Bolívia: lições de um golpe de estado (parte 1)
- Análisis
“Agora que estamos a salvo, agradeço ao povo boliviano e ao povo mexicano. Não daremos um passo atrás ante os racistas e os golpistas. Hoje vemos que são os verdadeiros inimigos de nosso povo. Enquanto existe vida, a luta segue. Pátria ou Morte! Venceremos!”
Essa foi a mensagem que o presidente boliviano Evo Morales compartilhou em suas redes sociais depois de chegar ao destino de seu exílio, o México. Fala de ameaças contra a vida, de inimigos do povo, de golpe, e termina com a consigna consagrada da Revolução Cubana, “Pátria ou Morte!”, como cunhou Fidel Castro em 1960 e eternizou Che Guevara na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1964.
Não estamos mais nos anos 60. Intervenção militar. Eleições anuladas. Violência nas ruas. Governo deposto. Motim policial. Presidente exilado. Estes acontecimentos estavam fora de cogitação para muitos na América Latina nos últimos anos, enquanto a democracia liberal fazia um autoelogio triunfante, os tempos de paz que chegam com o “fim da história” – e até esquerdistas diziam que “vivemos em outros tempos”.
Dentre os vários acontecimentos que desafiam essa confiança – ou essa ingenuidade – estão os fatos que abalam a Bolívia entre outubro e novembro de 2019.
É necessário olhar com atenção aos acontecimentos bolivianos, com o duplo objetivo de compreender melhor a situação de nossos vizinhos e de retirar lições políticas para o Brasil. Ali ocorreram acontecimentos excepcionais que devem ser levados a sério, e não como trivialidades.
Os acontecimentos na Bolívia são de primeiro interesse na América do Sul e partem de um contexto de intensificação de contradições internacionais, de ofensiva imperialista ou uma “contrarrevolução neocolonial”. No já antigo programa de vídeo “Posto Sul” ensaiei observações sobre a estratégia de Donald Trump, além de ter falado de desestabilização internacional no mais recente “Carta no Coturno”; no mesmo ritmo e apresentando o livro sobre a volta do Partido Fardado, Pedro Marin especificamente cobrou no decorrer do ano para que nossos leitores e ouvintes prestassem atenção na Bolívia, como próxima parada do militarismo e ponto de primeiro interesse da geopolítica dos Estados Unidos.
Como sempre, as redes de comunicação viraram um grande campo de batalha. E apesar de toda excepcionalidade dos fatos, jornais internacionais que não se preocuparam em aplicar seus recursos abundantes para reportar da Bolívia durante as eleições e as tensões de outubro, se apressaram em produzir artigos em seguida à queda de Evo para justificar que “não ocorreu um golpe na Bolívia”, apelando até mesmo para a redação de evocação à autoridade: “dizem especialistas”. Jovens preocupados com formalismos políticos e defensores da queda de Evo Morales também elencaram explicações para dizer que não houve golpe de estado.
A queda do presidente boliviano segue um roteiro mais do que uma sucessão de acontecimentos espontâneos. Evo Morales foi derrubado com um roteiro. Como ele foi derrubado?
Muitos começam por uma suposta causa: fraude eleitoral, “Evo Morales fraudou as eleições”. Aqui temos os elementos primários do roteiro: uma justificativa e a cobertura política.
A oposição denuncia as “ambições ditatoriais de Evo Morales”, se colocando em oposição radical ao adversário. Calculam que uma parte da população está radicalizada o suficiente contra o presidente.
20 de outubro, dia das eleições. Na Bolívia, é possível ganhar as eleições para presidente no primeiro turno tendo mais de 50% dos votos ou com uma margem de 10% à frente do segundo lugar.
A Organização dos Estados Americanos, correspondendo à campanha e seguindo um padrão de atuação contra a Venezuela, já desconhecia os resultados antes mesmo de concluída a contagem oficial ou de qualquer auditoria. Acompanharam o candidato de oposição Carlos Mesa, que já declarava um segundo turno como “realidade” ou, caso fosse de outra maneira, fraude.
Para o observador da OEA, Manuel González, deveria haver um segundo turno mesmo que Morales vencesse com a margem dos 10%, independente da lei boliviana.
Na noite de 20 de outubro, vem a primeira ação decisiva dos grupos de choque, que atacaram centros eleitorais. No dia 21 de outubro, vigílias oposicionistas estavam à frente de centros de contagem denunciando “fraude”. Através da internet, a máquina de propaganda mais agressiva funcionava espalhando boatos, terror e avançando a pauta “anti-fraude”. Incidentes se espalharam por Santa Cruz.
Em Sucre, os protestos adquiriram um caráter mais violento. Incendiaram o Tribunal Eleitoral Departamental e a casa de campanha do MAS (Movimiento al Socialismo, partido do Morales). Também botaram fogo nas urnas eleitorais, e destruíram os escritórios da Federación Única de Trabajadores de Pueblos Originarios de Chuquisaca (Futpoch). O tribunal eleitoral de Tarija e suas urnas também foram incendiados.
Em Potosí, o comitê cívico “COMCIPO” liderado por Marco Pumari incendiou o tribunal eleitoral; o fogo atingiu casas adjacentes.
Os opositores, em geral apoiadores de Carlos Mesa e opositores organizados contra Evo Morales do Movimento 23F passaram a se reunir ao redor de centros de contagens para fazer pressão e protestar. Uma das sedes de cômputo em La Paz, o Hotel Radisson, foi rodeada por conflitos entre apoiadores de Evo, da oposição e forças policiais que haviam sido colocadas como proteção (e que serviram de alvo para provocações). Em outra, no Hotel Presidente, as contagens foram suspensas devido aos conflitos e ameaças.
Outros quatro tribunais departamentais suspenderam as contagens devido a ataques.
Um dos incêndios mais noticiados foi o do tribunal eleitoral de Chuquisaca. No dia 23 de outubro, o tribunal transferiu a contagem para a cidade de Zudañez. O tribunal de Potosi teve que concluir a contagem na cidade Llallagua.
O prefeito de Cobija, Luis Gatty Ribeiro, e o governador de Pando Luis Adolfo Flores, foram atacados e tiveram suas casas destruídas. Flores foi hospitalizado. O tribunal eleitoral de Pando foi incendiado e os computadores roubados.
A violência não é livre de antecedentes. Em dezembro de 2018, quando a candidatura do MAS foi habilitada, um grupo de encapuzados botou fogo no tribunal eleitoral de Santa Cruz de La Sierra. Em Santa Cruz, no dia 15 de outubro, o evento de encerramento da campanha do MAS foi atacado por militantes de oposição, encerrando a campanha em uma batalha campal. Se olharmos com mais distância, percebemos que Santa Cruz é palco de confrontos desde 2006.
