais possível. São elas que garantem a permanência da água, alimentam os aquíferos além de amenizar o aquecimento global pelo sequestro do dióxido de carbono e a produção de oxigênio vital.

 

Uma fome zero mundial, preconizada há anos pelas Metas do Milênio da ONU deve incluir a sede zero, pois a água é alimento e não há nada que possa viver e ser consumido sem a água.

 

Por fim, a água é vida, geradora de vida e um dos símbolos mais poderosos da vida eterna, já que Deus aparece como vivo, o gerador de toda vida e fonte infinita de vida.

 

- Leonardo Boff, ecoteólogo e escreveu O doloroso parto da mãe Terra:um sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social, Vozes , 202.

 

https://leonardoboff.org/2021/07/15/agua-fonte-de-vida-ou-fonte-de-lucro-contra-a-privatizacao-da-agua/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/213103?language=en
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