Uma abordagem interseccional:

Orçamento público e mulheres no Brasil

11/05/2020
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Foto: nodal.am
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 548: Fiscalidad y género en América Latina 16/04/2020

Introdução

 

O Brasil é um país profundamente marcado pelas desigualdades sociais. De acordo com a Oxfam Brasil (2018), seis brasileiros têm riqueza equivalente à dos 100 milhões mais pobres do país, e os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda dos demais 95%. Uma mulher trabalhadora que ganha um salário mínimo mensal levará 19 anos para receber o equivalente ao que um super-rico recebe em um único mês[1].

 

A abordagem interseccional explica, em grande medida, o quadro complexo de desigualdades no Brasil. O conceito de interseccionalidade[2] se refere às múltiplas dimensões da vulnerabilidade, e nos permite entender que os diversos tipos de discriminação não são apenas “somados”, mas interagem entre si de forma a exacerbá-la. Para dar um exemplo de dupla discriminação que sofre uma mulher negra: no caso do atendimento obstétrico, devido a assunções culturais acerca das mulheres negras, pesquisas demonstram que elas esperam mais tempo para serem atendidas durante o trabalho de parto, porque seriam mais “resistentes à dor”[3]. Isso significa que essas mulheres estão vivenciando violações de direitos humanos por serem mulheres – já que a violência obstétrica atinge 25% das mulheres no Brasil – e por serem negras – já que o tipo de violência que sofrem é agravado por sua racialização, e os médicos (em boa parte homens brancos) as atendem de maneira diferente das mulheres brancas.

 

Assim, ao lado das desigualdades de classe e de gênero, o racismo estrutural[4], herdado do modelo colonial no qual o Brasil foi fundado, determina outras camadas da reprodução sistêmica de desigualdades e privilégios. Os negros[5], que no Brasil correspondem a pouco mais de 50% da população total, representam 75% no grupo dos 10% mais pobres[6]; os homicídios atingem mais essa população: morrem, proporcionalmente, 158,9% mais negros que brancos vítimas de violência letal[7]. No mercado de trabalho, as mulheres recebem salários 20% a 40% menores que os homens; o trabalhador negro recebe, em média, 72,5% dos rendimentos do branco[8]. As mulheres estão sub-representadas no Congresso Nacional, são somente 15% dos parlamentares. Nesse mesmo espaço, os negros são 20% e as mulheres negras 2,5%. A taxa de feminicídios do Brasil é a quinta maior do mundo[9]: de 2004 a 2014, o feminicídio contra mulheres brancas caiu 9,8%, e o de mulheres negras subiu 54%[10].

 

O orçamento público também expressa esta desigualdade interseccional. No que diz respeito aos impostos, o nosso sistema tributário produz e reproduz as discriminações de gênero e raça. Estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc (2014) demonstra que os 10% mais pobres da população, compostos majoritariamente por negros e mulheres (68,06% e 54,34%, respectivamente) comprometem 32% da renda com impostos, enquanto os 10% mais ricos, em sua maioria brancos e homens (83,72% e 62,05%, respectivamente) empregam 21% da renda em pagamento de tributos[11]. Até 2014, o orçamento destinado à promoção de igualdade racial e das políticas para as mulheres representava menos que 0,5% do recurso para despesas discricionárias do Orçamento Geral da União (OGU). Com a política de austeridade fiscal iniciada em 2015, o quadro tornou-se ainda mais dramático: sem uma reforma tributária que seja efetivamente progressiva e inclusiva, e com elevados cortes para políticas sociais, as mulheres, sobretudo mulheres negras, têm tido seus direitos progressivamente violados. Uma reforma tributária inclusiva deve considerar as desigualdades interseccionais, ou seja, a forma como a classe, a raça e o gênero interagem entre si na reprodução de políticas fiscais que privilegiam determinados grupos sociais, em especial os homens brancos, e sobrecarrega outros, principalmente as mulheres negras.

 

As mulheres no orçamento público

 

As políticas públicas para as mulheres no Brasil são fruto de conquistas históricas. Ainda no período de transição do regime ditatorial para o democrático, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, em 1985. Pouco depois, as mulheres participaram ativamente da Assembleia Nacional Constituinte, que deu origem à Constituição Federal de 1988, nossa Constituição Cidadã, onde foram previstos os direitos políticos e sociais das mulheres. O Estado passou a ter a obrigação de coibir a violência intrafamiliar, dando as bases para a criação de delegacias da mulher e, em 2006, é publicada a Lei Maria da Penha[12].

