Reforma Agrária Popular e a luta pela terra no Brasil

08/04/2020
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Marcha do MST realizada durante seu VI Congresso Nacional, em 2014 / MST march that took place during the movement’s 6th National Congress in 2014
Foto: Mídia Ninja
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Introdução

 

O Brasil é um dos países com maior concentração de terras do mundo e onde estão os maiores latifúndios. Concentração e improdutividade possuem raízes históricas que remontam ao início da ocupação portuguesa no início do século XVI. Combinada com a monocultura para exportação e a escravidão, a forma de ocupação das terras brasileiras pelos portugueses estabeleceu as raízes da desigualdade social que perduram até os dias atuais.

 

O último Censo Agropecuário do país, realizado em 2017, demonstra que os anos passam e essa estrutura não apenas permanece, mas se agrava, com os índices de concentração cada vez maiores. De acordo com a pesquisa, cerca de apenas 1% dos proprietários de terra controlam quase 50% da área rural do país. Por outro lado, os estabelecimentos com áreas menores a 10 hectares (cada hectare equivale a um campo de futebol) representam metade das propriedades rurais, mas controlam apenas 2% da área total.

 

Esse retrato da realidade ilustra o tamanho da expropriação realizada pelo capitalismo ao longo de séculos, com consequências políticas, econômicas, sociais e ambientais na construção histórica do país. Afinal, as relações com a terra são fundamentais para o desenvolvimento de um país. Quando se fala de terra se fala de pessoas, de controle dos bens naturais, de desenvolvimento econômico, social e cultural. A terra é a expressão de uma sociedade, e esses números refletem o grau da desigualdade e da injustiça desenvolvidas por mais de cinco séculos de história do Brasil.

 

Em tempos de hegemonia do capital na agricultura, por meio do modelo do agronegócio, o dossiê do mês de abril do Instituo Tricontinental de Pesquisa Social pretende apresentar o atual estágio da luta pela terra no Brasil, que não se centra mais entre um latifúndio arcaico e improdutivo versus camponeses pobres que lutam por um pedaço de chão, mas na disputa pelo modelo agrícola. De um lado o agronegócio, com suas enormes extensões de terra baseadas na monocultura e que exigem a utilização de enormes quantidades de agrotóxicos para a sua produção, o que levou o Brasil a se tornar o maior consumidor de venenos agrícolas do mundo. Do outro, a agroecologia com a diversidade da produção de alimentos saudáveis em harmonia com a natureza, e que inclui a totalidade de um sistema de produção, como as relações humanas, de trabalho, saúde, cultura, lazer e educação.

 

Porém, tudo isso só será possível de se realizar por meio do que chamamos de Reforma Agrária Popular, um conceito de reorganização fundiária que pretendemos desenvolver ao longo deste dossiê. Para tanto, achamos prudente resgatar brevemente o histórico da luta pela terra no Brasil, para compreendermos melhor o que obrigou os movimentos populares a mudarem sua estratégia de luta e a se debruçarem numa alternativa ao modelo proposto pelas multinacionais do setor agrário. Por fim, traremos uma experiência concreta de um assentamento da Reforma Agrária, organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que ajuda a ilustrar o que é na prática um território com outra concepção de agricultura.

 

A escolha de publicarmos este dossiê no mês de abril se dá pelo fato do dia 17 de abril ter se transformado no dia internacional da luta pela reforma agrária. A data homenageia os sem-terra tombados no que ficou conhecido como Massacre de Eldorado dos Carajás, quando 21 trabalhadores rurais foram assassinados e 69 mutilados pela Polícia Militar do estado do Pará, em 1996.

 

O episódio, que ficou mundialmente conhecido, se tornou mais uma marca profunda da história do Brasil por expressar a extrema violência contra os trabalhadores do campo em função da concentração da terra e da não realização de uma política de reforma agrária, pela impunidade construída pela aliança entre o latifúndio e os poderes públicos do Estado brasileiro e pela reinvenção dos sujeitos do campo na luta por terra e por uma vida digna.

 

As Ligas Camponesas foi uma das primeiras organizações do campo no Brasil

Autor desconhecido

 

Parte 1

 

A luta pela terra no Brasil

 

A questão do latifúndio no Brasil tem suas origens históricas assentadas nas relações capitalistas de produção no campo e na concentração da propriedade privada como fundamento da organização fundiária, de acordo com interesses da classe dominante.