No dia 22 de outubro, os Estados Unidos e a OEA questionaram a “credibilidade do processo de contagem de votos”; o vice-secretário de Estado dos EUA fez uma declaração “rechaçando” as “tentativas do Tribunal Eleitoral de subverter a democracia na Bolívia ao demorar na contagem de votos e ao tomar ações que debilitam a credibilidade das eleições”, o que foi seguido por uma declaração da embaixada dizendo que fazem um “chamado ao Tribunal Eleitoral” e que os Estados Unidos vão “trabalhar com a comunidade internacional para responsabilizar qualquer um que debilite as instituições democráticas da Bolívia”. A OEA falou de “mudança drástica, difícil de justificar”, por uma leitura dos resultados preliminares que já davam vitória para Evo Morales, sem fundamentar uma acusação que é sim fácil de se contra-argumentar:
Esses foram sinais de largada para a oposição crescer o tom e ampliar seus ataques. No dia 23, o Comité Cívico de Santa Cruz anuncia uma “greve” de prazo indefinido, e seu líder dá um ultimato às autoridades eleitorais para que realizem um segundo turno, caso contrário dariam posse a um novo presidente. A “greve” foi levada a frente por capitalistas e produtores rurais, criando um clima permissivo para bandos oposicionistas atacarem estabelecimentos que não aderiram a ela.
No dia 24 de outubro foi anunciada a vitória de Evo Morales com a margem necessária para vitória no primeiro turno, mas imediatamente os Estados Unidos e a União Europeia, seguidos por seus lacaios na Brasil e na Argentina, exigiram um segundo turno. A oposição não reconheceu e o Comitê de Santa Cruz já exigia novas eleições, sem Morales, com o grupo paramilitar União Jovem Cruceñista organizando manifestações violentas e ações armadas.
Nesses primeiros dias, os grupos de choque se enfrentavam com a polícia. Em La Paz atacaram oficiais eleitorais que transportavam urnas com votos rurais, algumas foram roubadas e outras queimadas.
Esses elementos operam, entretanto, uma jogada interessante: com Evo Morales se dispondo a aceitar uma auditoria da OEA, automaticamente começam a atacar e recusar a auditoria, tanto Mesa (que desconheceu a auditoria no dia 31 de outubro) como Camacho; este último mais radical, agora chamando Mesa de covarde. Dessa maneira, aumentam a aposta e aceleram o processo – se já queimaram tribunais eleitorais logo no primeiro dia, não há porque não apostar tudo no quinta dia após as eleições, sabotando o máximo possível e tentando controlar a narrativa sobre o que deve ser feito com o país.
O mais fundamental para entendermos a escalada do golpe e seus operadores é que todos esses atores se mantém constantemente na ofensiva e tentando conservar o momento. E por atores me refiro também às figuras internacionais e da comunicação, mesmo que o seu avanço tenha sido mais lento. Houve um salto do discurso da reivindicação de um segundo turno e de repente cancelamento das eleições e deposição de Evo Morales.
Os saltos no discurso anti-Evo seguiram uma lógica programática:
Evo Morales não deveria ser candidato.
Vamos concorrer às eleições, mas “Evo Morales é um ditador” e se ele se candidatou “não se pode confiar nas eleições”.
Exigimos um segundo turno.
Exigimos o cancelamento das eleições e a saída de Evo Morales.
No limite, esse programa em sua forma máxima é representado pelos ataques diretos ao MAS e a uma defesa da destruição do partido de Evo Morales.
Os dois primeiros saltos na acusação de fraude foram a acusação de que o sistema de resultados preliminares através de contagem rápida TREP (Transmisión de Resultados Electorales Preliminares) foram suspensos quando “indicavam um segundo turno” e depois que a contagem oficial foi suspensa por 24 horas.
No entanto, a contagem do TREP não é vinculante na legislação boliviana, o que vale é a contagem oficial. A transmissão foi encerrada às 19:40 do dia 20 de outubro, com 83,85% das atas verificadas, o que correspondia ao compromisso anterior do TSE boliviano de publicar os resultados do TREP somente até a verificação de 80% das atas – assim funcionou em outras disputas eleitorais bolivianas no passado (como no próprio referendo constitucional de 21 de fevereiro de 2016).
Os meios, a exemplo da redação da BBC (essa poderosa assinatura anônima que é quase um editorial), publicaram matérias tendenciosas com títulos como “suspensão da contagem preliminar oficial quando tudo apontava para um segundo turno”.
O outro escândalo foi quando centros de contagem tiveram que fechar por conta de ataques de oposicionistas.
É incrível o discurso uníssono da OEA, dos Estados Unidos, dos europeus e dos centristas liberais: as autoridades eleitorais ficaram 24 horas sem contar votos! No dia 23 de outubro a contagem ainda estava no prazo, mas essas figuras insistem em julgar como “muito estranho” e questionar o processo boliviano. É claro que é estranho: o processo eleitoral foi interrompido por ataques coordenados a tribunais eleitorais de departamentos importantes, onde os prédios, urnas e atas eleitorais eram queimadas por manifestantes “contra a fraude”.
No Brasil, os mesmos democratas sensíveis que se escandalizaram com as medidas preventivas que Bolsonaro assumiu questionando nossas eleições, dizendo que se ele perdesse “com certeza seria fraude”, o que depois poderia bancar um golpe de estado ou uma sabotagem completa do processo eleitoral, olharam para a Bolívia do alto da sua torre de marfim e não enxergaram a oposição boliviana usando os mesmos métodos. Métodos que são de boicotes radicais contra eleições, que guardam alguma semelhança com as medidas do Talibã contra as eleições do Afeganistão.
Os mesmos que se escandalizaram com o mentiroduto de Bolsonaro e as campanhas de desinformação nas redes não imaginam que Evo Morales possa estar sofrendo com a mesma técnica, mas com um interesse redobrado dos Estados Unidos na aplicação dela para a destruição de um estadista escolhido como inimigo.
A cobertura política aí possuí alguns atores principais: primeiro Mesa, depois a OEA como pivot internacional. Acima de tudo e por trás dessas atuações, o posicionamento dos Estados Unidos da América. Foi precisamente essa a chave que permitiu a culminação final do pronunciamento militar no dia 10 de novembro.
Os que querem se iludir, que verifiquem os posicionamentos do sr. Almagro (secretário geral da OEA) e dos Estados Unidos em outros países.
A OEA como instrumento: o relatório da fraude ou a fraude do relatório?
A expulsão de Cuba da OEA em 1962 não foi um problema que diz respeito só a Cuba ou ao Estados Unidos, nem foi um “erro”, um “produto da guerra fria”, uma vitória diplomática dos EUA ou um ponto isolado dentro de instituição. A Revolução Cubana revolucionava o próprio espaço geopolítico latino-americano e suas relações internacionais – o bloqueio dos Estado Unidos, por sua vez, não é um ato corriqueiro, mas um ato de guerra cujos esforços demandavam a adesão de todo o continente. Aquilo foi um grande racha no sistema interamericano e o início de uma transição qualitativa, que reafirmou a Doutrina Monroe através do novo intervencionismo anticomunista.
Como disse Moniz Bandeira em “Brasil, Argentina e Estados Unidos”:
“O desígnio dos EUA era tornar a OEA um poder supranacional, com a limitação da soberania dos Estados-membros, salvo a própria, tanto assim que jamais aceitaram a multilateração da Doutrina Monroe, reservando para si, com exclusividade, o direito de interpretá-la, unilateral e casuísticamente, bem como de aplicá-la ex-post-facto e sempre em função de seus interesses ou eventuais objetivos políticos.”
Tanto assim foi que estadistas não-revolucionários da América Latina se preocuparam com o episódio de Cuba e em seguida com a questão relativa ao golpe militar no Peru em 1962 – na verdade, as principais nações latino-americanas naquele momento tentaram resistir, sendo elas Brasil, Argentina, México e Chile.