 

Em 2003, foi criada a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM, com status de ministério e atribuição de assessorar a Presidência da República na criação de programas voltados para as mulheres em diversos órgãos, implementar políticas em rede para enfrentamento à violência domestica, além de promover a cooperação internacional para a promoção de direitos das mulheres. Esta nova institucionalidade permitiu a alocação de recursos específicos para as mulheres, assim como o seu monitoramento. O Gráfico 1 apresenta a série histórica do orçamento do principal programa orçamentário executado pela SPM, nos Planos Pluri-Anuais (PPAs) 2012-2015 e 2016-2019.

 

Gráfico 1: Execução Financeira do Programa 2016: Promoção da Autonomia e Enfrentamento à Violência, no período 2012 a 2019

 

Fonte: Siga Brasil. *Todos os valores em reais, corrigidos pelo IPCA em março 2020. Elaboração própria.

 

Como é possível observar ver no Gráfico 1, há uma queda brusca da execução financeira do Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Autonomia e Enfrentamento a Violência nos últimos cinco anos: em 2014, os recursos executados (Pago e Restos a Pagar Pagos) foram da ordem de R$185 milhões, em 2019, esse valor caiu para apenas R$46 milhões, uma redução de 75% em termos reais.

 

Em relação ao recurso pago, a situação desta política foi dramática. Em todos os anos analisados, mesmo com recursos autorizados, pouco se gastou efetivamente, como demonstra o Gráfico 1.

 

Para além de uma perda orçamentária continua, merece destaque a dificuldade da SPM de gastar seus parcos recursos. Ao longo dos dois últimos PPAs, em nenhum dos anos, a SPM conseguiu alcançar 50% de execução do recurso autorizado no ano orçamentário vigente. Se considerarmos os recursos Pagos + Restos a Pagar Pagos – ou seja, a soma dos recursos efetivamente pagos do ano orçamentário vigente e os recursos pagos de compromissos contratuais assumidos em anos anteriores – a situação é um pouco melhor, a média de execução foi de 56%.

 

A dificuldade para realizar o gasto pode estar relacionada ao fato de ser uma política pública nova, que depende de uma rede local para se efetivar: é compromisso dos estados e municípios implementar diversas políticas por meio, por exemplo, de convênios com o Governo Federal.

 

A Casa da Mulher Brasileira

 

A Casa da Mulher Brasileira foi idealizada para ser um equipamento público de acolhimento de mulheres em situação de violência e alta vulnerabilidade, que conta com serviços interdisciplinares para encaminhamento das vítimas. Teve sua primeira dotação orçamentária em 2014. Em 2015, ano com maior volume de recursos (em torno de R$100 milhões), pagou somente R$20 milhões, cerca de 20% do recurso, e executou 33% se considerarmos pago + restos a pagar pagos. Desde a criação desta ação, o governo prometeu construir 27 casas, uma em cada estado do país, mas até o momento, somente 3 casas foram construídas, no Distrito Federal, Mato Grosso do Sul e Paraná. Em 2017, esta ação não teve recurso executado, em 2018 executou cerca de R$ 1,5 milhão, e em 2019, novamente, não executou nada. O Gráfico 2 apresenta o orçamento desta ação desde sua criação, em 2014.

 

Gráfico 2 – Execução Financeira da Casa da Mulher Brasileira, 2014 a 2019

 

Fonte: Siga Brasil, março de 2020. *Todos os valores em reais, corrigidos pelo IPCA.  Elaboração própria.

 

Ligue 180

 

O Ligue 180 é uma central telefônica de recebimento de denúncias de violência doméstica, e recebe em média 4 milhões de ligações ao ano. A execução orçamentária deste serviço sempre foi boa, até mesmo porque trata-se de um recurso executado por meio de contrato com empresa terceirizada. No entanto, em 2018 e 2019 esta ação não teve recursos autorizados. O Gráfico 3 apresenta a evolução da execução financeira desta ação nos anos de 2013 a 2019.

 

Gráfico 3: Execução Financeira da Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180, 2013 a 2019

 

Fonte: Siga Brasil, março de 2020. *Todos os valores em reais, corrigidos pelo IPCA. Elaboração própria.