 

Nos seus primórdios, no mundo todo, o capital precisou, de forma violenta, separar os produtores de seus meios de produção para desenvolver suas potências produtivas. Com isso, inaugurou na história humana uma das maiores expropriações de camponeses já existente, formando uma legião gigantesca de condenados da terra, que tiveram como única alternativa vender sua força de trabalho em troca de um salário.

 

Esse processo, que é considerado a pré-história do capitalismo, criou as condições para o seu desenvolvimento e consolidação. A questão agrária no Brasil perpassa necessariamente por este fio condutor, em que o capitalismo inaugura a sua forma violenta de expropriação para seguir acumulando nas suas mais diversas formas: agrário, industrial, bancário/financeiro.

 

O histórico de espoliação da terra no Brasil, em contrapartida, produziu diversos processos de resistência popular ao longo dos anos. A violência com que esse processo foi conduzido suprimiu as formas de expressão cultural, negou o acesso à educação e à saúde como direito humano básico; destruiu a soberania e a autodeterminação dos povos e a sua própria autoestima. A luta pela terra no Brasil perpassa por estes acontecimentos, e dessa forma, toda tentativa de resistência popular organizada e radical virou sinônimo de massacre e genocídio, para posteriormente serem apagadas dos livros de história.

 

Cada luta foi desenvolvida de acordo com os elementos objetivos e subjetivos de cada período histórico pelos mais diversos atores sociais do campo. Foi assim com os povos indígenas, que foram dizimados ao não aceitarem o regime de escravidão imposto pelos colonizadores portugueses. Estima-se que dos 2,5 milhões de indígenas que viviam na região que hoje compreende o Brasil menos de 10% sobreviveram até os anos 1600. Apesar de camufladas na nossa historiografia, a luta indígena nos deixou um importante legado, mostrando que a história se faz com resistência e luta. O indígena Sepé Tiaraju, um destes exemplos pedagógicos de batalhas contra espanhóis e portugueses, morreu dizendo: “Essa terra tem dono!”

 

A situação com a população negra não foi diferente. Ao todo, cerca de 4,9 milhões de africanos foram retirados de seus territórios e trazidos como escravos para o Brasil no trágico processo da diáspora africana. Nenhum outro lugar do mundo recebeu tantos escravos. Nos Estados Unidos, por exemplo, foram 389 mil.

 

A situação do negro escravizado era de completo ultraje, agressão e tortura. Sofriam a violência do trabalho forçado. Com tamanha opressão, não tardou para que as revoltas dos escravos ecoassem de serra em serra, e entre as diversas formas de resistência, a mais efetiva foi a criação dos chamados Quilombos, territórios construídos pelos negros fugidos da escravização em busca de viver em liberdade, e onde se organizavam de forma comunitária e podiam retornar às suas culturas e tradições.

 

No declínio da hegemonia do trabalho escravo nas primeiras décadas do século XIX, foi a vez dos chamados caboclos – negros, indígenas e camponeses cuja identidade nacional ainda estava em construção – passarem a protagonizar as lutas e revoltas contra os opressores. Em muitos casos, as populações locais chegaram a tomar o poder local e a implementar governos populares. O resultado foi o mesmo: vilas queimadas, fuzilamentos e completa destruição do que fora conquistado momentaneamente.

 

Ao longo do século XX essas experiências foram amadurecendo e ganhando formas organizativas mais sólidas, trazendo consigo pautas políticas e projetos de país, como a luta pela reforma agrária e pela transformação social. As Ligas Camponesas e o Movimento de Agricultores Sem Terra (Master), por exemplo, foram organizações que realizaram diversas ocupações e acampamentos de terra entre as décadas de 1940 e 1960.

 

Mais uma vez, essas experiências logo foram destruídas, mas dessa vez pela mão da Ditadura Civil-Militar que vigorou no país por 21 anos (1964-1985), criando uma profunda lacuna nas formas organizativas da classe trabalhadora, que só veio a se reconstituir no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980.