Como forma de disciplinar o continente e garantir sua dominação após uma onda de governos nacionalistas, os Estados Unidos buscaram robustecer seu predomínio de outras formas, “sobretudo através das próprias Forças Armadas dos Estados latino-americanos, utilizando-as para os vergar e reduzir à obediência que os recalcitravam”, como acrescenta Moniz Bandeira.
Foi a Junta Inter-Americana de Defesa (JID) da OEA que formulou uma “doutrina da ação cívica” para justificar intervenções militares e o papel central do exército.
Voltando para os acontecimentos recentes, no dia 10 de novembro a OEA publicou o informe sobre sua auditoria. Recomendaram “novas eleições”. A campanha de Mesa e da oposição subiu o tom e decretou: fraude!
A “auditoria” recebeu somente 250 denúncias e verificou 333 atas “questionadas”, ou seja, que não foram selecionadas aleatoriamente como amostra, mas pressupondo que nelas haviam irregularidades. 333 atas são menos que 1% do total de 34.555 atas eleitorais. Dessas 333, disseram que encontraram “irregularidades” em 72 atas, 0,2% do total de atas e o equivalente a 23% da amostra. As irregularidades são parciais e se relacionam com possíveis erros procedimentais. São representativas?
Nota-se ainda que, mesmo com um número reduzido de atas, a “auditoria” durou menos do que o previsto. Por acaso, ela acompanhou o próprio ritmo do golpe de estado e o momento de maior tensão que havia se acumulado no dia 9 de novembro.
Para “engrossar o caldo” e tentar deixar a posição mais sólida, a OEA também teceu críticas ao processo de transmissão de dados, questionando os mecanismos de verificação e sistemas de software de acordo com critérios que nunca estiveram previstos pelo sistema boliviano – os critérios até então eram aceitos pela oposição, que reconhece a contagem manual.
O que a OEA fez foi um relatório apressado para atender um objetivo político: a derrubada de Evo Morales. Não por omissão, mas por ação calculada, blefaram a “fraude” para manipular a opinião pública da Bolívia e dos outros países sem oferecer provas dessa fraude. Os “técnicos” da OEA acharam estranho que a proporção de votos em alguns distritos não correspondesse às de outros. Isso não é só uma falácia matemática, mas é acima de tudo um absurdo do ponto de vista da ciência política: existem diferenças geográficas nos comportamentos eleitorais, e no caso boliviano podemos observar a diferença brutal do voto em Evo Morales nas zonas rurais tanto nas últimas eleições como na apreciação científica de pesquisadores interessados no tema.
A sugestão, interpretativa, é de que a diferença se daria por métodos fraudulentos e não por características sociopolíticas e dinâmicas já conhecidas do comportamento eleitoral boliviano, em suas distinções entre zonas urbanas e rurais.
As inconsistências e a abertura para o questionamento não importam dentro do roteiro do golpe de estado, pois a declaração de “fraude” já é o estopim para a deflagração.
Quando Mesa acusou a fraude, faltavam ser contados quase um milhão de votos dos 7,3 milhões. Esses votos eram em sua maior parte do interior rural e do exterior, dos trabalhadores imigrantes (que na Argentina e no Brasil são a maioria favoráveis ao MAS). O candidato de oposição sabia que se a situação estava daquele jeito ela podia piorar, pois estava longe de ser favorito para os camponeses ou imigrantes. Ademais, os seus votos estavam sendo sangrados por um outro candidato, evangélico de extrema-direita.
Morales ganhou as eleições e com uma diferença suficiente para vencer no primeiro turno. Não há nada de impressionante nessa vitória: em 2005, na sua primeira eleição, o sindicalista rural teve uma vitória avassaladora conquistando mais de 50% dos votos contra um segundo lugar que não conseguiu ultrapassar sequer a marca de 29%.
Num espetáculo de hipocrisia, os representantes do candidato oposicionista continuavam acompanhando as contagens de voto nos centros eleitorais, enquanto os grupos de choque espalhavam destruição.
A aposta política é inteligente: o golpismo sabe que possui uma base forte na cidades e já possuía quadros e movimentos preparados para a disputa das ruas, onde importa mais a dinâmica de política de massas, diferente do mundo rural, extenso, de baixa densidade demográfica, mais tradicional e cuja mobilização depende da adesão a alguma modalidade de sindicalismo rural e infraestrutura nacional para levar as pessoas para as cidades.
Mais do que isso, partindo da suposição que esses redutos de apoio a Morales são lugares de organização camponesa, é justo inferir que eles têm uma má memória de Mesa, devido aos grandes protestos no início dos anos 2000. É uma suposição arbitrária, de fato, mas aqui não pretendemos fazer um relatório técnico que eventualmente serve de estopim para o golpe de estado – só queremos estimular o senso crítico dos oportunistas que vão nos acusar de “arbitrários” enquanto acreditam na “santidade técnica” da OEA.
Os grupos de choque, cumpriram a função de paralisar a capacidade de resposta dos movimentos populares através do terrorismo.
A meia-lua reacionária: do separatismo ao discurso constitucional
A oposição a Evo Morales se concentra em alguns estados bolivianos que já ensaiaram sublevação no passado. Esse conjunto é chamado de media luna (meia lua) e desde a eleição de Evo Morales em 2005 (mandato iniciado em 2006) se articularam em um movimento separatista que ganhou força como oposição ao presidente indígena. O espaço formado por Tarija (los llanos, no sul) e pelos departamentos orientais de Santa Cruz, Beni e Pando.
Desde lá se multiplicavam ataques por grupos radicais de direita que usavam consignas anti-indígenas. Havia até planos de criação de um exército a partir dos paramilitares, sob o comando de Eduardo Rózsa, boliviano-húngaro que lutou na guerra iugoslava ao lado dos croatas.
Também um croata liderava o Comitê Civil de Santa Cruz na onda separatista, Branko Marinkovic, oligarca com formação empresarial nos Estados Unidos – atualmente, mora em São Paulo. É um dos pivôs do discurso de identificação automática dos cocaleros com o narcotráfico.
O movimento desestabilizou o país propondo a separação das zonas onde se encontra a riqueza energética e a grande produção agrícola do país. O discurso prossegue até hoje: de um lado se recusam a usar o termo “plurinacional”, defendendo a “república”, de outro defendem o separatismo de um “país falido”.
Dada a sobrevivência de Evo Morales no poder e o sucesso de seu governo, que conta inclusive com massas de apoiadores na meia-lua, o único projeto que efetivamente faliu foi o do separatismo, que em compensação serviu de base para a oposição se organizar em linhas pseudo-constitucionalistas e de discurso republicano.
Uma das grandes críticas e razões da oposição contra Evo é o referendo de 21 de fevereiro de 2016. No final de 2015, o tribunal constitucional havia aprovado a pergunta do referendo que foi preparado pelos parlamentares do MAS para possibilitar a reeleição do presidente da república.
A ideia da consulta era realmente definir a candidatura de Evo Morales para um quarto mandato na presidência da república.
