Fim de um mundo

06/04/2020
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Centro de Porto Alegre
Foto: Luiza Castro/Sul21
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 A equipe de gestão da crise sanitária nomeada por Trump elabora, como outros países, modelos para prever a evolução da epidemia. Segundo suas projeções, se não se fizesse nada (ou seja, se fosse seguida a opinião do presidente há cerca de um mês), poderia haver algo entre 1,6 milhões e 2,2 milhões de mortos por Covid-19 nos Estados Unidos. Para ter uma ideia da magnitude desses números basta comparar com os 400 mil soldados norte-americanos que morreram na atroz Segunda Guerra Mundial. No entanto, com medidas de confinamento estrito nos próximos 30 dias, acreditam que poderão reduzir essas mortes a algo entre 100 mil e 200 mil pessoas nos próximos meses. Claro que esperam rebaixar a cifra, mas ainda em seu nível mais baixo, com dezenas de milhões de contagiados, os Estados Unidos aparecem agora como o epicentro da epidemia.

 

As conseqüências humanas são horríveis. Mas, além disso, as conseqüências econômicas e sociais desta tragédia alcançarão o conjunto de um planeta globalizado cujo centro segue sendo os Estados Unidos. Por que, de repente, ocorreu essa evolução catastrófica da epidemia que estava localizada na China e na Coréia? Pela mesma razão pela qual a epidemia se tornou pandemia: nossa interconexão global, o tráfego constante de pessoas e mercadorias entre todos os países, com muitos destes intercâmbios tendo por origem e destino as grandes metrópoles norte-americanas. Além disso, no interior dos Estados Unidos milhões de passageiros circulam diariamente em aviões que formam a mais densa rede de tráfego aéreo do planeta. Não há trens, os ônibus são para os pobres e as viagens de longa distância em automóveis se limitam aos períodos de férias. E os aviões são um meio patógeno para toda classe de vírus e também para este. A Babel do século XXI, em suas múltiplas megalópoles é, paradoxalmente, o território mais vulnerável do planeta. Ainda que veremos em seguida o que vai ocorrer na África, América Latina e Índia.

 

Mas há mais elementos importantes neste cenário: o péssimo sistema de saúde pública estadunidense, com milhões de pessoas sem cobertura, no qual coexistem a melhor tecnologia médica do mundo (para aqueles que podem pagar) com uma medíocre medicina semi-pública, onde os hospitais cobravam, até bem pouco tempo, 3 mil dólares por um teste de coronavírus. Também influi o desleixo dos responsáveis políticos, incapazes de reagir a tempo, desdenhando as advertências que chegavam da China. Diziam: aqui não é a China. Isso é verdade, mas o vírus não sabe disso. Trump se referia a ele como o “vírus chinês”. Agora virou uma questão de vida ou morte para o seu país. E é isso de fato. Da diferentes atitudes de responsáveis regionais resultam grandes diferenças na expansão do contágio. A Califórnia e o estado de Washington, com governadores democratas progressistas, adotaram medidas de confinamento há um mês. As escolas e universidades fecharam e adotaram o ensino online. Eventos desportivos e espetáculos foram suspensos.

 

Enfim, fizeram o que fizemos em nosso país gradualmente. Nova York e sua área metropolitana foram os mais lentos em reagir. Além disso, é o principal nó dos fluxos globais que convergem nos Estados Unidos. Nova York se converteu na Wuhan dos Estados Unidos. Mas que ninguém tenha a ideia de pedir o confinamento territorial. Cada estado da União tem autonomia quase total para aplicar suas próprias medidas. E como o vírus não conhece fronteiras vai se expandindo sem obstáculos, contagiando outras áreas metropolitanas, porque a estrutura espacial funciona por relações inter-metropolitanas, não por contigüidade territorial. Em uma situação de extrema emergência, o governo federal poderia impor uma política centralizada, mas é improvável. Ao invés disso, estados e municípios suplicam ao governo ajuda financeira, militar ou de equipamentos. Trump ordenou às fábricas de automóveis que passassem a fabricar respiradores, tão escassos como no resto do mundo, mas no momento se pratica uma política seletiva nos hospitais, reservando-os aos que se podem salvar e transferindo-os para distintas regiões conforme a morte se desloca. Enquanto isso, a ciência trabalha para encontrar remédios e uma vacina. Mas ainda está longe.

 

O colapso sanitário se estende à economia. E, daí, à economia mundial, à produção dependente de cadeias globais de produção, ao consumo, com demanda decrescente pelo confinamento e pelo medo do futuro, aos investimentos, apesar da taxa de juro de 0% do Federal Reserve (o Banco Central norte-americano), porque a incerteza é absoluta, e aos mercados de commodities, com preços despencando, sobretudo do petróleo, porque Rússia e Arábia Saudita escolheram esse momento para um duelo suicida entre quem pratica o preço mais baixo. Isso seria bom para nós, se pudéssemos viajar.

 

A OCDE estima que, nos países desenvolvidos, cada mês de confinamento reduz o crescimento do PIB em dois pontos. Calculem. Entramos, sem dúvida alguma, em uma profunda e larga recessão mundial que se converterá em uma crise financeira pior que a de 2008 porque as empresas voltaram a se endividar pensando que de novo tudo era brincadeira. Em meio a tudo isso, e apesar de tudo, a China deteve a expansão do vírus (que segue à espreita todavia) e ainda vai conseguir crescer 2%, indicando uma mudança fundamental da hegemonia mundial. Não é o fim do mundo. Mas é o fim de um mundo. Do mundo no qual estávamos vivendo até agora.

 

- Manuel Castells é doutor em sociologia pela Universidade de Paris, é professor nas áreas de sociologia, comunicação e planejamento urbano e regional e pesquisador dos efeitos da informação sobre a economia, a cultura e a sociedade. Artigo publicado originalmente em La Vanguardia.

 

Tradução: Marco Weissheimer

 

abril 4, 2020

https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/04/fim-de-um-mundo-por-manuel-castells/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/205695?language=es

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