 

As ocupações de terra se tornaram o principal instrumento de luta do MST

Foto- Sebastião Salgado

 

Reascenso das lutas populares

 

A insustentabilidade da ditadura civil-militar abriu espaço para o avanço das lutas de diversos setores da sociedade que, aos poucos, foram se massificando, alterando a correlação de forças, e provocando, no país, o reascenso das lutas populares.

 

Este período foi responsável por criar diversas organizações políticas da classe trabalhadora, como o Partido dos Trabalhadores (PT) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), além de reestruturar entidades que haviam entrado na ilegalidade no período anterior, como a União Nacional dos Estudantes (UNE).

 

No campo a situação não era diferente. As contradições do modelo agrícola pós “Revolução Verde” expulsou milhões de trabalhadores do meio rural. As condições socieconômicas desse processo fez com que novos focos de resistência à ditadura das armas e da terra surgissem em todo o país: posseiros, arrendatários, assalariados, meeiros, atingidos por barragens tornaram as ocupações de terra a expressão camponesa de contestação ao latifúndio e ao autoritarismo.

 

Dessas experiências nasce o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em 1984. O MST se constituiu com base em três objetivos centrais que perduram até hoje: a luta pela terra, por reforma agrária e por transformação social. A primeira diz respeito à luta imediata, à necessidade do sujeito conquistar um pedação de chão; a segunda se refere a uma política de Estado, já que sem ela não se consegue manter nem realizar de forma massiva a conquista pela terra; e a terceira carrega em si o viés ideológico, como a necessidade de remodular as relações de poder na sociedade.

 

Desde o início do MST as ocupações de terra se tornaram a forma como o movimento se apresenta à sociedade. A ocupação é um ato de questionamento e de denúncia: questiona a função social da propriedade e denuncia que determinada terra não está cumprindo sua função social, como previsto na Constituição.

 

Ao longo de sua história, cerca de 350 mil famílias já conquistaram a terra e outras 80 mil ainda vivem em diferentes acampamentos espalhados pelo país. Porém, ao longo dos últimos 36 anos, a luta pela terra atravessou diferentes momentos conjunturais. Cada estratégia e tática de luta corresponderam às necessidades objetivas apresentadas em cada período histórico. No primeiro momento, por exemplo, o enfrentamento se dava entre camponeses expropriados de um lado e proprietários latifundiários de outro. O campo brasileiro era constituído por um latifúndio arcaico, atrasado, improdutivo e violento.

 

Nesse sentido, no início da década de 1980, no processo de redemocratização do país, o MST se projetou nacionalmente por meio de grandes ocupações de latifúndios a partir da organização de milhares de famílias acampadas. Duas palavras de ordem impulsionaram a luta pela terra nesse momento: “Sem reforma agrária não há democracia” e “A ocupação é a única solução”. Foi um período de organização e convocação das famílias camponesas para ocupar latifúndios, resultando em muitas áreas de terras desapropriadas e dando início aos primeiros assentamentos da Reforma Agrária.

 

A resposta encontrada pelo latifúndio, por sua vez, foi a criação da União Democrática Ruralista (UDR), um instrumento violento dos grandes fazendeiros para combater o MST e pressionar o governo federal para atuar contra o movimento camponês.

 

Com o país já redemocratizado e com o início do período neoliberal no Brasil, nos anos 1990, os sem-terra sofrem com a violência tanto por parte da UDR quanto do Estado. Repressão, prisões, escutas telefônicas e invasões de secretarias estaduais foram algumas das ações realizadas pela Polícia Federal.

 

Esse foi um período de resistência, de se organizar internamente e investir na produção de alimentos nos assentamentos. O MST segue com as ocupações massivas, organiza sua base para a resistência e autodefesa, realiza marchas estaduais e constrói suas primeiras cooperativas de produção nos assentamentos recém-conquistados. Do ponto de vista interno, o movimento fortalece sua estrutura orgânica e implementa as linhas políticas.

 

A forma como o latifúndio estava organizado ao longo das décadas de 1980 e 1990 – baseado na improdutividade e na violência – fez com que a pauta da reforma agrária tivesse um apelo muito forte na sociedade, e os sem-terra passaram a ter sua luta reconhecida em diversos setores sociais.