Durante a campanha pelo “Sim” (defendido pelo MAS, o partido de Evo) estourou um escândalo danoso que foi avançado pela mídia boliviana e espalhado pela rede: Evo Morales teria um filho desconhecido do público com a empresária Gabriela Zapata. A “revelação” surgiu pouco tempo antes do referendo, no dia 3 de fevereiro – meios internacionais como a BBC e a CNN deram cobertura completa ao escândalo. Zapata era executiva de uma empresa chinesa na Bolívia, a CAMC, que possuía uma série de contratos milionários com o setor público.
O escândalo foi sério, com o jornalista Carlos Valverde, que fez a denúncia, apresentando um documento de “certidão de nascimento” que comprovaria o tal filho. O documento se revelou falso e o jornalista admitiu que não havia criança três meses depois. Ao mesmo tempo, em maio de 2016 a justiça boliviana também declarou a inexistência de tal criança.
A comissão investigava do congresso responsável por investigar a acusação de tráfico de influência só chegou à conclusão final em dezembro de 2017, não encontrando implicações contra Evo Morales, mas desvelando a público os negócios da empresária que eventualmente enfrentou uma condenação na justiça (está cumprindo pena de 10 anos na prisão – Zapata usava diversos tipos de falsificações em seus negócios, se apresentando no estrangeiro como representante do governo e se dizia advogada, dentre outras mentiras).
Esse foi um dos temas centrais da “guerra suja” que Evo e seus apoiadores denunciaram depois do referendo, que buscaram medidas para identificar bots e sistemas atuando na rede durante o referendo. O resultado foi apertado: 51,3% dos eleitores disseram “não” para alteração, com uma diferença de 136 mil votos (e 260 mil votos que foram nulos ou em branco).
Além do fator da propaganda enganosa durante o referendo, o trecho da constituição que impõe limites à reeleição não foi incluído na redação original da Constituinte – soberana – mas é sim uma concessão a partir de negociações com a oposição, que fazia ameaças separatistas e de sabotagem do processo de voto com métodos semelhantes ao que vemos agora.
Por isso, o partido de Evo continuou bancando que ele se candidatasse como um direito do povo de poder eleger quem quiser: em 2017 um grupo de parlamentares do MAS tentou reverter a derrota de 21 de fevereiro com uma postulação de “inconstitucionalidade abstrata” ao Tribunal Supremo Constitucional do país. O tribunal constitucional interpretou que uma série de artigos que usam as expressões “por uma só vez de maneira contínua” e “de maneira contínua por uma só vez” como incoerentes com os princípios fundantes da Constituição Política, portanto inconstitucionais. Isso não só alterou o artigo 168 sobre a reeleição para presidente, mas tornou todos os cargos abertos a postulação e reeleição permanentes. Apesar de notícias falsas e a “guerra suja” na comunicação não terem sido o objeto da matéria constitucional, essa foi uma das justificativas centrais do “oficialismo”, que recorria a uma argumentação muito similar ao que os defensores da permanência da Grã Bretanha na União Europeia avançaram em sua pauta de revisão do Brexit – muitos desses defensores são os mesmos liberais europeus e os mesmos jornais que chamam o recurso de Evo ao tribunal constitucional (o que é possível e legal) uma “manobra anti-democrática”.²
Fala-se que o “tribunal constitucional é formado por aliados de Evo Morales”; cabe acrescentar que os juízes da suprema corte boliviana foram eleitos pelo voto popular em 2011 (junto dos juízes da suprema corte de justiça, do tribunal agro-ambiental e os do conselho judiciário). Foi a primeira vez que isso aconteceu em um país latino-americano. Antes os juízes eram eleitos diretamente pelo Congresso, agora cabe à Assembleia Legislativa Plurinacional nomear os candidatos. O Congresso eleito em 2009 tinha uma maioria de dois terços para o partido de Evo.
Para todos os efeitos, Evo conquistou o direito de se candidatar novamente graças ao tribunal constitucional. A oposição, como resposta, articulou em 2017 o Movimento 21F. Esse movimento organizou “plataformas cidadãs” para protestar contra a candidatura de Evo Morales, realizando manifestações principalmente em Cochabamba, Santa Cruz e Tarija. Buscavam projetar uma imagem de “movimento espontâneo e sem líderes”, mas suas mobilizações não lograram grande sucesso e foram contrapostas por manifestações mais massivas favoráveis a Evo Morales, formadas pelas bases tradicionais de movimentos sociais do masismo.
Não obstante as dificuldades nos anos de 2017 e 2018, o Movimento 21F serviu como plataforma, guarda-chuva e acobertamento para as movimentações de 2019, dissimulando líderes e grupos radicais em uma “plataforma democrática de manifestantes civis”. O seu formato é mais similar ao modelo das revoluções laranjas e ao que tentaram reproduzir no Brasil na forma do Movimento VemPraRua.
Os comitês cívicos e os grupos de choque
A vanguarda da ofensiva foram os grupos de choque saídos principalmente de bases políticas especiais, os “grupos cívicos”, e, acima de todos, o Comitê Cívico Pro Santa Cruz.
Na Bolívia usaram uma terminologia que chamou o golpe de “golpe cívico”, o que só pode ser entendido a partir do contexto boliviano e a construção histórica dos chamados comitês cívicos.
No superficial, esses comitês surgiram nos anos 50, em reação à centralização do governo revolucionário do MNR, que havia feito desaparecer os governos municipais. Neles se entrincheiraram as velhas oligarquias que haviam sofrido sérias derrotas na política nacional. São corporações políticas e empresariais.
Os grupos cívicos são hoje uma forma de organização alternativa a organizações populares e às juntas de vizinhos, capaz de garantir um tipo de socialização política burguesa, unindo diferentes classes e setores sociais, principalmente as classes médias e altas, em uma articulação urbana, mais formal e em nome de uma “identidade da cidade”. Os grupos cívicos se tornaram uma resposta organizacional às formas de auto-organização popular – e ainda mais às revolucionárias – usando esse nome “cívico”, como forma de demarcação ideológica republicana em negação ao governo de Evo Morales.
Representam a defesa de uma ideologia democrática em um sentido burguês (o que, eu devo alertar aos leitores mais novos, não é um caracterização “negativa” ou “positiva”, mas histórica e moeda comum mesmo em defensores desse ethos burguês, revolucionário, dos 1800): a defesa do republicanismo, das leis, das instituições, do “ideal da República” contra a esquerda “ideológica”, o caudilhismo, a corrupção, a ilegalidade, contra os movimentos sociais representados como grupos de interesse, dentre outras imagens próprias.³
Eles possuem grupos de jovens treinados para paralisar cidades e fazer bloqueios. Daí surge o terror cívico.
O Comitê Cívico de Santa Cruz é uma organização burguesa, dominada por uma elite local tradicional, ligada a atividades agrícolas, comerciais e industriais. Sua organização deriva de um regime estatutário e do direcionamento financeiro, sujeita à influência decisiva de notáveis endinheirados. É uma organização capaz de mobilizar as massas em manifestações, o que não decide de uma vez por todas o caráter de uma insurreição ou golpe de estado.
Foram mobilizadas a partir de uma noção de cidadania abstrata antes de tudo, não a partir de bases, não como auto-afirmação política, mas como afirmação temporária de um ponto em comum que é a rejeição de Evo Morales.
Como as “associações civis” na Colômbia, mas com uma história muito mais profunda, os comitês cívicos servem para encobrir estruturas paramilitares. No caso do Comitê Cívico de Santa Cruz, há um movimento político jovem, extremista, a União Juvenil Cruceñista.
