Estados Unidos: bilionários e grandes corporações capturaram a Suprema Corte
- Análisis
As ações de doadores anônimos infestaram as Cortes com um cheiro de podridão que pode trazer danos duradouros ao Judiciário como instituição.
Através de uma articulação cuidadosamente planejada e que já vinha sendo conduzida há duas décadas, os juízes conservadores poderão exercer total controle da Suprema Corte norte-americana pelas próximas décadas. Com a recente indicação e aprovação da juíza Amy Coney Barrett a maioria conservadora foi ampliada para 6 a 3. Um dos pilares que deveria garantir o equilíbrio dos três poderes em um Estado Democrático de Direito está agora com totalmente comprometido.
Por trás deste “golpe político” que se consolidou lentamente estão bilionários e grandes corporações. A predominância dos conservadores trará consequências ainda imprevisíveis, mas que certamente afetarão causas trabalhistas e relacionadas com os direitos civis e humanos, colocando também em risco a atual legalidade do aborto e conquistas do movimento LGBT. No histórico de Barrett consta que ela atuou por três anos no conselho de administração de uma escola privada cristã que discriminava professores gays e lésbicas, e que não aceitava alunos com pais do mesmo sexo.
Nos últimos dias foram constantes as imagens da juíza Barrett sendo sabatinada em audiências no senado norte-americano, como parte do procedimento para ocupar a vaga aberta na Suprema Corte. Tendo sua aprovação previamente assegurada pela maioria Republicana, a juíza pôde se dar ao luxo de ser totalmente evasiva na maioria das respostas, mesmo quando questionada sobre eventuais violações da Constituição do país por parte de Donald Trump.
No meio de tanta desfaçatez por parte de Barrett e da hipocrisia de senadores Republicanos, que aceitaram fazer parte de uma completa farsa que apenas expõe ao mundo as falhas da “democracia” norte-americana, há que se destacar a sabatina conduzida por Sheldon Whitehouse, senador Democrata e ex-procurador geral pelo Estado de Rhode Island.
Whitehouse aproveitou a audiência para reforçar denúncias que dinheiro de origem anônima (dark money) vem sendo utilizado para solapar o sistema democrático nos Estados Unidos. Não é novidade que os lobistas das grandes corporações já possuíam enorme influência no Congresso norte-americano. Entretanto a integridade da Suprema Corte ainda permanecia inquestionável até poucos anos atrás. Agora não mais.
Em discurso de setembro de 2016 no senado (ver transcrição), Whitehouse já citara informações contidas no livro Dark Money, de Jane Mayer, para denunciar bilionários de direita como os irmãos Charles e David Koch (David faleceu em 2019) que estavam interferindo de forma oculta nas discussões sobre mudança climática que ocorriam então no Congresso. Entidades como Donors Trust, Donors Capital Fund e Bradley Foundation foram peças centrais na cadeia promíscua de repasse de fundos para think tanks, grupos de interesse, associações de comércio, fundações e acadêmicos, com o objetivo de contestar evidências científicas que mostravam a relação dos combustíveis fósseis com mudanças climáticas.
Segundo Fact Check, um dos grupos de interesse conservadores mais influentes é Americans for Prosperity (AFP), fundado por David Koch. AFP foi uma força principal de apoio ao movimento ultraconservador Tea Party, na defesa de menores impostos, limitação de gastos do governo e da desregulamentação.
Também partiram do grupo, fortes ataques ao Affordable Care Act, o programa de saúde mais acessível à população implantado por Obama em 2010. Mais de 407 milhões de dólares foram investidos nas eleições de 2012 pela rede de doadores apoiada por Koch, sendo o Obamacare um dos alvos da campanha. Conforme publicado no New York Times em 2013, cerca de 20 milhões de dólares seriam usados em ataques ao Obamacare visando as eleições de 2014. No livro de Jane Meyer é citado que Americans for Prosperity anunciara que iria investir 750 milhões na campanha eleitoral norte-americana de 2016.
Na estrutura da rede de influência dos irmãos Koch, o grupo Freedom Partners (atual Stand Together) faz o papel de banco secreto, encaminhando doações anônimas para promoção de causas conservadoras. Americans for Prosperity foi apenas um dos grupos de intermediação financiados pelo banco secreto dos Kochs. A NRA, National Rifle Association, entidade lobista pró-armas, e a Câmara de Comércio dos Estados Unidos também se beneficiaram.
Em fevereiro de 2020 o senador Whitehouse publicou um extenso artigo no Harvard Law Journal on Legislation (HLJL), que tratou em profundidade como as doações anônimas foram usadas para corromper diversos setores da estrutura do Estado norte-americano.
