Qual é o papel do jornalismo na era Covid-19?
- Análisis
Está cada vez mais claro que não haverá uma volta ao normal, como ainda sonham milhões de pessoas. A pandemia mudou, e ainda vai mudar mais, as nossas condições de vida, embora ainda não saibamos se a Covid-19 é apenas um evento ou o início de um processo envolvendo diferentes tipos de vírus transmissíveis.
Apesar destas incertezas, já acumulamos indícios suficientes de que o jornalismo tornou-se ainda mais importante durante a pandemia porque o grande volume de dúvidas sobre a doença levou as pessoas a uma ávida busca por notícias em todos os formatos e plataformas. Se por um lado o jornalismo tornou-se essencial no quotidiano das populações, por outro a avalanche de dados, fatos e eventos publicados na internet gerou muita desorientação e o ambiente favorável à disseminação de notícias falsas, as polêmicas fake news.
É nesta conjuntura que o jornalismo se defronta agora com a complexa tarefa de se repensar como prática social e campo de pesquisa, porque o “novo normal” criado pelo Coronavírus alterou a nossa ecologia informativa de forma irreversível. Não mudou tudo porque muita coisa vai continuar como, por exemplo, a preocupação com a confiabilidade, exatidão, relevância e pertinência das notícias, bem como a interatividade com o público.
Mas a pandemia mostrou claramente a desigualdade no acesso à informação entre ricos e pobres e o desequilíbrio na consulta a fontes ao priorizar informações europeias ou norte-americanas e preterindo dados e fatos do resto do mundo, inclusive da China. Além disso, testemunhamos a deplorável polarização ideológica do noticiário em questões como a da hidroxicloroquina ou da ivermectina.
De todas as mudanças impostas ao jornalismo pela pandemia, algumas são especialmente relevantes e demandam atenção urgente. A primeira delas tem a ver com o fato de que o Coronavírus forçou uma reavaliação na desigualdade entre a informação metropolitana e a gerada em pequenas cidades e comunidades. A trajetória do vírus foi dos grandes conglomerados urbanos para o interior e depois fez o percurso inverso, mostrando que todos dependem de todos. As estratégias de cobertura jornalística ainda não atentaram para este fato, o que altera a tradicional hegemonia das reportagens nas capitais sobre as feitas no interior.
O segundo grande desafio ao jornalismo na pandemia é a necessidade de evitar rotinas pré-concebidas e apoiar-se fundamentalmente em dados. Colocar as teorias em segundo plano e partir para as práticas. Como conhecemos muito pouco o novo Coronavírus, somos obrigados a colher todos os dados possíveis como, por exemplo, contágio, evolução, letalidade, geografia, curas e tratamentos possíveis. São os dados que podem sinalizar novos direcionamentos na cobertura jornalística bem com orientar o trabalho de médicos, gestores e pesquisadores.
A nova relação com a Academia
O terceiro dilema jornalístico é a reflexão sobre as práticas e dados identificados. O registro, organização e categorização deste material é básico para a formulação de hipóteses que, por sua vez, orientarão estratégias editoriais. Esta é a área específica dos pesquisadores do jornalismo na esfera acadêmica, que mais do que nunca depende das práticas desenvolvidas por repórteres, editores e comunicadores.
Mais do que isto, o jornalismo caminha inevitavelmente para um campo multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. Trocando em miúdos: multidisciplinar porque vai necessitar da incorporação de métodos etnográficos e antropológicos na produção de reportagens e documentários investigativos; terá que inserir-se em equipes mistas (interdisciplinares) com sociólogos, antropólogos, economistas, juristas, médicos e sanitaristas, só para citar áreas relacionadas ao combate à Covid-19 (a crescente complexidade dos fatos e eventos impõe a necessidade de compartilhamento de conhecimentos especializados); e finalmente a produção transdisciplinar resultado da produção teórica do jornalismo a partir da prática da multi e interdisciplinaridade.
Um artigo recente de Seth Lewis (*), pesquisador da Universidade de Oregon, Estados Unidos, propõe que a reflexão sobre a pesquisa no jornalismo seja orientada por duas grandes preocupações: objetos e objetivos. Por objetos, ele entende as respostas às perguntas: o que estudamos, como e porque estudamos e para quem fazemos tudo isto? O conceito de objetos tem a ver com dados, fatos, eventos e processos transformados em notícias e reportagens publicadas em veículos de comunicação. Os objetivos são tanto a revisão das agendas acadêmicas em função dos fatores objetivos como a análise das percepções do público sobre o trabalho dos jornalistas e pesquisadores da comunicação.
Agenda de reflexões
A análise dos novos desafios do jornalismo na pandemia é muito mais complexa do que o exposto até aqui neste artigo. Pretendo voltar ao tema em trabalhos futuros para instigar debates sobre questões objetivas como:
a) Substituição das pesquisas de opinião pelo engajamento com o público como forma de identificar necessidades, dúvidas e desejos não expressos por leitores, internautas, ouvintes e telespectadores.
b) Como a generalização da informação online pressiona a integração das narrativas através das diferentes plataformas multimídia.
c) Como a pandemia agravou a crise financeira dos veículos locais justamente na hora em que a informação local se tornou imprescindível para a definição de estratégias editoriais e como insumo para tomadores de decisões na área da saúde;
d) Combate à desigualdade informativa entre ricos e pobres. O desequilíbrio nos fluxos de notícias e no acesso à informação é fatal para o combate à propagação do vírus e redução do número de pessoas contaminadas;
e) Internacionalização dos fluxos de informação. O que acontece na África, por exemplo, é fundamental pra saber por que e como determinados grupos humanos conseguem ser mais resistentes ao contágio do Coronavírus. A globalização jornalística é um insumo importantíssimo para pesquisadores médicos e sanitaristas, como parte da preocupação interdisciplinar;
f) Formação de comunidades de jornalistas e consumidores de notícias como antídoto às fake news e estímulo à checagem de dados e fatos;
As questões reflexivas são muito mais amplas e cito apenas algumas que ocorrem no momento e que necessariamente são incompletas:
a) A redefinição do jornalismo como uma prática social voltada para o interesse público em vez de uma atividade profissional exclusiva enquadrada dentro de um sistema corporativo;
b) Repensar criticamente a predominância da influência ocidental, masculina e anglo-saxã na configuração da cultura jornalística contemporânea;
c) Sistematizar a relação entre jornalistas e pessoas sem formação jornalística na produção de notícias, reportagens, comentários e documentários.
Este texto é fundamentalmente um convite ao debate e à reflexão, pois a pandemia do Coronavírus tornou mais agudos e perceptíveis problemas que o jornalismo já vinha detectando desde o surgimento das novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).
- Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.
Edição 1096, 14 de julho de 2020
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