Esses jovens têm um histórico de violência que remete a momentos anteriores à eleição de Evo Morales, como ataques contra manifestantes que lutaram contra o neoliberalismo em 2003. Espancavam e chicoteavam camponeses que marcharam contra o governo de Sánchez de Lozada, batiam e apedrejavam estudantes que se mobilizavam contra o movimento pela autonomia de Santa Cruz, emboscavam militantes sem terra e atacavam a infra-estrutura da rede estatal de televisão. O símbolo deles é o uso de bastões, que foram usados para fazer ataques em bairros operários que votam no MAS em Santa Cruz.
Sua ideologia é exaltação da superioridade de Santa Cruz: “defesa da raça”, a defesa de um bastião “ocidental” em contraposição ao indígena e um regionalismo intolerante – o índio como figura do atraso e do anti-cristianismo.
Até a embaixada dos Estados Unidos, em uma comunicação vazada, os caracterizou como racistas e outros defensores menos radicais da autonomia consideram os extremistas um embaraço, uma mancha neofascista.
Mas nem só de extremistas se alimenta um golpe.
Primeiro foram os jovens de classe média usando o método que ficou célebre na Venezuela como “guarimba” e batizou os movimentos anti-chavistas violentos: prender uma corrente nas duas margens de uma avenida para bloqueá-la. Na Bolívia o método foi chamado de “La Pitita“.
Grupos de choque sem tanta profundidade ideológica, comprometidos com a oposição de direita, nascidos dentro do 21F e ligados a outros comitês cívicos – como o de Potosí – também atuaram. O Comitê Civico de Potosi – o COMCIPO – se destacou nesse ano exigindo que a região ficasse com os royalties da produção de lítio. E antes deles vieram outros mais moderados, essenciais para cobrir as ações radicais. O melhor exemplo é o CONADE, movimento estudantil liderado por Waldo Albarracin, reitor de 60 anos da Universidade de San Andrés, e que defende “a liberdade e os direitos humanos”. Foram responsáveis pelas técnicas clássicas de revolução colorida, marcando presença nas vigílias.
Quando os golpistas escalaram a violência, o propósito do roteiro foi criar um clima geral de pogrom, normalização da violência e perseguição contra membros do governo e do MAS. Sedes do partido e de movimentos sociais se converteram em alvos. Assim começaram os sequestros, os ataques contra casas, as humilhações e os linchamentos, como a prefeita que foi humilhada e pintada de vermelho, ou o presidente do sindicato dos radialistas que foi amarrado em uma árvore.
No dia 9 de novembro, cercaram e invadiram a Bolivia TV, sequestrando seus funcionários e mudando a programação para uma favorável ao golpe.
Em Cochamba, um grupo de choque formado por motoqueiros cometeu diversos delitos pela cidade, incluindo vários ataques que foram registrados contra mulheres em vestimentas indígenas. Mais do que o fenótipo, as vestimentas na Bolívia são historicamente um sinal de distinção entre castas e raças.
Na fase final de sua ofensiva, Camacho estava com seu conselho de guerra hospedado em um hotel na zona sul de La Paz e os grupos de choque começaram a se articular para mandar homens para a capital, no intuito de atacar o palácio presidencial. No palácio presidencial, Camacho e Marco Pumari, líder do Comitê Cívico de Potosi, protagonizaram ao lado de um pastor uma cena que se espalhou pelo mundo: a Bíblia sobre a bandeira boliviana, “Pachamama [Mãe Terra] nunca mais vai entrar aqui”, decretaram.
O golpe não se concretizou, no entanto, devido a ação desses grupos. Era necessário o apoio ativo das forças de repressão.
Por alguns dólares a mais: a Polícia se incorpora à fase armada do golpe
O roteiro entrou em uma nova fase com o “motim policial” no dia de 8 de novembro. A polícia é uma peça fundamental de uma politização e do monopólio das forças repressivas a favor da oposição.
Foi a ação policial – e em alguns casos, a inação – que permitiu a livre atuação de grupos extremistas e paramilitares que cumpriram a função de grupos de choque do golpe. O motim policial é a senha para a escalada do golpe em uma nova fase, para um salto nas formas de violência.
Importantes guarnições policiais se amotinaram não perante uma ordem de repressão contra manifestantes, mas o fizeram simultaneamente em cidades importantes e com uma pauta de reivindicações corporativas que se converteram em exigência política (a renúncia de Evo). Guarnições de Sucre, Santa Cruz, Tarija e Oruro, seguindo a polícia de Cochabamba. O fizeram de maneira coordenada e com manifestantes previamente posicionados, mas os atos foram retratados na mídia como atos espontâneos, como parte de uma grande comoção por conta de Evo Morales, intensificando a pressão contra o governo e a tensão geral nas populações.
Isto é, quase tão importante quanto as ações espetaculares de motim com bandeiras, lemas e slogans, é a cobertura midiática e a exposição desses atos. Lembremos que neste ano pequenas ações de militares rebeldes na Venezuela foram retratadas, num primeiro momento, como o início de grandes rebeliões antichavistas.
As notícias traziam retratos dos acontecimentos como inevitáveis, implacáveis e expansivos, ou com pequenos traços de legitimação contrapostos à “alegação de Evo Morales de que é um ‘golpe de estado'”. Meios brasileiros publicaram a mesma matéria da agência AFP com o seguinte título: “Policiais se amotinam na Bolívia contra repressão a opositores”.
O texto da AFP não expõe as pautas corporativistas dos policiais, nem oferece um contexto melhor (pela própria técnica dessa modalidade) e tão pouco se preocupa muito em mostrar o contraditório.
As polícias fizeram uma espécie de leilão golpista. Exigiram aumento salarial de 10%, armamento de dotação individual, aposentadoria integral, aplicação de um plano de profissionalização, habitação para cada um dos policiais, e anulação da lei 101, que regula o regime disciplinar. Evo Morales chegou a ceder a três reivindicações – anulação do regime disciplinar, aumento salarial e aposentadoria integral – mas a concessão não deteve os policiais.
Num leilão golpista, as forças medem os benefícios que podem ganhar das partes interessadas na consecução ou impedimento do golpe. No caso da polícia boliviana, o problema não se resume no oportunismo do momento, mas sim em uma construção política mais longa das relações da polícia com o governo.
Não é a primeira vez que se amotinam – em 2012, as forças policiais haviam se amotinado com particular violência. Um relatório do consultor político Luis Carlos Campero, feito no final 2012 para a fundação Friedrich Ebert Stiftung, expõe um retrato geral da polícia boliviana. A instituição é marcada pela politização (jogo de interesses), profissionalização precária, atomização e heterogeneidade estrutural (apesar de em tese ser uma polícia nacional, centralizada), corrupção e um sistema de recompensas – para o controle político – baseado em prebendas, dentre elas a impunidade. Além disso, ofertam seus serviços no mercado, de forma privada.
O primeiro grande conflito de Evo com os policiais que levou à crise de 2012 foi a criação de um serviço geral de identificação nacional e um serviço geral de licenças, tirando a jurisdição da expedição de documentos das mãos da polícia e passando-a para os ministérios de Governo e da Justiça. Na lei de 27 de Junho de 2011 feita para esse fim, o artigo 11º sobre “Financiamento” se refere diretamente aos “recursos que a Polícia Boliviana deixará de receber, pela transferência dos serviços de outorga das Cédulas de Identidade a favor do Serviço Geral de Identificação Pessoal – SEGIP”.
