A geopolítica mundial depois de Trump

Vivemos um mundo em transição. Biden ajudará nessa transição, a que se aceite este novo mundo multipolar?

17/11/2020
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Joe Biden e Donald Trump
Foto: Reuters
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Dizem os mais prudentes que devemos esperar um pouco a finalização das apurações das eleições para comentarmos os desdobramentos que elas possam vir a ter. No caso dos EUA, esses desdobramentos são mundiais. Pretendo abordar, com este pequeno ensaio escrito no “olho do furacão”, três aspectos: 1. Equívocos de parcelas de esquerda em achar que ambos os candidatos eram iguais; 2. Razões pelas quais Donald Trump perdeu[1]e 3. O que fará Biden.

 

Introdução

 

Quero iniciar este ensaio com uma crítica profunda aos/às companheiras e camaradas que insistem em dizer que “os dois candidatos são farinha do mesmo saco”, e ambos não prestam. O lado oposto desse tipo de avaliação é que Biden fará mudanças tão profundas que parecerá até um revolucionário (sic).

 

Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar, como diz o dito popular. Ambos os posicionamentos, de meu ponto de vista, equivocam-se e acabam sendo antidialéticos, pois enaltecem ao extremo tanto qualidades quanto defeitos, de forma que acabam por incutir essa concepção equivocada na consciência de parte do eleitorado.

 

Na verdade, ambas as concepções jogam na antipolítica, pois levam ao desânimo com relação à participação no processo eleitoral, justamente em um país como os EUA, onde o voto não é obrigatório e, mesmo quando se quer votar, é preciso registrar-se antecipadamente. Jogam na apatia do eleitorado. Partem de princípios que pequenos avanços na política de nada adiantam.

 

Ensinei Ciência Política na Universidade por mais de duas décadas, bem como Sociologia, que tinha o conteúdo marxista. Quando debatíamos concepções e definições de “Estado”, eu sempre indagava aos/às alunos/as: O que dá o caráter e o conteúdo de um Estado? 

 

A resposta, além de jamais ser simples, não poderia ser dada apenas pela clássica afirmação – correta na essência – de a classe social é que ocupa o seu aparelho. Mas não só isso. Também as suas tarefas, ações e seus compromissos. Respondendo à pergunta “A favor de quem e contra quem age a máquina do Estado?”, teremos a resposta à pergunta sobre o caráter e o conteúdo.

 

Por isso, só a concepção idealista pode assegurar que a vitória de Joe Biden não pode ter, e não terá, nenhum efeito tanto na política interna dos EUA, quanto na geopolítica mundial. Ter interrompido o mandato para a reeleição do neofascista Donald Trump foi um grande alívio não só para o povo estadunidense, mas também para o mundo e a segurança planetária.

 

Ao barrar a reeleição de Trump, barrou-se também o avanço e o crescimento das correntes ideológicas neofascistas que proliferam em todo o mundo na atualidade; que beneficiaram, nessa onda, a eleição do neofacista que nos governa. É preciso que fique claro que comemoramos não a vitória de Biden, mas a fragorosa derrota do neofascista Donald Trump.

 

Não concordar com isso é ser míope na política. É imaginar que apenas um, ou uma, presidente nos EUA de viés socialista poderia significar avanços. É preciso levar em conta a correlação de forças na atualidade, que não nos é favorável, e que pequenos avanços não podem ser jamais desprezados.

 

Por que Trump perdeu as eleições?

 

Eu costumo dizer que o mandato presidencial estadunidense (que alguns dizem “americano”) é de oito anos, em perspectiva de dois períodos de quatro anos, com um processo de consulta plebiscitária após o primeiro período. O povo/eleitores dizem se ele deve prosseguir por mais quatro anos ou ter seu mandato interrompido. 

 

Os Estados Unidos se arvoram como uma “grande democracia”. Demonstrei em ensaio recente que, na verdade, aquilo é um arremedo de democracia[2]. Desde as primeiras eleições, realizadas em 1789, com a posse de Washington em 1790, transcorreram 230 anos. E, nesses mais de dois séculos, ocorreram ao todo 58 eleições (até 2016).

 

Ao todo, 45 presidentes (até 2016) foram eleitos em disputas que tiveram até sete candidatos (como na eleição de 2016), desmentindo o mito de que lá vigora um sistema bipartidário[3]. E, ao contrário do que se imagina, a reeleição não é a regra geral. Apenas 16 foram reeleitos (35%, ou apenas um em cada três tentativas de reeleição, são bem-sucedidos).

 

Há muitas efemérides que merecem ser registradas. Entre elas, oito presidentes não concluíram seus mandatos, dos quais quatro foram assassinados e quatro morreram no curso do mandato. Apenas um renunciou: Nixon. Registre-se que quatro sofreram atentados. Ou seja, dito de outra forma, para quem gosta de trabalhar com números como eu, das 44 pessoas eleitas presidente da maior economia da Terra, 13 (ou 30%, um em cada três) tiveram algum percalço em sua presidência.

 

Registrados esses fatos iniciais, passo agora a enumerar as três principais razões, de meu ponto de vista, que levaram Trump a não amealhar um novo mandato.

 

1. Pandemia – Não tenho dúvidas de duas coisas sobre este item: não fosse a sua eclosão no início de 2020, Trump se reelegeria; e esse tema acabou se tornando o centro dos debates desde fevereiro. De um lado, Trump, tal qual Bolsonaro no Brasil, é um claro negacionista da epidemia e da gravidade da doença Covid-19 (já demonstrei em ensaios anteriores que a sua letalidade é menor que a da AIDS, mas o nível de expansão do contágio é infinitamente maior[4]).

 

Trump pagou nas urnas o preço por sua postura anticiência e seu negacionismo. Colocou o seu país no topo das estatísticas de contágios e de mortalidade[5]. Se considerarmos que no mundo há em torno de 200 países, e todos foram afetados pela pandemia mundial, os EUA representam hoje um em cada cinco contagiados (e são apenas 5% da população da terra), e quase a mesma em relação ao número de mortes. 