Para o senador, as corporações manipulam o poder de comando na democracia norte-americana. “Este poder é frequentemente direcionado para que forças corporativas possam subverter o livre mercado em vantagem própria, proteger sua própria capacidade de influência e se esquivar da responsabilidade por danos causados ao público”.
Um exemplo citado no artigo é o da Câmara de Comércio dos Estados Unidos, que gastou 1,5 bilhão de dólares em atividades lobistas nas últimas duas décadas, atuando principalmente na negação climática, de políticas salariais igualitárias, e flexibilizando restrições ao comércio de tabaco. A entidade recebe financiamento do referido banco secreto dos Kochs.
Whitehouse relata ainda que após o “infame” caso Citizens United v. FEC, em que o grupo conservador Citizens United, representando interesses corporativos, acionou na justiça a Comissão Eleitoral (Federal Election Commission, FEC), que impunha limites aos gastos nas campanhas eleitorais. Pela decisão de 2010, a Suprema Corte removeu as restrições de gastos por corporações, sindicatos e organizações sem fins lucrativos nas campanhas de mídia e de propaganda política, abrindo também o caminho para a ocultação da origem dos financiamentos.
Whitehouse denunciou que as corporações “capturaram” as agências reguladoras. Na administração Trump, a Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) passou a ser controlada por pessoal ligado diretamente à indústrias poluidoras. A Secretaria do Departamento Interior, responsável pela administração das terras federais, foi entregue a um lobista da área de petróleo e gás. O resultado não poderia ter sido outro que a concessão de imensas áreas à prospecção de fontes de energia não renovável e poluidoras do meio ambiente, além do atraso na aprovação de projetos de geração de energia eólica.
O senador relata no artigo do HLJL que ao longo de vários anos foi sendo também coordenada a nomeação de juízes pró-desregulamentação, favoráveis às corporações. Este aparelhamento das Cortes (court packing) foi obtido através da ação de grupos de fachada financiados secretamente por uma rede de doadores de direita. Como os juízes federais ocupam cargos vitalícios, “o efeito nefasto será sentido por várias décadas, principalmente porque os juízes, sob um manto de neutralidade, assumem o ônus de adotar decisões impopulares que muitos políticos não teriam coragem de assumir” perante os eleitores.
Judicial Crisis Network (JCN) é uma das organizações envolvidas no encaminhamento de doações anônimas para influenciar o Judiciário, citadas no artigo do HLJL. A interferência pode se dar através de campanhas a favor ou contra os indicados.
No governo Obama, um “doador desconhecido” contribuiu com 17 milhões de dólares para barrar a indicação de Merrick Garland para a Suprema Corte, e apoiar posteriormente a indicação de Neil Gorsuck para a mesma vaga, já na administração Trump. Em 2018, JCN recebeu possivelmente do mesmo doador outros 17 milhões para a intermediação do apoio à indicação de Brett Kavanaugh, que precisou superar acusações de que cometera abusos sexuais na juventude.
Segundo Whitehouse, por trás destas campanhas estava o advogado Leonard Leo, 59, o principal articulador do plano para garantir a indicação de juízes conservadores para as Cortes federais, como também para influenciar no desfecho das causas. Detalhes da estratégia adotada foram relatados pelo jornal The Washington Post em artigo de maio de 2019.
Leo é vice-presidente executivo da Federalist Society, uma influente organização de advogados conservadores e libertários (ultraliberais), com ligações próximas com juízes da Suprema Corte. Ele atua também para solapar candidaturas que não atendam aos interesses defendidos pela Federalist Society.
Leo revelou na entrevista ao Post que conseguira prejudicar a indicação de Robert Bork para a Suprema Corte em 1987. Em 2005 e 2006, liderou as campanhas para apoiar as indicações de John G. Roberts Jr., atual presidente da Corte, e de Samuel A. Alito, este indicado em substituição à candidatura de Harriet Miers, que fora contestada pelo próprio campo conservador. Foram gastos nas duas campanhas cerca de 15 milhões de dólares provenientes de doações anônimas.
Mesmo durante o período Obama, a influência e as conexões políticas de Leo continuaram a crescer. Entre 2014 e 2017 os grupos ligados a Leo arrecadaram mais de 250 milhões de dólares para investir nas campanhas de apoio à políticas conservadoras.