A lei não surgiu só como um esforço de modernização do sistema de licenças e identificação, mas como resposta aos escândalos de corrupção envolvendo a Polícia Boliviana, que controlava um amplo sistema burocrático que permitia grande influência na vida civil e o exercício de certos poderes no mínimo quase discricionários, além das oportunidades de corrupção. O controle das licenças era uma maneira de controlar os cidadãos e localidades; Evo Morales foi bem claro sobre o objetivo da lei em relação à polícia: “que a instituição melhore sua imagem e recupere sua missão principal que é dar segurança ao povo, não cobrar recursos do povo”.
A medida não foi bem recebida pela polícia, que respondeu com rechaço e boicote às novas entidades, atrapalhando seu funcionamento e adulterando os bancos de dados que transferiam para as novas instituições. As novas entidades informaram a existência de pelo menos 400 mil cédulas adulteradas, clonadas ou duplicadas.
Um olhar mais crítico pode julgar o conflito de Evo Morales com a polícia como um esforço de construção do estado e das instituições perante uma única instituição conservadora, um modelo antiquado de polícia.
Morales também conquistou a oposição da polícia com a lei 101, que cria um novo regime disciplinar. Além disso, os policiais também ressentiam sanções devido ao uso de “excesso de força” em repressão de movimentos como a repressão de um acampamento indígena em Yucumo.
Morales investiu nas forças policiais durante seu governo, mas também desafiou tradições organizacionais em suas nomeações de chefia. A relação foi conturbada e terminou como vemos agora.
Tendo consciência desse cenário, podemos assumir uma compreensão mais profunda dos gritos que os policiais amotinados davam de “la policia se respeta, carajo“. Ainda que o grito “se respeita, caralho” seja usado de várias maneiras e por várias forças políticas na Bolívia, a manifestação policial tem uma dimensão corporativa e política própria.
Foram policiais que prenderam, ilegalmente, a presidente e o vice-presidente do Tribunal Supremo Eleitoral, María Eugenia Choque e Antonio Costas, além de outros 33 funcionários do tribunal. Foi um oficial da polícia que declarou que havia uma ordem para prender o “senhor presidente”(sic) Evo Morales.
A senha dos motins trouxe um conjunto de ações militares irregulares coordenadas. Os mesmos policiais que supostamente “se recusavam a reprimir” estavam assumindo consignas políticas, fazendo gritos provocadores, rasgando a bandeira plurinacional wiphala dos seus uniformes enquanto gritam “somos república!” e, mais importante, se associaram a grupos paramilitares. Eventualmente, após a deposição de Morales, policiais se uniram aos paramilitares para caçar partidários do presidente deposto.
Se antes os grupos de choque atuavam no meio do caos das manifestações – seguindo o modelo aplicado pelos neofascistas na Ucrânia e hoje replicado por grupos de ação em Hong Kong -, atuando na linha de frente e momentos de dispersão e procurando incitar incidentes com as forças de repressão, agora a conivência organizada das forças de repressão permitia uma atuação mais aberta de controle territorial e expansão geográfica. A adesão policial também permitiu um maior acesso ao armamento, equipamentos de proteção e comunicação (ou, para não dizer acesso, a possibilidade de utilizá-los ostensivamente sem atrair assédio policial).
A adesão de unidades policiais cria um cordão de aparente proteção institucional e uma margem de impunidade.
Carta no coturno: os militares, culminação e apoteose do golpe de estado
Nem a organização política de Mesa, nem os paramilitares de Camacho e nem a sublevação policial seriam possíveis sem a cartada final: a carta no coturno.
O cretino diz que “a força popular derrubou Evo”. Realmente icônico: uma suposta insurreição que não corresponde em nada à tradição acumulada de insurreições bolivianas e nem à infraestrutura das organizações populares, que derrubou Evo Morales com a “força popular”. Na visão mais idílica, bastaram alguns comícios menores do que os favoráveis ao governo, algumas vigílias e alguns piquetes, para que a “força popular” fosse irresistível e derrubasse o “ditador Evo Morales”.
A falsificação cantada em coro único pela mídia corporativa e pelos oportunistas de esquerda ficou escancarada no mesmo dia do golpe. Morales saiu por causa dos militares.
Os militares apoiaram – e estiveram presentes – na posse irregular e ilegal de uma nova presidente, Jeanine Áñez, uma senadora inexpressiva da extrema-direita que virou a porta-voz da vez do golpe de estado.
Logo depois disso, engrossa a resistência popular e as manifestações contra o golpe, principalmente no oeste da Bolívia e acima de tudo em El Alto e La Paz. Então se torna absurdo dizer que Morales não tinha apoio popular. Pelo contrário, são os novos democratas que iniciam uma repressão sangrenta em uma operação de larga escala.
O exército, que fez pose de “neutro” durante a campanha de terror reacionário, aceitou a tarefa de contribuir para a “segurança nacional” participando da repressão dos anti-golpistas. Tudo com direito a fuzis, carros blindados, toques de recolher e carta branca para a violência.
A estratégia violenta da oposição pressupõe esse tipo de culminação. Diferente da insurreição revolucionária, a violência dos contras é puramente negativa, destrutiva, voltada para desestabilizar, aterrorizar e criar tensão o suficiente para a intervenção de uma “força maior”. Não é para construir um projeto revolucionário ou dar solidez para uma organização política, cria “zonas de terror” e não “zonas liberadas”, sequer servem para ampliar os fundamentos de uma liderança como de Camacho. As ações não são dirigidas à tomada direta do poder ou à construção de outro poder positivo, “fazer uma revolução”, aplicar um programa. Sua função é a sabotagem e a abertura para uma intervenção militar. Organizações populares como a Federação de Juntas Vecinais de El Alto e movimentos camponeses têm condição de desafiar o Estado ao mesmo tempo que criam uma situação de poder alternativo; os grupos de choque não.
Como Evo Morales não conseguiu ficar no poder mesmo tendo o voto popular, o apoio de movimentos populares, 2/3 do parlamento, estar cumprindo seu mandato legal, ter reconhecimento do Tribunal Constitucional, estar disposto a negociar e fazer novas eleições? Porque os militares o derrubaram.
E como uma Añez desconhecida conseguiu ser empossada presidente de forma ilegal, com menos de um terço do parlamento e ainda assim editar decretos, lançando uma repressão sanguinária contra o povo? Porque tem apoio dos militares.
O tal “Tribunal Constitucional formado por aliados de Evo” criou um argumento de reconhecimento da “situação Añez”.
A lei, geralmente, avaliza os acontecimentos da política. Ela reflete, de alguma maneira, as realidades da força, do poder da baioneta.
O próprio argumento do Tribunal é claro:
“Um comunicado oficial do TC cita uma Declaração Constitucional de 2001 que ao interpretar artigos referentes à sucessão presidencial estabelece que “o funcionamento do órgão executivo de forma integral não deve ser suspenso”, pelo qual a presente na linha de sucessão assume ‘ipso facto’ a presidência.”