 

2. Indisposição com amplos segmentos sociais – Ainda que venha a ter algo próximo de 73 milhões de votos – no momento em que escrevo a apuração ainda não está encerrada –, ele se colocou contra os negros estadunidenses pela sua postura de racista e de supremacista branco. E também com relação ao eleitorado feminino (lá houve também a campanha “Ele Não” com bastante sucesso). Os latinos, em função da ameaça de deportação sumária, devem ter dado ao Biden 70% de votos de sua comunidade[6]. Mesmo entre os judeus, que tradicionalmente votam Democratas, fala-se em mais de 70% da votação. Pelo simples fato de Trump ter defendido apenas Israel e não ter apoiado o processo de paz, de forma que o clima de tensão foi a tônica na Palestina durante o seu mandato.

 

3. Isolacionismo mundial – Trump não se indispôs apenas com grande parte do eleitorado estadunidense. Em plano mundial, comprou brigas com vários líderes mundiais, em especial com Rússia, China, Irã e os países árabes da Resistência (Iraque, Síria e Líbano). Ele se indispôs até mesmo com sua aliada Ângela Merkel, exigindo que a Alemanha aplicasse pelo menos 2% do seu PIB no orçamento militar e que assumisse mais parcelas no orçamento da OTAN. 

 

De qualquer forma, Biden vencerá por uma margem de mais de cinco milhões de votos populares (e ficará com 306 votos no Colégio Eleitoral contra 232 para Trump) 

 

Isso é uma infinidade de votos. Mulheres, negros, latinos, judeus e tantos outros segmentos. Mesmo sendo misógino e racista – pelo menos a parcela mais politizada da sociedade sabe disso –, ele se apresenta muito forte política e eleitoralmente. O chamado “trumpismo”, mesmo sem Trump, seguirá forte. E da mesma forma, aqui em nosso país, o “bolsonarismo” seguirá forte, pois essa corrente política nada mais é do que o neofascismo e não desaparecerá (estão iludidos os que pensam que a eleição de Biden significará a derrota dessa corrente política conservadora e de extrema-direita.).

 

O que tenho certeza de que Biden não fará

 

Desde já, preciso deixar registrado alguns aspectos em relação aos quais tenho absoluta convicção de que Joe Biden não procederá nenhuma alteração. E volto a dizer – em especial aos e às minhas amigas que insistem em dizer que ambos são a mesma coisa – que por vezes acabo me sentindo o mais moderado dos analistas internacionais de esquerda. Como se eu tivesse alguma ilusão sobre quem é Biden e o que ele representa, apenas pelo fato de achar que ocorrerão algumas mudanças, ainda que nenhuma delas substanciais.

 

Há muitos anos escrevo artigos – e tenho capítulos em meus livros em que tratei disso em maior profundidade – que mencionam a dupla função de quem se elege presidente dos EUA. Primeira: presidente da República propriamente dito, cujos deveres maiores são a de cuidar da Nação e do povo estadunidense. 

 

Segunda: o presidente eleito dos EUA é também chefe de um Império. E, nesse papel, ele tem de cumprir o que determina esse império, dominado pelo complexo industrial-militar. Alguns autores preferem chamar isso de deep state (Estado profundo).

 

Não tenho a menor sombra de dúvida de que Biden não procederá alterações substantivas no sistema capitalista, modelo neoliberal e de financeirizado. Poderão, quando muito, ocorrer mudanças tópicas, pontuais e cosméticas. Biden não foi eleito para destruir o capitalismo, um sistema decrépito que acabará por destruir a si próprio. Ao contrário. Como todos os que o antecederam, ele foi eleito para defender a continuidade desse sistema e, mais que isso, defender os interesses da burguesia estadunidense.

 

É um segredo de Estado a quantidade de bases militares e de soldados estadunidenses espalhados pelos cinco continentes. Estima-se um número de base próximo de mil[7]. Não tenho a menor dúvida de que ele não desmontará praticamente nenhuma (ou algumas poucas e sem importância, ou em países que os EUA fizeram guerras de agressão e perderam, como veremos no bloco seguinte deste artigo).

 

Por fim, Biden foi eleito para seguir defendendo e pregando a hegemonia dos Estados Unidos na política mundial e tudo fará que estiver ao seu alcance para atingir esses objetivos. Portanto, ele não aceitará com facilidade o sistema multilateral (não confundir com multipolar) vigente nas organizações das Nações Unidas[8]. No entanto, sempre digo que o Império do Norte já não consegue mais governar o mundo como antes, ou pelo menos desde a vigência da unipolaridade de 1991 que, em 2021, completará 30 anos de uma Ordem Mundial Unipolar[9].

 

Coisas que tenho certeza de que Biden fará

 

Na linha oposta ao primeiro bloco de questões que levanto neste trabalho, passo agora a enumerar algumas coisas que tenho certeza de que ele fará/realizará, até porque isso consta de seu programa de governo de forma expressa, ou ele falou sobre elas em algum momento de sua campanha, desde que Sanders desistiu da candidatura em 7 de abril de 2020[10].

 

1. Volta ao acordo do clima colocando a agenda ambiental no centro dos debates – Esse foi anunciado em várias ocasiões. O acordo do clima de Paris (chamada COP21, de 12 de dezembro de 2015), entrou em vigor em 21 de abril de 2017, após ter ficado um ano tramitando, até ser ratificado pelos parlamentos dos países que o firmaram. Essa foi a maior convenção para deter o buraco na camada de ozônio, e o aquecimento da Terra, com o consequente derretimento das calotas polares. Biden tem insistido na questão ambiental de forma clara e, no primeiro debate, chegou a afirmar que faria a transição de uma matriz energética derivada de combustíveis fósseis (finitos) para uma matriz derivada de energia limpa[11].

 

Essa Convenção sobre o Clima, ou Acordo de Paris, foi o tratado multilateral que a humanidade melhor conseguiu produzir – ao longo de séculos em que reuniões internacionais ocorrem, talvez a contar da chamada Paz de Westfália de 1648 –, a partir do qual foram dadas as bases para o direito internacional moderno. Pois em 1º de junho de 2017, pouco mais de 45 dias do início da vigência do acordo mundial, o presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou a retirada do seu país desse histórico acordo. Um verdadeiro retrocesso.

 

Nesse sentido – na linha de desfazer tudo o que Trump fez –, não há dúvidas, entre analistas internacionais, de que Joe Biden fará com que os EUA retornem a esse acordo do clima. Isso não é pouca coisa para o conjunto da humanidade. O acordo menciona que, até 2050, os países têm de chegar a 100% de energia limpa e proteção ambiental, bem como em emissão zero de monóxido de carbono e outras partículas poluentes.