 

A consolidação do projeto neoliberal, porém, provoca um recuo das lutas da classe trabalhadora assistidas na década anterior. Entretanto, no meio rural, o grande capital ainda não tinha adentrado tão ferozmente no campo e o MST aproveita este período para organizar seus acampamentos e assentamentos, realiza a primeira Marcha Nacional em 1997 para dialogar com a sociedade, denunciar o projeto neoliberal e exigir punição aos responsáveis pelo Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no ano anterior. É momento de expansão e territorialização do movimento com apoio internacional e sua consolidação enquanto uma referência política.

 

Reforma Agrária Clássica e as transformações do capitalismo

 

A questão agrária é um debate central para o avanço do desenvolvimento político e socioeconômico de qualquer país que projete uma nação soberana e com igualdade social. O desafio é compreender a necessidade nas sociedades capitalistas de executar uma reestruturação profunda das políticas agrárias, ambientais e de produção de alimento e cultura.

 

O instrumento concreto dessa reorganização fundiária chama-se reforma agrária. Tal política, que representa a distribuição massiva de terras, foi amplamente implantada nas sociedades capitalistas ao longo dos séculos XVIII até o período da Segunda Grande Guerra (1939-1945). Exemplos não faltam sobre a distribuição de terras entre a burguesia emergente e o campesinato que constituíram as sociedades industriais após as revoluções Francesa (1789) e Industrial (1760-1780).

 

A transição para uma economia mais complexificada com a revolução industrial, a partir da exploração do trabalho e da internacionalização de capitais e mercados como forma de controle e dominação, trouxe a necessidade de integrar a economia agrária nas estratégias do desenvolvimento do capital. A questão agrária, portanto, era um elemento crucial do ponto de vista econômico, do trabalho e dos bens naturais para a necessidade capitalista de controle produtivo e exploração do trabalho e da natureza, no intuito de convertê-lo como parte integrante da produção de mais-valia.

 

Essa primeira versão da política massiva de distribuição de terras ficou conhecida como “reforma agrária clássica”. Dois elementos centrais fizeram com que a burguesia industrial optasse pela democratização do acesso à terra. A primeira foi a necessidade de ruptura, em todos os níveis, da hegemonia das antigas classes proprietárias rurais – que paralisavam qualquer desenvolvimento das forças produtivas – pelas novas classes burguesas empresário-industriais nascente.

 

O outro elemento está ligado às ideias de crescimento e de desenvolvimento econômico que passavam, necessariamente, por uma mudança no eixo produtivo da economia, relegando ao setor primário o papel de setor subsidiário da nova estrutura econômica.

 

Com a centralidade da acumulação do capital baseada no desenvolvimento industrial, criava-se a necessidade de ter força de trabalho barata e abundância de matéria-prima. Integrada às indústrias capitalistas, a democratização do acesso à terra cumpria a função de fornecer as mais diversas matérias-primas produzidas nos pequenos e médios espaços agrícolas a preços menores. A chegada de alimentos mais baratos nas cidades, por exemplo, permitia uma redução no custo de mão de obra, possibilitando que os capitalistas industriais pagassem menores salários aos trabalhadores urbanos. Além do mais, a consolidação de um campesinato sólido economicamente permitia que a recém-criada indústria ampliasse seu mercado consumidor.

 

Assim, os processos de industrialização desses países fizeram com que o setor rural paulatinamente se submetesse à nova ordem político-institucional e econômica que emanava do meio urbano-industrial. Ou seja, a dinamização de ligações estratégicas e comerciais cada vez mais densas entre o campo e a cidade se afirma com o advento da indústria e, fundamentalmente, da divisão do trabalho e da consolidação do operariado.

 

Dessa forma, diversos países de economias centrais realizaram reformas agrárias, a começar pela França e Inglaterra. Ao longo do século XX, por exemplo, o Japão beneficiou cerca de 3 milhões de pessoas com a posse de parcelas de terras. A Turquia desapropriou áreas acima de 500 hectares, e a Itália realizou desapropriações mediante indenização aos antigos proprietários, desenvolveu a infraestrutura no campo, recuperou áreas degradadas e construiu casas para os camponeses.

 

Para além da reorganização produtiva e econômica, as formas capitalistas de cooptação e controle no campo passam pela homogeneização da cultura, usurpando e negando a cultura tradicional camponesa, suas formas de relação com o trabalho, de se produzir e de se alimentar. O capitalismo impôs outras regras ao jogo. Nestas, o trabalho não teria mais o sentido prático de organizar a vida comunitária, que traziam consigo valores mais humanos de integração e cooperação.