E isto quer dizer que eles vão reconhecer qualquer presidente que esteja na cadeira. Isso dá ao TC uma certa abertura de manobra: o importante é a “manutenção da presidência”, um princípio de continuidade da instituição antes de tudo. Os que têm alguma familiaridade com debates constitucionais e filosofia do Estado compreendem que esse argumento é comum ao presidencialismo de emergência e lógicas de exceção.
Podemos imaginar que a função do tribunal aí é prezar pela preservação da ordem jurídica antes de tudo. Eles sabem muito que se assumissem uma posição distinta, de desafio, seriam todos derrubados de suas posições. Daqui está a nossa posição do Carta no Coturno: juízes do supremo não podem contra baionetas.
Añez, que se tornou a face institucional do golpe e o ponto de contanto da presença militar, da mesma maneira que o paramilitar Camacho, exibe a Bíblia como um troféu que dá licença para matar, enquanto o governo golpista já inicia intentos de privatização, colocando interventores da empresa privada Amaszonas para gerir a empresa aérea estatal boliviana BOA.
Notas:
¹ Ainda na constituição anterior, em 1997 uma reforma eleitoral reservou metade das cadeiras parlamentares para o sistema distrital majoritário, onde vence um candidato com mais votos (não com a maioria – é um sistema de voto de pluralidade, não majoritário, conhecido como first-past-the-post, ou o “o que chega primeira ganha”). Ainda hoje, 63 cadeiras do parlamento estão reservadas para esse sistema e as outras 60 são para um sistema de representação proporcional em lista partidária fechada. E a partir de 2004 movimentos sociais, indígenas e civicos podem participar das eleições ao lado dos partidos.
Esse sistema eleitoral é exposto no trabalho de Betilde Munoz (“Electoral Rules of Bolivian Politics – The Rise of Evo Morales“, de 2008), que argumenta que ele incentivou a regionalização das forças políticas, a busca por bases de poder regional. É discutível em que medida esse sistema pode enfraquecer a representação partidária ou fortalecê-la, mas de toda premiava bases regionais – seja ela de grupos cívicos, movimentos sociais ou partidos pequenos como a Nova Força Republicana (NFR) e a Frente da Esquerda Revolucionária (FRI) que tinham força na disputa da cadeira de distritos específicos. Esse sistema incentivou uma “municipalização” da legislatura, já que os candidatos distritais fazem campanhas similares a uma campanha por prefeituras.
² Problemas similares aparecem não só nas diversas formas que inimigos do brexit estão vislumbrando para evitar a saída da UE (que pode ser o parlamento, a justiça ou um novo referendo), como em outros momentos da história – o referendo de armas no Brasil. Decisões controversas em cortes supremas não são incomuns: lembremos que a Suprema Corte dos Estados Unidos desautorizou a continuação da contagem de votos na Florida no fim dos anos 2000, impedindo a revisão da votação daquele estado, legitimando uma possível fraude e as irregularidades que foram constatadas (que foram tratadas depois por uma reforma eleitoral em 2004).
³ Podemos encontrar modelos de referência aos comitês cívicos na Colômbia e na Venezuela. Na Colômbia a estrutura de comitês cívicos locais serviu para articular empresários, agricultores e populações locais para encobrir a atividade de grupos paramilitares que serviam para contrapor a atividade política camponesa, sindical e guerrilheira.
Na Venezuela, a oposição anti-chavista adotou um ethos republicano municipalista contra o chavismo representando por movimentos rojos e pela proposta comunalista que implicaria no fortalecimento de movimentos sociais em detrimento das estruturas formais da história política venezuelana, como as alcadías.
novembro 26, 2019
https://revistaopera.com.br/2019/11/26/bolivia-licoes-de-um-golpe-de-est...
Bolívia: lições de um golpe de estado (parte 2)
André Ortega
Geopolítica e imperialismo no coração sul-americano
“Os Andes
Vulcânicos elevam cumes calvos,
Circundados de gelos, mudos, alvos,
Nuvens flutuando – que espetác’los grandes!
Lá, onde o ponto do condor negreja,
Cintilando no espaço como brilhos
D’olhos, e cai a prumo sobre os filhos
Do lhama descuidado; onde lampeja
Da tempestade o raio; onde deserto,
O azul sertão, formoso e deslumbrante,
Arde do sol o incêndio, delirante
Coração vivo em céu profundo aberto!”
(Sousândrade, O Guesa, trecho do Canto Primeiro)
Jaime Mendoza foi um pensador nacional boliviano e pioneiro da geopolítica latino-americana que expôs a seguinte verdade: o maciço boliviano é a unidade geográfica sobre a qual surge e se desenvolve a nacionalidade boliviana.
Essa verdade geográfica é indispensável, como é o reconhecimento do índio.
A partir disso, compreende a tarefa da integração interna, a partir de uma unidade moral e política que nasce nos Andes. Se os bolivianos não compreendem a verdade da base geográfica do país, correm o risco é de testemunhar sua destruição total.
A visão dos Andes não é dar as costas para o leste e para Atlântico: só é possível uma rota para o Atlântico e o engajamento com o Brasil e a Argentina a partir da base andina. A gravitação humana, os grandes movimentos, foram do Maciço na direção nas planícies, da pré-história até os dias de hoje.
Trata-se da compreensão de que a integração da Bolívia – o destino da Bolívia – está no maciço andino. O maciço boliviano tem vantagens para a comunicação terrestre entre o Pacífico e o Atlântico, as grandes vias continentais com grandes cidades no meio do caminho.
Santa Cruz não tem a mesma vocação, mesmo sendo uma grande cidade, capital de uma grande província e com grande cultura. À capital Santa Cruz cabe sua autonomia cultural dentro de uma Bolívia, que existe graças e através do maciço. De outra forma, um “nacionalismo cruceñista” é uma distorção, é a vanguarda da dissolução e do separatismo boliviano. A cidade perde o seu brilho de ser o coração distinto de todas as joias coloniais e todas as grandes cidades do altiplano, para no lugar representar um cosmopolitismo dissolvente, um atlantismo fora de lugar, a fantasia de produtores agrários.
Sim, essas províncias orientais tem sua geografia própria, sua composição humana, sua distinção cultural, mas do ponto de vista geopolítico são parte de uma Bolívia que se eleva no maciço central da Cordilheira dos Andes.
Não há tal coisa como um separatismo inerente, essencial, como um fenômeno isolado e exclusivo. O separatismo se articula como parte de movimentos internacionais. Ele corresponde à geopolítica.
A movimentação geopolítica é como a movimentação de placas tectônicas – golpes e revoluções são terremotos e erupções. Não há golpismo sem a permissão, a anuência e o consentimento de Washington. Esses senhores que protagonizaram o golpe na Bolívia não se mexem fora de um roteiro que é escrito nos Estados Unidos.
Já vazaram áudios envolvendo a trinca de senadores norte-americanos de sempre quando o assunto é intervencionismo na América Latina: Marco Rubio, Ted Cruz e Bob Menéndez. A coletânea de áudios publicados no Nueva Tribuna demonstra a conspiração militar e são um ótimo passeio pelas técnicas do golpe.
Mais detalhes devem se revelar com o tempo, mas o CELAG já publicou um mapeamento de pessoas e instituições na rede de procedimentos da intervenção norte-americana.
