Sofremos de uma doença incurável chamada esperança

30/11/2020
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Equipo de salud pública para la eliminación de las “cuatro plagas”, China, 1958.
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O nível total de endividamento global está agora em astronômicos 277 trilhões de dólares, um aumento de 15 trilhões desde 2019. Esse montante é equivalente a 365% do Produto Interno Bruto (PIB) global. O fardo da dívida é maior nos países mais pobres, onde defaults causados pela recessão decorrente da pandemia começaram; o caso da Zâmbia é o mais recente.

 

Os vários programas para suspender os pagamentos do serviço da dívida – como a Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida do G20 – e os vários programas de auxílio – como por meio da Iniciativa de Assistência Financeira e Alívio da Dívida do Fundo Monetário Internacional (FMI) – certamente serão insuficientes. O pacote do G20 cobriu apenas 1,66% dos pagamentos da dívida, uma vez que fracassou em reunir credores privados e multilaterais em seus acordos.

 

O peso da dívida é catastrófico para os países que simplesmente não têm capacidade de sanar suas obrigações, sobretudo durante a atual recessão. No mês passado, Stephanie Blankenburg, da Unctad, disse ao Instituto Tricontinental de Pesquisa Social que “as reduções de dívidas nos países em desenvolvimento mais vulneráveis serão inevitáveis, e todos reconhecem isso, mas a questão é em que termos isso vai acontecer”.

 

O FMI convoca os países a fazer mais empréstimos, uma vez que as taxas de juros são geralmente baixas. Isso nos leva a outra questão importante: o que os governos deveriam fazer com os empréstimos? O que o impacto da pandemia nos mostrou é que os países com um sistema de saúde pública robusto – incluindo um número significativo de profissionais e instalações bem equipadas – foram capazes de frear melhor a cadeia de transmissão do que países que sucatearam os sistemas de saúde pública.

 

Visto que este é um fato amplamente reconhecido por todo o espectro político, caberia aos países gastar boa parte desse novo dinheiro na reconstrução de seus sistemas de saúde pública. Mas não é isso que está acontecendo.

 

É uma boa notícia que agora existam vacinas candidatas de uma série de empresas e países, incluindo duas que utilizam a tecnologia RNA – Pfizer (EUA) e Moderna (EUA) -, bem como a Sputnik V (Gamaleya – Rússia) e a CoronaVac (Sinovac – China). Estudos dessas e de outras candidatas mostram resultados positivos, o que aumenta a esperança de que em breve teremos alguma vacina disponível.

 

Cientistas, porém, estão preocupados com as afirmações feitas por empresas farmacêuticas privadas, por meio de declarações à imprensa, mas sem tornar públicas as descobertas de seus ensaios clínicos. Algumas dessas questões incluem se as vacinas previnem a infecção, a mortalidade, a transmissão e, finalmente, qual seria a duração da proteção.

 

É desanimador ver o “nacionalismo vacinal” eclipsar a esperança em torno do desenvolvimento de uma vacina. Os países ricos, com 13% da população mundial, já garantiram 3,4 bilhões de doses das vacinas potenciais; o resto do mundo tem apenas pré-reservas de 2,4 bilhões de doses. Os países mais pobres com população superior a 700 milhões de pessoas não têm acordos para a vacina.

 

Eles dependem da vacina Covax, desenvolvida em parceria entre a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Vaccine Alliance (Gavi) e a Coalition for Epidemic Preparedness Innovations (Cepi). A Covax tem acordo para garantir cerca de 500 milhões de doses, o que seria suficiente para vacinar 250 milhões de pessoas e cobrir cerca de 20% da população dos países mais pobres. Em contraste, os EUA, sozinhos, fizeram acordos para comprar doses suficientes para cobrir 230% de sua população e poderiam, eventualmente, controlar 1,8 bilhões de doses (cerca de um quarto do suprimento mundial de curto prazo).

 

A Índia e a África do Sul fizeram uma proposta razoável à Organização Mundial do Comércio (OMC) para que se renuncie aos direitos de propriedade intelectual em relação à prevenção, contenção e tratamento da covid-19; isso significaria uma suspensão do Acordo sobre Aspectos do Direito de Propriedade Intelectual Relacionado ao Comércio (Trips).

 

A maioria das nações mais pobres está defendendo o acesso equitativo e acessível a medicamentos e produtos médicos durante a pandemia, o que a OMS tem apoiado dentro do conselho dos Trips na OMC. Tal proposta, no entanto, foi rechaçada pelos EUA, Reino Unido, Japão e Brasil, que apresentam o argumento ilusório de que a suspensão dos direitos de propriedade intelectual durante a pandemia sufocaria a inovação.