 

Não temos dúvidas que, a partir da posse em 20 de janeiro de 2021, a agenda ambiental deverá estar no centro das atenções não só dos EUA, mas também de todos os países do mundo governados por pessoas responsáveis (à exceção, claro, de nosso Brasil, cujo tema ambiental jamais foi a questão central, desde a posse de Bolsonaro em janeiro de 2019; muito ao contrário, nossa Amazônia e nosso Pantanal ardem em chamas).

 

Em seu programa de governo para ações internas nos EUA, ele menciona uma transição, em no máximo 15 anos – meta absolutamente arrojada para os padrões estadunidenses –, será modificada a matriz energética dependente dos combustíveis fósseis (finitos e não renováveis) para uma matriz de energia limpa (eólica, nuclear, marés, solar, biomassa entre outras).

 

Ambientalistas e estudiosos das questões relacionadas com o clima – pelo menos os mais otimistas – jamais previram que essa dependência deixaria de existir antes de pelo menos 30 anos, ou seja, não antes de 2050. Os mais pessimistas falam em 2070. Nesse sentido, é por demais avançado Biden afirmar que em seu próprio país – o mais poluente do mundo e responsável por pelo menos 25% de todas as emissões da Terra – fará essa transição em apenas 15 anos.

 

2. Combate mundial à pandemia – Sob vários aspectos, a gestão Biden não será apenas oposta à de Trump, que na verdade, nada fez com relação ao combate à pandemia. O tema da pandemia de Covid-19 foi o tema central da campanha nos EUA (como é assunto no mundo inteiro ainda em função de sua gravidade). 

 

Biden, em seu programa de governo interno, menciona a contratação de cem mil pessoas (trabalhadores em saúde) para um esforço de “guerra” para vacinar 350 milhões de estadunidenses. Uma medida como essa coloca Biden como provavelmente o mais keynesiano de todos os presidentes daquele país, mais até que o próprio Roosevelt (que governou os EUA de 1933 até 1945).

 

Biden vai retornar os EUA à Comissão Mundial das Vacinas, organismo internacional vinculado à OMS/ONU, que será responsável não só pela distribuição de uma futura vacina para todos os 200 países, como também pela sua repartição de forma a atender pelo menos 70% de uma população de quase oito bilhões de habitantes (que têm de tomar duas doses, inclusive). Além disso, essa comissão mundial acompanha o resultado das pesquisas de quase 200 vacinas em pesquisa no mundo.

 

Lembro que a logística desse transporte de vacinas deverá ser muito complexa, na medida em que as suas doses têm de ficar armazenadas em temperaturas muito baixas. Registro aqui que, quando os EUA saíram dessa comissão, o Brasil em seguida tomou a mesma decisão.

 

Outro aspecto que será completamente oposto ao que Trump vinha adotando é a própria relação dos EUA com a Organização Mundial da Saúde (OMS), um dos principais órgãos multilaterais da ONU, abaixo da Assembleia Geral e subordinada ao Secretariado das Nações Unidas. Trump tinha deixado de pagar a sua cota-parte a essa organização, cujos valores atingem até um quarto de suas receitas gerais.

 

Não bastasse isso, em 7 de julho de 2020, Donald Trump anunciou o início do processo de retirada de seu país da OMS, que deverá ser concluído na mesma data em 2021. Essa decisão, tenho certeza, será imediatamente revertida pelo novo presidente a partir de sua posse. Não só isso. Ele deverá fortalecer esse organismo multilateral. 

 

Registro que, seguindo os EUA, o presidente de nosso Brasil decidiu também deixar de pagar essa cota-parte, e – pasmem – até para com a ONU. Não estranharia se Bolsonaro decidisse se desligar tanto da OMS quanto da OPAS (agora com a presença de Cuba na sua executiva). 

 

Por fim, a questão das vacinas, que virou uma verdadeira guerra[12]. Não sei se fui o primeiro a usar esse termo, mas seguramente estou entre os primeiros. Uma verdadeira guerra se trava neste momento no mundo, uma espécie de corrida para ver quem chega primeiro para oferecer uma vacina eficaz que imunize a população da Terra contra o coronavírus. 

 

Como já tratei desse tema em diversos outros artigos e ensaios, há duas concepções nessa corrida. Uma que visa exclusivamente o lucro, e que custará uma fortuna e dificilmente estará acessível à maior parte da população da Terra. E outra, para a qual, a vacina deve ser um bem público, acessível a todos e de forma gratuita (os países arcariam apenas com os custos da produção e não pagariam nada por direito de uso). 

 

Isso coloca em rota de colisão as visões chinesa, russa e cubana com as dos EUA e Inglaterra. Nesse sentido, barrar as vacinas provenientes desses países – que alguns seguidores de Bolsonaro chamam de “comunistas” (até a Rússia!) – virou política de Estado e de governo, tanto dos EUA, quanto do Brasil.

 

Não tem sentido discriminarmos uma vacina pela sua procedência (ou nacionalidade, se assim podemos dizer). Não existe vacina chinesa, russa, cubana, inglesa ou estadunidense. Existe vacina. As pessoas, o mundo, a humanidade, querem ser vacinadas e com uma vacina que tenha segurança elevada (a chinesa tem 95% de eficácia, a russa 92% e a estadunidense, da Pfizer, 90%; a de Oxford, da Astra-Zeneca não se sabe ainda).

 

Nesse sentido, a impressão que se tem é de que Biden, que jamais foi um negacionista como Trump, defende a ciência e até já constituiu um Comitê de Cientistas de alto nível para iniciar o combate à pandemia – que não ocorreu até agora nos EUA. Esse Comitê possui, como um de seus membros, até uma médica brasileira.

 

Esse comitê iniciará seus trabalhos a partir da posse de Joe Biden (infelizmente, por ainda não reconhecer a derrota e argumentar com uma fraude eleitoral jamais comprovada, Trump fechou todas as portas para uma transição governamental que poderia ser facilitada). Biden ainda não disse que distribuirá vacinas nos EUA, seja qual for sua procedência, de forma que o que importa é a vacinação em massa (ou pelo menos 70% da população para que se atinja a imunidade completa, ou de rebanho como se diz). Mas, imaginamos que ele não discriminará a origem das vacinas.