 

O tempo de trabalho e suas formas passariam a ser determinadas pelo modo de produção do capital e pela velocidade que a competição capitalista exigia, tendo como meta o lucro. O capital passa a definir o que e como produzir, como será a comercialização e quanto o trabalhador receberá pelos seus feitos. Os camponeses não tinham mais o controle dos seus meios de produção. Nesse sentido, a reforma agrária clássica faz parte de uma política do Estado burguês, e foi realizada justamente por ter sido uma necessidade da fração de classe hegemônica daquele período: a burguesia industrial.

 

No Brasil, diversos elementos impossibilitaram que o modelo da reforma agrária clássica fosse implementado no processo de industrialização do país. O primeiro deles é a relação entre a oligarquia rural e a burguesia industrial. Diferentemente da europeia, a mudança das classes proprietárias rurais pela nova burguesia industrial não exigiu uma ruptura total do sistema por razões estruturais. No caso brasileiro, a concentração fundiária não foi um obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo, ao contrário, houve a unificação entre o latifundiário e o capital industrial, numa aliança entre capital e propriedade da terra intermediada pelo Estado. Essa aliança possibilitou que a economia rural subsidiasse o desenvolvimento industrial. Além disso, a alta concentração de terra e, consequentemente, o êxodo rural, garantiu a criação de um exército industrial de reserva que barateava a força de trabalho no meio urbano.

 

Portanto, nunca houve uma política nacional concreta de reorganização agrária no Brasil. O que ocorreu foi apenas uma importação do modelo estadunidense do agronegócio e de seu tripé: latifúndio extensivo, mecanização pesada e agrotóxicos, por meio da “Revolução Verde”. Foi a partir deste modelo que o campo brasileiro se reorganizou, excluindo por completo os camponeses desse processo.

 

Ao longo da década de 1990, o espaço agrário brasileiro passou por grandes transformações estruturais na forma de organizar a produção das mercadorias agrícolas no Brasil. Estas transformações trouxeram novas determinações à questão agrária, que se complexificou a partir da afirmação do agronegócio com a consolidação do modelo neoliberal. O antigo latifundiário, dono de grandes extensões de terra, se aliou a outras frações da classe burguesa: às empresas transnacionais do setor agrícola, ao capital financeiro representado na figura dos bancos e aos meios de comunicação de massa. Esse novo modelo de produção agrícola ficou conhecido como agronegócio, e está inserido num contexto mundial que se inicia na década de 1970 e se acentua sobretudo a partir do final da década de 1990 e começo dos anos 2000 em diante.

 

Nesse sentido, o sistema do capital em crise na busca por formas de valorização intensifica a destruição ambiental, expande suas fronteiras agrícolas sobre florestas, aumenta as expropriações territoriais, vai às últimas consequências da extração mineral e potencializa a proletarização em massa, apartando ainda mais os trabalhadores de seus meios de produção.

 

Assim como o agronegócio se torna mais complexo a partir das mudanças na natureza do capital, a reforma agrária, como alternativa real e necessária, também deve mudar radicalmente sua natureza, em vistas de apresentar um conjunto de determinações que alterem questões centrais do controle capitalista, a partir da reorganização dos territórios agrários e ambientais em busca de uma soberania popular.

 

A Reforma Agrária Popular

 

Neste contexto, o MST é provocado a redefinir suas ações estratégicas e seu programa agrário. Com a consolidação do agronegócio no início dos anos 2000 não caberia mais lutar por uma reforma agrária do tipo clássica, pois ficava evidente que o desenvolvimento das forças produtivas no campo ocorria nas bases do capital, já marcado por uma profunda crise estrutural, o que diminuía ainda mais as margens de participação democrática do povo no acesso à terra, que dirá uma reforma agrária que reconstruísse as relações de poder existente em torno da propriedade privada. O grande capital, agora hegemonizado pelo sistema financeiro e não mais o industrial, não tinha mais a necessidade de realizar a reforma agrária, como ocorrida em décadas anteriores, uma vez que havia se reinventado e descoberto novas formas de acumular riqueza. As mesmas terras que antes eram disputas entre os sem-terra e latifundiários atrasados e improdutivos também passam a ser alvo do agronegócio.