 

Na realidade, alguns dos grandes produtores (Pfizer, Merck, GlaxoSmithKline e Sanofi) monopolizam o desenvolvimento de vacinas que muitas vezes são produzidas com subsídios públicos (a Moderna, por exemplo, recebeu 2,48 bilhões de dólares em fundos públicos para a vacina). A inovação em áreas como a farmacêutica costuma ser financiada com recursos públicos, mas os resultados se tornam propriedade privada.

 

Em 14 de maio, 140 líderes mundiais assinaram um compromisso que exigia que todos os testes, tratamentos e vacinas tivessem a patente livre e que fossem distribuídas de forma justa e sem custo para as nações mais pobres. Vários países, incluindo a China, aderiram a essa abordagem. A ideia é que a fórmula para uma ou mais vacinas possa ser disponibilizada em um site público e que os governos possam orientar suas empresas farmacêuticas públicas para distribuir as doses em seus países gratuitamente ou por um preço acessível, ou ainda que as empresas do setor privado produzam as vacinas a preços acessíveis.

 

A necessidade de diversificar a produção ocorre porque simplesmente não há capacidade logística suficiente para transportar as vacinas pelo mundo (levando em consideração a necessidade de mantê-las a baixíssimas temperaturas). A questão da capacidade farmacêutica do setor público é muito premente, já que nas últimas cinco décadas o FMI pressionou os países a privatizarem o setor público e a depender de um punhado de farmacêuticas multinacionais. É hora, afirmam os chefes de governo que assinam o documento, de reverter essa tendência e reconstruir a produção farmacêutica no setor público.

 

Do jeito que as coisas estão indo, dois terços da população mundial não terá uma vacina antes do final de 2022.

 

A luta entre o “nacionalismo vacinal” e a “vacina popular” espelha a luta entre o Norte e o Sul em relação a questões de dívida e a diversas áreas do desenvolvimento humano. Recursos preciosos precisam ser destinados para testes, rastreamento e isolamento de modo a frear a cadeia de transmissão do vírus; a infraestrutura de saúde pública precisa ser construída, incluindo o treinamento de profissionais de saúde que aplicarão a injeção de duas doses em bilhões de pessoas; é também necessário garantir recursos ​para a construção da produção farmacêutica regional. Por fim, é necessário que o dinheiro seja usado no auxílio imediato para as pessoas, incluindo rendaalimentação e proteção social contra a violência patriarcal.

 

Conversando com médicos e cientistas como Yogesh Jain e Prabir Purkayastha sobre a vacina, me lembrei de uma visita em 2002 à Palestina, organizada por Mahmoud Darwish para escritores como Wole Soyinka, José Saramago e Breyten Breytenbach, e então os saudou com esta reflexão sobre a esperança:

 

“Temos uma doença incurável: esperança. Esperança na libertação e independência. Esperança em uma vida normal, na qual não somos heróis nem vítimas. Esperança de que nossos filhos possam ir com segurança à escola. Esperança de que uma mulher grávida dê à luz um bebê vivo no hospital, e não uma criança morta em frente a um posto de controle militar; esperança de que nossos poetas vejam a beleza da cor vermelha nas rosas, e não no sangue; esperança de que esta terra tome o seu nome original: a terra do amor e da paz”.

 

O Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino é 29 de novembro. Nós, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, afirmamos nosso afeto e solidariedade com a luta dos palestinos pela emancipação. Queremos registrar um apelo pela libertação de todas as presas e presos políticos palestinos, incluindo Khitam Saafin, presidenta do Comitê da União de Mulheres Palestinas, e Khalida Jarrar, líder da Frente Popular pela Libertação da Palestina. As cadeias onde Israel aprisiona palestinos são palco de surtos devastadores de Covid-19.

 

Physicians for Human Rights – Israel [Médicos pelos Direitos Humanos – Israel] escreveu uma nota curta no The Lancet chamada Combatendo a Covid-19 no território palestino ocupado. Eles descrevem os esforços dos dedicados profissionais de saúde palestinos “prejudicados pelas restrições únicas enfrentadas pelo sistema de saúde palestino”. Isso inclui a separação entre Jerusalém Oriental, Faixa de Gaza e Cisjordânia, as “restrições que Israel impõe”, e o aprisionamento de toda a população palestina. Os três milhões de palestinos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental têm acesso a apenas 87 leitos de terapia intensiva com ventiladores (e números muito mais baixos para os dois milhões de palestinos em Gaza), enquanto Israel impõe uma crise de fornecimento de água e eletricidade aos palestinos.

 

A situação é desesperadora; luta e esperança é a vacina.

 

Edição: Rebeca Cavalcante

 

https://www.brasildefato.com.br/2020/11/30/sofremos-de-uma-doenca-incuravel-chamada-esperanca

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/209995?language=es
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