 

A seguir, apresento um bloco de análises sobre o que Biden “poderá” ou “podería” fazer, ou seja, não tenho certeza nem de que ele fará, mas também não posso afirmar que não fará. Tudo vai depender não só da vontade e do programa de governo do presidente eleito, mas também de alterações na correlação de forças em plano geopolítico mundial

 

O que Biden poderá vir a fazer

 

1. Sobre o Irã – Não é certo que ele vá suspender as dezenas de sanções impostas de forma unilateral e ilegal à República Islâmica do Irã (ilegal por não terem sido aprovada pelas Nações Unidas). Mas quero abordar a questão do acordo nuclear, assinado em julho de 2015 na gestão Obama, pelo chamado P5 + 1 (membros do CS da ONU e mais a Alemanha). Uma das primeiras medidas tomadas por Trump foi denunciar esse acordo, ou seja, não mais reconhecê-lo, saindo de sua composição. Isso em nada afetou o acordo, que seguiu da forma como estava antes. A meu ver, os EUA nada ganham em ficar de fora desse acordo. Por isso, é provável que eles retornem ao acordo com outros entes internacionais.

 

2. Sanções ilegais e unilaterais – A gestão Trump caracterizou-se pela utilização de sanções, aplicadas aos países que não aceitam as imposições e as regras estabelecidas unilateralmente pelos EUA. Não foi ele quem as inventou, é bem verdade, mas delas ele usou e abusou. São dezenas e dezenas, especialmente contra China, Rússia, Cuba, Coreia Popular, Irã e Síria. Mas não só contra países. Ele também aplicou sanções contra pessoas físicas (autoridades governamentais, ministros) e organizações política e partidárias, como o Partido de Deus Libanês (Hezbolláh). Nesse sentido, Biden poderá ou diminuir a forma de governar com essas sanções e até suspender várias delas contra vários dos países listados.

 

3. A Paz na Palestina – Israel tem sido a “menina dos olhos” da política externa dos Estados Unidos. O Estado Judeu recebe a fundo perdido, todos os anos, três bilhões de dólares. Nos últimos 10 anos, segundo o próprio Donald Trump, esse valor atingiu 38 bilhões. Não há país mais protegido pelo império estadunidense do que Israel (depois dele, vem Arábia Saudita e Taiwan, que não é um país, mas se reivindica como).

 

Como disse em artigos e ensaios e pelo menos em quatro livros que escrevi sobre a Palestina, não há causa mais justa a ser defendida pelos internacionalistas de todos os países, e os que lutam pela igualdade e solidariedade. Eu mesmo milito na solidariedade aos palestinos desde 1982, pelo menos, tendo sido membro de todos os Comitês de Solidariedade a esse povo criados em São Paulo (todos de vida efêmera). 

 

No entanto, há alguns meses, ninguém menos do que o presidente da República Popular da China, Xi Jinping, declarou, com muita ênfase, que a causa palestina é a mais importante no Oriente Médio e no mundo. Isso foi uma atitude excepcional. O presidente do maior país da Terra e da sua maior potência econômica (por poder de paridade de compra) declarar uma coisa dessas é fantástico e contribui imensamente com a luta dos palestinos. 

 

O atual primeiro-ministro, Benjamin Nethanyahú, que governa Israel desde março de 2009 – que completará dentro de alguns meses 12 longos e terríveis anos à frente do governo israelense (é o mais longevo PM de Israel) –, jamais discutiu sobre a paz, de forma séria, com o povo palestino, oprimido e ocupado por Israel desde 1948. A expressão “Processos de Paz”, que foi tratada durante os governos Carter e Clinton, entre outros, jamais foi pronunciada. Ela está fora do dicionário do partido Likud, um dos mais direitistas.

 

Se temos falado que o maior “órfão” político, pela derrota de Donald Trump, é de fato Jair Bolsonaro, há outro que está se considerando profundamente derrotado, ainda que jamais dirá isso em público. Trata-se do primeiro-ministro de Israel, o também neofascista Benjamin Nethanyahú. Após quatro eleições, ele conseguiu estabelecer um acordo de maioria no parlamento, muito precário, com o seu opositor Beni Gantz. Ele ficaria os primeiros 18 meses e Gantz o restante. Se já era frágil a coligação, após a eleição de Joe Biden, ela ficará ainda mais frágil.

 

E registro que não tenho nenhuma admiração por Gantz. Não sei se ele é “pacifista”. Da mesma forma, sei que o compromisso de Biden é, antes de tudo, a defesa incondicional do Estado judeu de Israel. Tal qual a sua vice. No entanto, como já mencionei antes, nem sempre prevalece a vontade pessoal do presidente ou da chefia do Império. Por isso a volta dos “processos de paz” na Palestina está entre as ações e atitudes prováveis a serem adotadas por Joe Biden. Não interessaria aos EUA a manutenção de um clima de tensão no Oriente Médio. 

 

4. Relações diplomáticas com Cuba – Não pretendo contar aqui a história do bloqueio a Cuba, que remonta à década de 1960, nem relatar a quantidade de decretos que impõem sanções à pequenina ilha socialista do Caribe. A maioria das pessoas sabem disso. No entanto, no dia 17 de dezembro de 2014, o então presidente Barack Obama restabeleceu relações diplomáticas com a ilha revolucionária.

 

Em seguida a esse reconhecimento, veio a troca de embaixadores entre os dois países, que ocorreu em julho de 2015. Ambas as embaixadas foram reabertas com pompa e circunstância. E as redes de TVs mundiais deram ampla cobertura. Foram solenidades lindas, inesquecíveis. A bandeira dos EUA foi hasteada na sede da embaixada estadunidense em Havana por marines, em bonita cerimônia.

 

Finalmente, em março de 2016, no último ano de sua gestão, e ano em que Donald Trump foi eleito, Barack Obama visitou Cuba em julho. Passou três dias na capital Havana. Foi recebido, claro, pelo comandante Raúl Castro, presidente do país. Isso foi de uma simbologia imensa. Essa atitude foi saudada por amplos setores da sociedade brasileira, em especial o campo da esquerda (com pequenas exceções, claro).