 

Cada vez mais a luta pela reforma agrária implica no enfrentamento ao capital, que se manifesta na luta contra as grandes empresas transnacionais, como as do agronegócio, responsáveis pela produção dos agrotóxicos, sementes transgênicas e o esgotamento dos recursos naturais.

 

As consequências deste modelo destrutivo ao meio ambiente passa a ser paulatinamente sentida na maior parte da população que vive nos grandes centros urbanos. Contaminação e escassez de água, envenenamento de alimentos por agrotóxicos, mudanças climáticas e os inchaços nas grandes cidades são apenas alguns exemplos da intrínseca relação entre as questões agrária e urbana na atualidade.

 

A realidade impôs a necessidade de atualizar a luta pela reforma agrária. Desta forma, o conceito de reforma agrária clássica passa a ser substituído pelo conceito da reforma agrária popular, que agora traz em sua dimensão não apenas a necessidade de terra para quem nela trabalha, categoria central na década de 1980 e 1990, mas a necessidade de produzir alimentos saudáveis a toda população, adquirindo o caráter popular da reforma agrária.

 

A reforma agrária deixa de ser interesse apenas das populações que vivem no campo e se transforma numa necessidade do conjunto da sociedade. Da mesma forma, os camponeses sozinhos não são mais capazes de alterar a correlação de forças para reorganizar a estrutura fundiária. Ela só será possível quando as populações das cidades também compreenderem a necessidade de realizá-la.

 

Nesse sentido, a centralidade da luta pela terra passa a ser em torno da disputa pelo modelo agrícola. Se antes o inimigo se centrava na figura do antigo latifundiário, agora ele se tornou muito mais poderoso, já que o proprietário de terra se aliou às grandes multinacionais do setor, ao sistema financeiro e aos meios de comunicação de massa, responsáveis por propagandear ideologicamente a concepção de agricultura proposta pelo agronegócio. O antigo latifúndio arcaico e improdutivo se “modernizou” e agora conta com alta capacidade produtiva.

 

Portanto, a reforma agrária popular representa a estratégia de resistência ao modelo do agronegócio, apontando para novas formas de luta e reunindo os fundamentos do modelo que queremos construir no futuro, mas com ações efetivas de mudança no presente.

 

Semear a reforma agrária popular no atual tempo histórico representa modificar a forma hegemônica de se produzir alimentos. Pressupõe disputar os meios de produção, tendo na agroecologia e na cooperação os instrumentos de estudo e aplicação teórico-prática em contraponto ao agronegócio. A base do modelo do agronegócio tem como fundamento uma produção extensiva de commodities voltadas à exportação. A desvinculação com o meio ambiente – ao derrubar enormes áreas verdes – obriga grande utilização de agrotóxicos, esgotando o solo, poluindo a água, o lençol freático e contaminando os alimentos.

 

Por outro lado, o programa de reforma agrária popular tem a matriz agroecológica como base na produção agrícola, priorizando a produção de alimentos saudáveis e diversificados para o mercado interno em harmonia com o meio ambiente. Junto a isso, é preciso desenvolver um modelo econômico que distribua renda e que fixe as pessoas no campo para combater o êxodo rural. Por isso ela pressupõe a criação de agroindústrias nos assentamentos sob o comando dos próprios trabalhadores.

 

Porém, o conceito de reforma agrária popular vai muito além das questões produtivas. Perpassa também pela construção de novas relações humanas, sociais e de gênero, enfrentando o machismo e a lgbtfobia, por exemplo. Perpassa por garantir o acesso à educação em todos os níveis no meio rural, ao mesmo tempo que tem como propósito construir formas autônomas de cooperação entre os trabalhadores que vivem no campo e na relação política com as massas urbanas.

 

Já são muitas as iniciativas neste sentido, por meio das agroflorestas, cultivo de sementes crioulas, processamento e agroindústria, feiras de comercialização direta, pesquisa científica, formação técnica e uso de novas tecnologias.