 

Orçamento e Igualdade Racial

 

Em relação aos recursos autorizados para os públicos negro e quilombola, ainda em 2015 os cortes orçamentários que afetaram a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) foram de 56,3% e 49,4%, respectivamente[13]. No entanto, ainda era possível identificar a relação entre política pública, institucionalidade e orçamento, tríade que veio a ruir nos anos que se seguiram.

 

Em 2016, tem início o ataque institucional aos direitos da população negra e quilombola, com a perda de status de ministério da SEPPIR. Posteriormente, foi criado o Ministério dos Direitos Humanos (MDH), que incorporou as agendas de igualdade racial, mulheres e juventude. É neste ano que se aprova a Emenda Constitucional 95, conhecida como Lei do Teto de Gastos, que congela os gastos públicos não financeiros por 20 anos. Em 2017, sob a égide da EC 95, o recurso autorizado do Programa 2034: Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial, é reduzido em 51% em relação ao ano anterior, como pode ser observado no Gráfico 4.

 

Se considerarmos os dois últimos PPAs, em termos reais, em 2019, o recurso deste programa representou somente 8% do recurso autorizado em 2012, ou seja, em oito anos, a redução foi de 92%. O Gráfico 4 apresenta a série histórica, e a incapacidade do Estado em desenvolver uma política de igualdade racial que realizasse progressivamente os direitos da população negra.

 

Gráfico 4: Execução financeira do Programa Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial, 2012 a 2019

 

Fonte: Siga Brasil. *Todos os valores em reais, corrigidos pelo IPCA. Elaboração própria.

 

Considerações finais

 

Romper a lógica machista e racista da sociedade brasileira é um desafio. Uma abordagem interseccional permite que visualizemos outros fatores de reprodução de desigualdades, o que pode auxiliar os gestores na formulação das políticas públicas, alocação de recursos, mas também nas análises sobre o sistema tributário. São diversos impasses para políticas públicas ainda incipientes, que necessitam de estrutura, pessoal e recursos. Além disto, trata-se de políticas que guardam o desafio permanente de formação de gestores e das próprias beneficiárias, pois o desconhecimento sobre as desigualdades de gênero e o racismo institucional ainda são muito fortes.

 

O cenário brasileiro é grave: a construção do novo Plano Plurianual (PPA) 2020-2023 ignorou o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), construído por meio de quatro conferências nacionais, com participação de mais de 2 mil mulheres em cada edição. Não é possível visualizar as prioridades do II PNPM no PPA 2020-2023, e este tampouco apresenta metas e indicadores para monitorar o alcance dos resultados. Para a igualdade racial, o cenário é ainda pior: o novo PPA 2020-2023 simplesmente excluiu os públicos negro e quilombola, partindo da concepção de igualdade sem considerar a diversidade do povo brasileiro e os processos históricos de violação de direitos que impactaram diferentemente os grupos sociais.

 

A Constituição Federal de 1988 e outros mecanismos legais preveem a participação social e a transparência pública como direito da população. Caberá aos movimentos de mulheres e de mulheres negras monitorar os recursos autorizados e defender os seus direitos junto ao Estado brasileiro.

 

- Carmela Zigoni é assessora Política do Inesc.

- Nathalie Beghin é coordenadora da Assessoria Política do Inesc.

 

 

 

[2]  Ver: Kimberlé Crenshaw, nos Estados Unidos e Lelia Gonzales, no Brasil.

[4] O racismo estrutural é o conjunto de práticas institucionais, históricas, culturais e interpessoais que determinam a hierarquia de grupos sociais a partir da construção da ideia de raça, privilegiando alguns grupos e prejudicando outros – por exemplo, a naturalização da posição das mulheres negras como trabalhadoras domésticas. O racismo institucional é a expressão do racismo estrutural nas instituições, públicas e privadas, reforçando a estrutura social e reproduzindo privilégios e desigualdades – é o caso do judiciário, por exemplo, composto por 70% de homens brancos.

[5] Classificação do Censo oficial realizado pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: brancos, pretos, pardos, amarelos e indígenas. A categoria analítica negro é a soma de pretos e pardos, ou seja, não brancos, não orientais e não indígenas.

[7] Ver: WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2016. FLACSO, 2016.

https://www.alainet.org/pt/articulo/206457?language=es
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