 

Tudo iria mudar a partir do dia 16 de junho de 2017, pouco mais de cinco meses da posse do neofacista Donald Trump. Em discurso inflamado proferido na Little Havana, reduto de exilados cubanos na cidade de Miami (os cubanos estadunidenses são conhecidos como guzanos), ele disse que iria acabar com a ideologia “depravada” de Cuba (sic), falou das “barbaridades” cometidas pelo presidente Raúl Castro e indicou que “em breve a Ilha passará a ser uma Cuba livre” (sic)[13].

 

Nesse mesmo dia, o presidente dos EUA assinou decreto revogando uma série de dispositivos do acordo anterior. Afirmou que aumentaria os embargos e as sanções e voltaria a proibir quaisquer empresas estadunidenses de negociar qualquer acordo comercial com a Ilha. E que imporia mais restrições ao tráfego de aviões (fretados) e navios. A única coisa que foi preservada do acordo de Obama foi a manutenção da embaixada dos EUA em Havana.

 

Faço esse histórico e incluo esse tema neste bloco deste artigo, afirmando que provavelmente o governo Joe Biden poderá restabelecer o acordo assinado por Obama, e talvez até possa vir a melhorá-lo ainda mais as relações (por exemplo, nunca houve uma linha direta e diária entre as companhias estadunidenses e cubanas de aviação).

 

5. Retirada de tropas – Nunca se soube com precisão o número de bases militares que os EUA mantêm em todo o mundo. Alguns autores mencionam até mil[14]. Tais bases são construídas com o consentimento e autorização de governos títeres do Império. Governos soberanos e independentes jamais cederiam seu território para abrigar tropas de outro país.

 

Pois bem. Ocorre que os EUA exercem o poder de seu Império pela forma de dominação política, ideológica e econômica. Não é e nunca foi pelo sistema de colonização como fizeram por séculos os Impérios de Portugal, Espanha, França e Inglaterra[15]. A mais longeva ocupação que os Estados Unidos perpetraram contra um povo e um país é a do Afeganistão, que em 2021 completará exatos 20 anos. Será que o novo governo estadunidense chamará de volta os seus últimos soldados naquele pobre país, cujo PIB é quatro vezes menor que o da Bolívia, país de apenas 10 milhões de habitantes (US$ 10 bi contra US$ 40 bi)?

 

Trump foi eleito em novembro de 2016 com a promessa expressa de campanha – entre tantas outras que não cumpriu – de que retiraria as tropas do Iraque, da Síria e do Afeganistão. Jamais o fez. Chegou a prometer agora em agosto em campanha, que em dezembro, se reeleito fosse, chamaria as tropas de volta. A pergunta que se faz é: Biden tomará essa decisão? 

 

Por isso, este item consta deste bloco ações que ele poderá (ou não) fazer. A meu ver, é altamente provável que ele retire pelo menos as tropas da Síria. Depois do Iraque e aí, finalmente, as do Afeganistão, onde eles jamais conseguiram estabilizar um governo local. 

 

Imagina-se que, se as tropas estadunidenses saírem, o caos reinará, haverá guerras tribais e os temíveis Talibãs poderiam voltar ao poder. Vamos conferir. O mais importante e o que todos desejam é que ele não faça nenhuma nova guerra contra qualquer país que seja. 

 

6. Relações com a China – Como disse anteriormente, ele foi eleito para ser chefe de um Império Global, que busca a hegemonia e a defesa dos interesses do complexo industrial-militar dos Estados Unidos. Biden precisa garantir o abastecimento dos mais de 20 milhões de barris/dia para rodar a maior economia do mundo. E os EUA não conseguem ser autossuficientes nesse setor.

 

A estratégia de contenção da República Popular da China – por eles chamada de “China Comunista”, mas não é – não foi idealizada por Donald Trump. Ela vem desde os oito anos da gestão de Barack Obama, do Partido Democrata, o mesmo de Biden.

 

Só por esse fato, arrisco dizer que ele não modificará substancialmente a política com relação à China. Mas também é possível que ocorra um certo distensionamento com esse grande país e potência mundial. O mundo só teria a ganhar se isso ocorresse. 

 

Nos EUA tem-se usado muito o termo “desacoplamento” das duas economias, ou seja, que esse país dependa cada vez menos da China. Isso é quase impossível de uma hora para outra. Mesmo em certa quantidade de anos. Por um motivo simples. O déficit da balança comercial entre os dois países, em números arredondados, é de US$ 400 bilhões! Sim, isso mesmo. 

 

A China exporta para os EUA todos os anos em torno de US$ 500 bilhões e só compra deles US$ 100 bilhões. É um déficit gigantesco que, se continuar assim, a cada cinco anos será de um PIB estadunidense, atualmente na casa dos US$ 20 trilhões.

 

A questão que está posta não é tanto comercial, mas até militar. A frota do Pacífico da marinha dos EUA tem presença constante e marcante no que se chama de Mar do Sul da China, que banha pelo menos quatro países: Vietnã, Filipinas, Malásia e Brunei. Todos eles reivindicam parte desse extenso mar, por onde passa um terço do petróleo do mundo e um quarto de toda a pesca comercial do planeta. 

 

Mas não é só por uma questão comercial que o clima de tensão está alto na região. É também pela questão de Taiwan, ilha que pertence à China. Para lá se refugiaram os membros do Kuomintang, que perderam a guerra para o exército popular de Mao Tsé-tung, em 1949. E lá proclamaram uma tal “República da China” (sic). 

 

Essa “República” teve assento nas Nações Unidas em nome do povo chinês por exatos trinta anos. Isso ocorreu entre 24 de outubro de 1941 e 25 de outubro de 1971. Nesse ano, Henry Kissinger visitou secretamente a China, vindo do Paquistão, que representava os interesses dos EUA, quando esses dois países ainda não tinham relações diplomáticas. 

 

A partir desse momento – e não pretendo me alongar em toda essa história de relações diplomáticas entre os dois países –, abriu-se um período de normalização diplomática, até que, com Carter em 1979, finalmente trocaram-se embaixadas. A República Popular da China foi finalmente admitida na ONU, no ano de 1971, após 21 tentativas anteriores frustradas[16].