 

Todavia, diante da complexidade do assunto e dos desafios a serem enfrentados, é importante ressaltar que não foi somente as mudanças na natureza do capital que levaram o MST a reformular a luta pela terra. A gênese desses movimentos perpassa necessariamente pela transformação da sociedade, e foi justamente a partir deste elemento que foi gestada uma cultura política e organizativa entre as famílias sem-terra que amadureceu na concepção de reforma agrária popular. Sua plena realização, evidentemente, depende de mudanças estruturais na sociedade. No entanto, busca-se compartilhar com a classe trabalhadora não somente uma reivindicação justa, mas um projeto de poder, soberano e popular.

 


 

Parte 2

 

Conquista na Fronteira: uma história de luta, cooperação e organização

 

Se precisasse escolher uma palavra para definir o Assentamento Conquista na Fronteira, no município de Dionísio Cerqueira, no estado de Santa Catarina, essa palavra seria cooperação.

 

As 46 famílias que vivem numa área de 1.198 hectares, desapropriada para a reforma agrária em 1988, trazem consigo essa noção de coletivo, mas que poderia ser facilmente desfeita se não contassem com outro elemento igualmente importante: a organização.

 

Organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a história do Conquista na Fronteira se confunde com a própria história do MST na região. As famílias que hoje vivem no assentamento foram as mesmas que ocuparam os primeiros latifúndios no estado em 1985, apenas um ano depois do surgimento do movimento.

 

A assentada Irma Bruneto é uma dessas pessoas. Durante os três anos em baixo da lona preta à espera de um pedaço de chão, o MST realizou um trabalho de base junto às famílias acampadas para conscientizar os sem-terra da necessidade de se pensar uma produção coletiva.

 

“Desde o início já vínhamos trabalhando a relação com a terra, como íamos realizar a cooperação entre nós. Ainda sem muita noção, já que tudo aquilo fazia parte de um processo inicial”, conta Irma.

 

Porém, ao conhecerem a área recém-conquistada perceberam que a melhor saída seria pensar numa produção coletiva. “Quando vimos a geografia da área, percebemos que 40% da terra era acidentada, era morro. Percebemos que ali não daria certo se fosse dividido em pequenos pedaços”, relembra.

 

Se cada família ficasse com seu lote individual, um grupo seria muito beneficiado, com áreas planas e de bastante água, enquanto outros ficariam muito prejudicados com áreas pedregosas. Assim, se consolidou a ideia de coletivizar a terra e a produção, algo que já vinha sendo trabalhado desde a época de acampamento.

 

Cooperação

 

Do trabalho de base e dos elementos geográficos nasceu a cooperativa Cooperunião, um exemplo de organização dos trabalhadores sem-terra. Fundada em 1990, dois anos depois da conquista do assentamento, a cooperativa é o coração da estrutura organizativa dos assentados.

 

Todos os associados da cooperativa estão divididos em equipes de trabalho, como Subsistência e Reflorestamento, Bovinocultura, Avicultura, Grãos e Administrativo e Social. Uma vez ao ano, as famílias realizam um planejamento para o período sobre o que será produzido, os custos, quais serão os investimentos etc. Tudo é discutido nos núcleos e aprovado em Assembleia Geral, para depois ser executado nos próximos 12 meses.

 

“Desde o início fomos adotando toda uma estrutura e criando um regimento interno. A primeira meta foi produzirmos alimento para poder comer e vender, até porque tínhamos vindo de três anos de acampamento em que passamos necessidades. E também se iniciou um processo mais a longo prazo com o objetivo de industrializar nossa produção para agregar mais valor”, relata Irma.

 

Esse processo resultou numa produção em larga escala e diversificada. Atualmente, o carro chefe do assentamento é a produção de leite, que é vendido à Cooperoeste, uma outra cooperativa ligada ao MST no município de Chapecó, responsável pela produção do leite Terra Viva. A alimentação dos animas é a base de pasto, por meio do sistema de rotação de pastagens conhecido como Pastoreio Racional Voisin (PRV), uma alternativa agroecológica para a criação de animais. A suplementação é feita com a silagem produzida no próprio assentamento, a partir da fábrica de rações.

 

Além do leite, as lavouras de grãos e erva mate, os 12 açudes de produção de peixes, os suínos, as aves de postura, o gado e a criação de abelhas para a produção de mel garantem, de forma coletiva, a subsistência dos assentados e a renda por meio da comercialização.