Ainda segundo o artigo do Post, em março de 2016 Leo se reuniu com Trump, quando este estava tentando ser indicado como candidato Republicano à presidência. Foi quando Leo conseguiu apoio de Trump para o objetivo de consolidar o domínio conservador nas Cortes federais. Durante a campanha presidencial, Leo se tornou presidente de três grupos que não têm funcionários nem dispõem de websites: BH Fund, Freedom and Opportunity Fund e America Engaged. Todos os três grupos contrataram a empresa CRC Public Relations, que realizou uma campanha sofisticada de mídia.
Com a eleição de Trump, Leo levantou financiamento para as campanhas de Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh, com a participação dos três fundos presididos por ele. America Engaged doou 1 milhão de dólares para a campanha pró-armas da National Rifle Association. A NRA, por sua vez, repassou no mesmo ano 1 milhão de dólares em apoio à campanha de Gorsuch para a Suprema Corte. Estes exemplos mostram o modus operandi da rede de organizações que vem aparelhando as Cortes federais dos Estados Unidos.
Com a indicação e aprovação de Barret para ocupar a vaga aberta com o falecimento da juíza progressista Ruth Bader Ginsburg, as causas conservadoras ficaram reforçadas. Entretanto, o apoio aos valores “morais e éticos” abraçados pelo conservadorismo constituem apenas a ponta visível do iceberg. Pode-se esperar também que os interesses das grandes fortunas sejam favorecidos em detrimento do cidadão comum nos julgamentos nas Cortes.
O artigo de Sheldon Whitehouse no HLJL detalha como os interesses corporativos atuam para vencer as causas nas Cortes. Após a posse do juiz favorecido pela campanha da rede de influência conservadora, casos estratégicos serão direcionados para este juiz. Durante o julgamento, amici curiae (amigos da Corte) bancados pelos mesmos doadores anônimos irão se manifestar, ecoando estes interesses.
Whitehouse cita um caso em que 13 amici curiae foram financiados por entidades que também estavam financiando a Federalist Society. Em outro caso, 16 fundações de direita doaram cerca de 69 milhões de dólares para grupos pressionarem a Suprema Corte a abolir o Centro de Proteção Financeira ao Consumidor.
O juiz da Suprema Corte, John G. Roberts é mencionado no artigo de Whitehouse por atuar a serviço dos interesses do partido Republicano. Durante a gestão de Roberts à frente da Corte (iniciada em 2005), cerca de 80 decisões polêmicas foram tomadas pelo placar de 5 a 4, em que os votos se deram em bases estritamente partidárias (assistir Whitehouse em vídeo). O voto de minerva coube a Roberts, indicado para a Corte pelos Republicanos.
Estas decisões beneficiaram diretamente grandes corporações e interesses de doadores republicanos, incluindo autorizar gastos ilimitados em eleições, impedir normas de poluição, coibir direitos de votos das minorias, prejudicar o direito de organização sindical e o de trabalhadores acionarem os empregadores na justiça.
As ações de doadores anônimos infestaram as Cortes com um “cheiro de podridão, que pode trazer danos duradouros ao Judiciário como instituição. Cabe ao Congresso adotar passos para deter a erosão da confiança e trazer a Corte de volta ao seu papel constitucional”, acrescentou Whitehouse.
O senador não acredita que seja o caso de limitar o tempo de mandato ou de acrescentar mais assentos à Corte, como sugerido por alguns críticos da atual situação. Para ele, o primeiro passo lógico seria tomar medidas para tornar o Judiciário mais transparente. Whitehouse propõe então cinco ações principais para abrir a caixa preta do Judiciário.
-Introdução de legislação para revelar os grandes doadores que financiam os “amigos da Corte”, de forma a deter a influência dos interesses das corporações.
-Proibição de juízes receberem presentes ou terem despesas de passagem e hospedagem pagas como cortesia: “quando o juiz Scalia morreu em 2016, ele se encontrava hospedado em um alojamento de caça, com suas diárias de 700 dólares sendo bancadas por um empresário que fora favorecido em uma reclamação trabalhista na Suprema Corte”.
-Transparência das agendas de reuniões de juízes com partes litigantes e amici curiae.
-Preservação dos arquivos pessoais dos juízes. Para o senador é de interesse público que tais arquivos sejam transferidos para o Arquivo Nacional após a morte do juiz.
-Regulamentação das doações relacionadas com as indicações de juízes. As despesas com as campanhas devem ser relatadas à Comissão Eleitoral Federal.
Mesmo que Trump perca as próximas eleições, já estão assegurados os interesses da minoria dos 10% mais ricos que detém 77% da riqueza do país. O Congresso norte-americano precisaria aprovar medidas que possam assegurar que as decisões do Judiciário não contribuam para ampliar ainda mais esta discrepância, e que idealmente consigam reduzir as disparidades.
- Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense e responsável pelo blogue Chacoalhando.
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