 

Existe uma escalada militar em toda a região. Os EUA estabeleceram um acordo para a realização de operações navais conjunta com a sua frota do Pacífico, com o Japão e a Austrália, que não são banhados pelo Mar do Sul da China, e com a Índia, do BRICS, mas – como o nosso Brasil – governada por um partido de extrema-direita, e também não é banhada por esse polêmico mar.

 

Existe o problema de Taiwan, conhecida em algumas situações como Formosa. Essa pseudo “República da China” ainda é reconhecida como “país” por 15 países-membro da ONU, incluindo a Santa Sé (Vaticano). A China Popular não mantém relações diplomáticas e menos ainda comerciais com esses países que reconhecem Taiwan.

 

Os EUA, que não reconhecem a ilha como país e tratam de armar a pequena ilha, que dista apenas 200 quilômetros do território continental chinês. Recentemente venderam-lhe US$ 2,4 bilhões em armamentos pesados, em especial aviões-caça. No dia 26 de outubro de 2020, o ministro das relações exteriores chinês, em entrevista coletiva, anunciou que a China imporia sanções às empresas estadunidenses Lockheed Martin, Boeing Defense e Raytheon por terem participado dessas vendas[17].

 

Aqui levanto uma indagação: valerá a pena e compensará a manutenção desse clima de tensionamento com o maior país da Terra, que caminha para ser a maior potência econômica (em PIB per capita) até 2030? Quem ganha com isso? Esse tensionamento poderá resultar em uma guerra real, quente?[18]

 

7. Direitos Humanos – Como venho dizendo – e nas semanas entre 2 e 14 de novembro de 2020, participei de exatos 20 programas ao vivo, em canais e TVs por streaming, cujo tema central foram as eleições dos Estados Unidos (e quando escrevo este artigo, nove dias após as eleições de 3 de novembro, os resultados não haviam sido proclamados de forma definitiva) –, vejo Joe Biden como uma espécie de novo Jimmy Carter, que governou os Estados Unidos entre 1977 e 1981, não conseguiu se reeleger em 1980, pois perdeu para o Republicano de extrema-direita Ronald Reagan. Carter se caracterizou pela defesa dos direitos humanos em toda a América Latina, de forma a enfraquecer as ditaduras que existiam nesta parte do continente americano.

 

A pergunta ainda sem resposta, e que só o tempo responderá é a seguinte: poderá Biden voltar a defender esse tipo de política para o subcontinente? Os vários golpes que presenciamos em nossa região desde 2009 voltarão a ocorrer? Nunca é demais lembrar desses golpes: 2009, Honduras; 2012, Paraguai; 2016 Brasil; 2019, Bolívia. No espaço de 11 anos, quatro golpes ocorreram sob a orientação dos Estados Unidos e sem que as forças armadas precisassem intervir em nenhum deles. Bastaram os engravatados procuradores federais (no Brasil, o caso mais escandaloso é Deltan Dallagnol), e juízes treinados em Washington (como Sérgio Moro), ambos de extrema direita.

 

A América do Sul viverá fortes movimentos populares e é muito provável que, nos próximos meses e anos, vários países antes governados por presidentes progressistas, que hoje encontram-se em mãos direitistas, voltem ao campo popular. Como a Bolívia que, em 8 de novembro de 2020, deu posse a um presidente de um partido socialista, Lucho Arce, do MAS de Evo Morales, que retornou triunfante e nos braços do povo, no dia seguinte à posse. 

 

Vimos os resultados do plebiscito que garantiu uma Constituinte livre, soberana e exclusiva que será eleita em 2021, no Chile. Em seguida ocorrerão eleições no Chile, e o candidato mais forte nas pesquisas é do Partido Comunista Chileno, Daniel Jadue. Ocorrerão eleições para a Assembleia Nacional da República Bolivariana da Venezuela em dezembro de 2020. Parte da oposição de extrema-direita retirou-se do pleito e tudo indica que o Partido do presidente Nicolas Maduro, o PSUV, terá uma esmagadora vitória e fará maioria no parlamento. 

 

Desde o início deste ano, a Argentina voltou para o campo progressista, popular e soberano. Tudo indica que nas eleições equatorianas, mesmo com a exclusão do líder Rafael Correa, poderá ser possível que o campo progressista retome seu protagonismo. Nicarágua e México conseguiram manter-se nesse campo. E outros países mais. O Brasil de Jair Bolsonaro vai ficando literalmente cercado de governos populares, patriotas e progressistas. 

 

Nesse cenário, a indagação é: Que fará Biden com relação a isso? Seguirá patrocinando golpes de Estado, ainda que não armado e não militar? Apoiará partidos de extrema-direita, que defendem exatamente a mais ampla violação dos direitos humanos? Ou adotará a política de Jimmy Carter, que defendeu os direitos humanos? Aqui também só a vida demonstrará e nos dirá a resposta. 

 

Repercussões no Brasil da vitória Democrata

 

Em praticamente todo o tempo de campanha nos Estados Unidos – que não tem limite de tempo para iniciar – falou-se no Brasil no sentido de que a vitória de Biden seria muito ruim para o governo Bolsonaro. Tal qual o contrário, que a vitória de Trump o fortaleceria. 

 

No entanto, presenciamos nos últimos meses situações verdadeiramente absurdas e jamais vistas em qualquer lugar do mundo, em qualquer país soberano. Em várias entrevistas concedidas à imprensa (da forma estabanada que Bolsonaro adota), ele mencionou de forma clara e inequívoca a sua preferência e torcida pela vitória do Republicano nos EUA. E seu filho Eduardo, deputado federal por São Paulo, não só fez campanha aberta pela reeleição de Trump, como usou boné de sua campanha. Nada contra que cada cidadão e mesmo deputado apoie quem ele quiser nas eleições em outros países. 

 

Mas, a verdade é que é muito estranho um parlamentar de um país fazer campanha para um dos candidatos a presidente de outro país. Neste caso, não se trata de “qualquer” país, mas da maior potência econômica e militar da Terra. No entanto, o caso mais grave é que esse parlamentar paulista, chamado Eduardo Bolsonaro, é filho do presidente, e é o presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados.

 

As coisas ficaram ainda piores. Nos dias seguintes às eleições nos Estados Unidos, quando as projeções já apontavam de forma irreversível a vitória da oposição Democrata com Biden, Bolsonaro e seu filho apoiaram em público, em um mesmo dia e por várias vezes, a candidatura Republicana. 