 

“A gente tem uma alimentação extraordinária, orgânica, sem veneno, de carnes, ovos, leite. Compramos muita pouca coisa do mercado”, conta Irma.

 

A remuneração de todo esse processo é realizada a partir das horas trabalhadas. Todo final de mês soma-se as horas de serviço feita por cada pessoa, e se distribui o valor conforme o rendimento da cooperativa. Os assentados também estão terminando de reformar o frigorífero de aves que existe desde 1997. A ideia é ampliá-lo para que consiga abater até 3.500 frangos por hora.

 

A produção do Conquista na Fronteira não para por aí. Há ainda uma horta responsável por todos os legumes e verduras consumidos pelos assentados. As famílias têm direito de buscar as verduras três vezes por semana. “Elas são distribuídas conforme as verduras que estão à disposição. Ninguém vai lá tirar a verdura que quer. Quem decide são as pessoas responsáveis por cuidar da horta. Mas é comum sair com a mala cheia”, explica Irma.

 

Junto à horta, o viveiro de árvores contribui tanto para reflorestar a área degrada pelo latifúndio quanto para embelezar os terrenos das casas. O reflorestamento nos últimos anos foi tamanho que 40% da área do assentamento se transformou em mata.

 

Feira Nacional da Reforma Agrária na cidade de São Paulo

Foto- Joka Madruga

 

Educação e Saúde

 

Mas não é apenas de produção que vive o Conquista na Fronteira. Desde o início do processo de luta, a educação já era uma prioridade dos sem-terra. “A gente luta antes pela escola do que pela casa da gente”, afirma Irma. A Escola Municipal Construindo o Caminho nasceu de uma reivindicação das famílias quando elas ainda estavam acampadas. Formalizada em 1990, ela surgiu da necessidade não apenas de alfabetizar os filhos de assentados, mas inseri-los numa proposta pedagógica adequada à Reforma Agrária.

 

“Queríamos uma educação diferente e fomos aperfeiçoando dentro do método Paulo Freire”, conta. A escola vai até a quarta série, e o processo de ensino é realizado a partir de um tema gerador. As crianças também são responsáveis pela gestão da escola: assim como na cooperativa, elas tomam decisões em conjunto, definem regras para o funcionamento da escola e atividades que serão desenvolvidas.

 

Segundo Irma, o mesmo método da organização coletiva era empregado na escola, com núcleos e divisão de tarefa. Também procuraram desde o início trabalhar a relação da comunidade, do lazer e da saúde. Há um setor de saúde que trabalha com ervas medicinais e fitoterápicos.

 

Não à toa, a escola já foi alvo de diversas tentativas de fechamento quando algum partido de direita ganha as eleições municipais. Numas das vezes, as crianças chegaram a ocupar a própria prefeitura. “Ela é um símbolo de resistência, por isso que eles querem fechar, por ser uma experiência significativa. Eles sabem que ali estamos formando consciência”, explica Irma.

 

Desafios

 

Passados 31 anos desde o início dessa experiência, os desafios não deixam de existir. “Ele é construído em meio a muitas contradições. Não dá para dizer que ali é um mar de rosas”, aponta com serenidade Irma.

 

Um dos maiores desafios colocados é a manutenção da juventude no campo, já que a maioria dos jovens acaba indo para a cidade quando atingem determinada idade. “Temos o desafio de segurar o jovem, melhorar a renda, mantermos o espírito de solidariedade e de cooperação. Numa sociedade tão individualista como a nossa, nós remamos contra todas as marés”.

 

Para Irma, o grande elemento para que essa experiência deixe de ser uma exceção e passe a ser regra gira em torno da reforma agrária popular. “Muitas vezes acabamos reproduzindo a lógica do agronegócio nos nossos assentamentos. Mas o nosso grande ponto de resistência está no debate da agroecologia, cooperação e solidariedade. Isso é o que nos dá prazer, nos faz vivo e nos segura de pé. O tema da reforma agrária popular dialoga com a sociedade em outros patamares. É a forma de dizer o que é a alimentação saudável, agroecologia, uma vida social e que o campo seja um lugar bom para viver”.

 

6 de Abril de 2020

https://www.thetricontinental.org/pt-pt/dossie-27-terra/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/205766?language=en
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