 

Chegou a dizer que “torce muito” pela sua vitória. Mais que isso: disse que a esperança é a única que morre. Uma coisa impressionante, um chefe de Estado de um país soberano torcer pela vitória de um candidato específico de outro país, de uma potência. Isso é prova clara e inequívoca da completa subordinação do Brasil aos EUA.

 

Mas pior que isso. Cria-se na diplomacia internacional entre esses dois Estados uma verdadeira saia justa. E haja saia justa, usando essa figura de linguagem popular. Imaginemos o dia em que o Brasil eventualmente precisar pedir uma audiência com o novo presidente dos EUA para tratar de nossos interesses. Como será a reação? A audiência poderá não vir a ser concedida?

 

Espera-se uma verdadeira rota de colisão entre as concepções do Partido Democrata nos EUA e Bolsonaro. Pelo menos em dois aspectos de forma clara: um sobre o clima e outro sobre o meio ambiente. Bolsonaro é visto como um chefe de Estado que devasta florestas e pântanos, como tem o caso da Amazônia e do Pantanal.

 

Esta será uma das principais bandeiras de Biden no plano internacional. Ele mencionou na campanha, e está em seu programa de governo, uma articulação mundial em defesa da Amazônia, criando inclusive um grande fundo de proteção ambiental. Jamais permitiremos a internacionalização da Amazônia, que é dos brasileiros. No entanto, não é ruim que esforços internacionais sejam feitos para a preservação da floresta. 

 

A constante tensão existente com nossa vizinha Venezuela, a maior parceira comercial do Brasil na América do Sul, pode diminuir, ou até mesmo se dissipar, na medida em que seguramente não veremos mais cenas dantescas como a presenciada com a invasão do território nacional pelo secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, que foi até Roraima no dia 24 de setembro de 2020, acompanhado pelo “chanceler” Ernesto Araújo para fazer uma provocação ao país vizinho e amigo.

 

Em algumas poucas ocasiões, o governo Trump indicou o Brasil para alguma função no concerto internacional dos países e das Nações Unidas. Um pequeno apoio e simpatia à entrada do país na OCDE – o clube dos países mais ricos –, bem como apoio para a elevação do Brasil, na OMC, à categoria de país desenvolvido (neste caso inclusive, seria péssimo para nós, pois modificaria muitas facilidades que temos por sermos classificados como “país em desenvolvimento”). 

 

De certo mesmo, só a situação política, nacional e internacional, do governo brasileiro. Ficou muito frágil a sua situação. Ficará cada vez mais claro o seu completo isolamento da comunidade internacional. Mas ficará cada vez mais clara também a completa desmoralização de Bolsonaro, a sua incompetência tanto no enfrentamento da pandemia, quanto na preservação ambiental.

 

Conclusões

 

Segundo minha análise de muitos anos atrás – e dentro de uma perspectiva de construir um pensamento marxista no campo da política e das relações internacionais –, vivemos um mundo em transição. Se a antiga ordem bipolar havia acabado em dezembro de 1991, quando a URSS oficialmente desapareceu, uma nova ordem mundial vem sendo edificada desde então. 

 

Não é foco deste artigo a enumeração de diversos fatos e datas que marcam de forma significativa a decadência do Império estadunidense, de sua pretensa hegemonia mundial e o crescimento de novos polos no rumo de um mundo multipolar.

 

Mas indaga-se: Biden ajudará nessa transição, procurando acelerar e não impor obstáculos a que se aceite este novo mundo multipolar? Ou fará o mesmo que Trump, e dificultará o surgimento de novos polos? Poderá vir a aceitar o comércio internacional em várias moedas e não só em dólar?

 

Esta resposta nem eu, nem qualquer outro analista internacional, está ainda em condições de oferecer ao debate. De minha parte, arrisco algumas opiniões. Tenho certeza de que a direita internacional, o neofascismo, sofreu um duro golpe com a derrota de seu chefe máximo, o maior anticomunista da atualidade, antiglobalização, antimultilarealismo, o sionista cristão, Donald Trump.

 

E tenho uma segunda certeza: a questão ambiental irá para o centro dos debates mundiais e o Brasil ficará ainda mais isolado e acuado em função da posição claramente devastadora defendida pelo governante de turno, também ele um neofascista e anticomunista radical. 

 

Biden terá de tratar de um mundo onde a concentração de renda e de riqueza é cada dia maior; brutal na verdade. Vive-se em uma sociedade 8 x 2 (20% consomem o que 80% produzem) ou até 9 x 1. A exclusão social, a desnutrição, o desemprego, os moradores de rua ou em habitações precárias crescem diariamente. No centro do Império mesmo, jamais se viu tantos moradores de ruas como na atualidade.

 

Fala-se na quarta revolução industrial, que teria como centro a Inteligência artificial, a Internet das Coisas, a Impressão 3D para quase tudo, a Medicina Gênica, entre outras modernidades jamais sonhadas há pouco tempo. Big data? Realidade aumentada? Biologia sintética? 

 

E como fica o trabalho? Como ficam os empregos? Como avançar na robotização quase total de empresas e indústrias, com desemprego em massa, se a esmagadora maioria da população não poderá consumir quase nada do que se produz? Não haverá solução para isso se não pela redução drástica da jornada de trabalho. 

 

Biden deverá enfrentar a maior crise do sistema capitalista em seu mandato. Fala-se no estouro de uma bolha da qual não se sabe exatamente o tamanho. Tudo em títulos podres, derivativos e outros papeis sem lastro e sem valor algum. Economistas falam em três vezes o PIB da Terra – que é de US$ 80 trilhões. Alguns, no entanto, talvez os mais pessimistas, falam em até oito vezes o PIB da Terra, em torno de US$ 640 trilhões em capital absolutamente fictício.

 

Nós, que defendemos sempre o desenvolvimento nacional com valorização do trabalho, temos de tentar responder à seguinte pergunta básica: Será possível voltar a um modelo de capitalismo produtivo, onde a riqueza advenha única e exclusivamente do trabalho produtivo (que produz mais-valor)? É possível se pensar em um capitalismo que não seja financeiro, de cassino, completamente especulativo?

 

Tenho minhas respostas. Não tem mais volta. A forma neoliberal e financeira desse capitalismo atual foi a maneira que a burguesia internacional e suas corporações gigantes espalhadas pelo mundo encontraram para tentar superar a diminuição cada vez maior dos seus lucros. Essa é uma das contradições teóricas apontadas por Marx em sua magistral obra O Capital. Como poderá sobreviver um sistema que visa absolutamente ao máximo lucro, se este vem diminuindo pela média e de forma constante e insuperável?

 

A burguesia já não sabe mais o que fazer, o que inventar, para preservar lucros, riquezas e grandes rendas. Já precarizaram o trabalho em quase todos os países do mundo – à exceção, claro, dos que rumam para o socialismo. Inventaram todos os tipos de ganhos fictícios no setor bancário e nas Bolsas. Mas tudo isso tem um limite. A bolha vai estourar.

 

Será que Joe Biden promoverá alguma nova guerra, como é da tradição dos EUA e dos democratas em geral? Será que podemos vislumbrar uma nova guerra mundial, dentro da linha da chamada Armadilha de Tucídides?[19]

 

Não há previsão sobre o fim da pandemia. Em curto prazo, como se anuncia, não vejo o mundo inteiro sendo vacinado integralmente como é de se esperar para a erradicação do vírus. Não há cura para a doença causada pelo coronavírus, a Covid-19, e por suas várias novas mutações. Isso poderá acelerar o fim do capitalismo e a criação de uma nova ordem?[20]

 

Será Biden o coveiro do Imperialismo estadunidense e do capitalismo financeiro, tal qual Mikhail Gorbachev o foi para o socialismo na URSS? Que mudanças estruturais poderemos perceber – se é que ocorrerão – a partir de 20 de janeiro de 2021 com a posse do novo presidente dos EUA? Vamos acompanhar atentos e aflitos. Tudo ao mesmo tempo. 

 

  [1] Muito antes da finalização das apurações, minhas previsões e projeções indicavam vitória de Biden por 306 votos contra 232 de Trump.

[2] Este ensaio pode ser lido em: <https://bit.ly/2Ir79tF>.

[3] São 45 pessoas, pelo fato de Grover Cleveland, eleito em 1884, não ter sido reeleito em 1888, e eleito novamente em 1892.

[4] Quem se interessar, este ensaio pode ser lido neste endereço <https://bit.ly/3iVT4BP>.

[5] No momento em que escrevo este artigo – 10 de novembro de 2020 às 12h20 –, o site que melhor fornece estatísticas sobre a pandemia, da Universidade de John Hopkins (<https://coronavirus.jhu.edu/map.html>), mostra os EUA em primeiríssimo lugar, com 10.110.552 contagiados, entre 50.913.451 (19,85%). Com relação ao número de mortes, mostra os EUA com 238.251, de um total de 1.263.089 (18,86%).  

[6] Aliás, Biden defendeu no primeiro debate, realizado no dia 29 de setembro de 2020, nos EUA, que legalizaria 11 milhões de imigrantes clandestinos. Um posicionamento bastante corajoso.

[7] Além de centenas de bases, os EUA mantém em torno de 200 mil soldados nas bases e em pelo menos sete países que tem presença, ou como se diz, “coturnos no solo”. Veja aqui a relação deles: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-43438581>.

[8] É preciso registrar que a Assembleia Geral das Nações Unidas não é necessariamente um país, um voto, pois suas decisões não valem na maior parte das vezes. São recomendativas e não impositivas. Diferente de todos os organismos abaixo dela, que são essencialmente multilaterais, ou seja, vigora a política um país, um voto. E, em várias dessas organizações, os EUA vêm perdendo na maioria das vezes.  

[9] Em dezembro de 1991, a bandeira soviética foi arriada no Kremlin e a URSS deixou de existir, encerrando-se o mundo bipolar do pós-guerra.

[10] No primeiro – de apenas dois debates desta vez – ocorrido em 29 de setembro de 2020, Biden abordou esse tema de forma expressa.  

[11] Para mais detalhes sobre essa histórica Conferência, acesse <https://bit.ly/35kkhJF>.

[12] Tratei desse tem em artigo, traduzido inclusive para o inglês e o espanhol, sobre as guerras que os EUA movem contra a China. Veja a sua publicação, em agosto de 2020, em: <https://bit.ly/2Yzb7oO>.

[13] Ver mais informações sobre essa temática em: <https://glo.bo/3pn4n9q>.

[14] Ver dados sobre isso em: <https://bit.ly/38AO7eQ>.

[15] No caso da colonização dos britânicos da Índia, há registros de que os primeiros ingleses chegaram em 1612. A colonização mais intensa mesmo ocorreu a partir de 1858 e perdurou até 1947, por quase cem anos. Ver mais detalhes em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dndia_brit%C3%A2nica>.

[16] Para os que quiserem se aprofundar nesse tema sugiro a seguinte página da Internet: <https://bit.ly/2K4GP91>.

[17] Informações extraídas do portal Defesa Net, um dos mais especializados em armamentos <https://bit.ly/2H1Gtio>.

[18] Publiquei recentemente um artigo intitulado A armadilha de Tucídides e a inevitabilidade de uma guerra dos EUA contra a China, que pode ser lido em: <https://bit.ly/3mGyF5t>.

[19] Vejam neste endereço um dos meus últimos ensaios onde teorizo sobre essa temática levantada pela primeira vez pelo historiador Tucídides de origem grega e desenvolvida pelo Prof. Graham Alisson: https://bit.ly/3mGyF5t.

[20] Também publiquei um longo ensaio sobre essa temática de que mundo emergirá depois da pandemia. Ali questiono que pandemias não criam novas ordens e novas ordenas necessariamente não mudam sistemas econômicos. Pelo menos não até agora. Acessem: https://bit.ly/3mDQ6DL.

 

- Lejeune Mirhan é Sociólogo, Professor (aposentado), Escritor e Analista Internacional. Foi professor de Sociologia e Métodos e Técnicas de Pesquisa da UNIMEP e presidente da Federação Nacional dos Sociólogos – Brasil

 

17 de novembro de 2020

https://www.brasil247.com/blog/a-geopolitica-mundial-depois-de-trump

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/209807?language=es
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