Alguns falam de um “desinteresse” de Washington, e outros reduzem o interesse a recursos. Estão enganados: os Estados Unidos perseguem objetivos geopolíticos, de dominação continental. Jogam com uma estratégia de longo prazo e que contempla diversas considerações.
A estratégia dos Estados Unidos para a Bolívia – a do Bloco Andino – está consolidada desde o fim dos anos 90, antes de Evo Morales ascender à presidência. A defesa de medidas neoliberais na América Latina. No imediato, o objetivo dos Estados Unidos é colocar a USAID e a DEA de volta na Bolívia.
Mário Travassos, brasileiro, e Carlos Badía Malagrida, espanhol, foram grandes pensadores da geopolítica que entenderam o papel da Bolívia sobre a integração latino-americana. A partir deles, Golbery Couto e Silva descreveu em sua teoria a Bolívia como “zona de soldadura” do espaço geopolítico sul-americano.
Para o pensador espanhol, a Bolívia estava submetida ao “destino” do Prata. Esse destino pode não constituir hoje um expansionismo franco dos argentinos, mas se mantém como chance de separação e intervencionismo. Para os bolivianos, a Bolívia tem “três destinos”: o Pacífico, o Amazonas e o Prata.
Para Malagrida, a Bolívia, por se localizar em uma área de junção das regiões platina, amazônica e andina, acaba sendo um empecilho para o processo de integração continental, enquanto para Travassos este país é ao mesmo tempo a área de confrontação Brasil-Argentina e a chave para que o Brasil conquiste seus objetivos estratégicos.
Malagrida, em suas reflexões sobre a Doutrina Bolívar, também faz críticas ao prócer venezuelano especificamente pela fundação da Bolívia, como uma arbitrariedade geográfica que desarticulou a integração territorial da América do Sul – e é por razões semelhantes que hoje a Bolívia ocupa um papel central, de “árbitro e mediador” da integração latino-americana, por ser um centro, uma transição entre os distintos espaços geográficos identificados por Malagrida quando ele pensou nas novas confederações americanas organizadas em concordância com os fatores naturais e geomorfológicos.
Vargas articulou a rodovia que liga Corumbá a Santa Cruz de La Sierra seguindo o pensamento de Mário Travassos. O general argentino Juan Enrique Guglialmelli enxergava a balança de poder regional pendendo para o lado do Brasil graças a seus projetos de integração territorial e a ligação litoral – interior central; ligação com os países vizinhos, seguindo a orientação de Travassos.
Travassos concebeu a integração continental da América do Sul a partir de grandes projetos de infra-estrutura, com a Bolívia ocupando o papel central, especificamente o triângulo estratégico formado por Sucre – Santa Cruz de La Sierra – Cochabamba. A análise geopolítica vê na Bolívia o centro dos dois grandes antagonismos geográficos da América do Sul: o antagonismo entre a bacia do Prata e a do Amazonas; o antagonismo entre a zona do Pacífico e a zona do Atlântico, com o continente cortado por uma espinha dorsal que é a Cordilheira dos Andes.
Foi em uma leitura pervertida de Travassos que os militares reacionários que governavam o Brasil em 1970 bancaram o golpe de estado na Bolívia, como parte de uma estratégia de cercar a Argentina. A Operação Condor foi uma grande contrarrevolução antiperonista se pensarmos na eleição desse movimento como inimigo estratégico, lembrando que haviam vínculos sólidos do peronismo com o nacionalismo revolucionário boliviano e vínculos não tão sólidos foram acusados no trabalhismo pelo golpismo no Brasil.
Essa referência à Argentina no século passado é importante para entendermos o funcionamento do pensamento estratégico norte-americano: se o peronismo estava organizado em várias frentes e era muito forte nas massas argentinas, ao ponto de naquele momento ter sobrevivido a diversos golpes de estado e reveses políticos, caberia então lutar contra ele em um plano continental, pressionando e isolando. Vale salientar que o peronismo chegou a ambicionar um bloco continental sul-americano, no mais longe a integração hispano-americana; também propôs uma “aliança tricontinental” dos não-alinhados do terceiro mundo.
Para os Estados Unidos não importa mais – como para Malagrida – quem vai liderar uma federação hispânica ou as heranças do vice reinado peruano ou do Prata, mas sim prevenir a todo custo a integração latino-americana, que surge como um novo tipo de alternativa política no atual estágio de modernidade capitalista (com seus mecanismos de integração técnica, institucional e de mercado – some isso com os chineses oferecendo crédito para mega-projetos de infraestrutura). Na verdade, Malagrida já tinha isso em suas preocupações, ao falar das duas “américas”: a América Latina e os Estados Unidos. Com uma proposta hispanista de integração latino-americano, Malagrida se coloca em oposição direta à Doutrina Monroe – o espanhol percebeu a maior ameaça para a América Latina no “Imperialismo saxão”.
O objetivo dos Estados Unidos na Bolívia é causar mais danos à independência e à integração latino-americana, controlar o coração de terra da América do Sul e desferir um golpe contra a multipolaridade. No mais, efetivamente se fecha um cerco contra a Venezuela e o próximo governo argentino.
Se formos cumprir o papel de integração continental que nos diz respeito – mas que é sabotado pelo agente dos Estados Unidos na cadeira presidencial do Brasil – necessariamente temos interesse em uma Bolívia independente.
Não basta ter a consciência abstrata da economia, das divisões políticas e da luta de classes – é preciso ter a dimensão concreta de nosso continente, nos seus vales, montanhas e na carne das pessoas, nos seus rios, na terra do ferro, da semente, do petróleo, do estanho, da cana e do café. E quando não existir nem semente, nem petróleo, nem ferro, nem açúcar e nem café, ainda viveremos e morreremos na América Latina.
Arte do golpe, arte da guerra: lições de golpe de estado
É verdade que não estamos lidando com a concepção mais clássica do golpe palaciano: um general de repente tomou o governo ou algum associado do governo se apossou dele. São atualizações da chamada revolução colorida.
É preciso preparar o terreno com manifestações e movimentos civis “não-violentos”, de ideologia genérica e organização esparsa. Esses movimentos vão direcionar as energias oposicionistas para uma política de rua.
Os “movimentos civis” e ONGs servem como forma de mobilização e são um bom destino para financiamentos relativamente abertos por partes de organizações como o National Endowment for Democracy.
O tom desses movimentos deve passar a ditar o máximo possível um processo de união da oposição contra o governo. No caso, há um modelo que teve sucesso na Nicarágua na criação de uma frente eleitoral anti-sandinista e que tentaram reproduzir na Venezuela.
Um golpe deve ser precedido por manifestações: isso foi compreendido há muito tempo se olharmos para exemplos como 1964 no Brasil (Marcha com Deus para a Liberdade) e o que foi feito depois contra Salvador Allende (o que incluiu um movimento de “greve” e técnicas muito similares ao usado na Bolívia hoje).
Os “movimentos civis” dão cobertura para grupos radicais de várias maneiras, em graus variáveis. Servem como frentes, podendo ser mais ou menos protagonistas. Pode ser uma organização política que contenha os grupos de choque, só uma distração de propaganda formada por civis ou como uma máscara direta de grupos de choque. Quando iniciam as manifestações e os confrontos, a sua atuação “pacífica” ou provocativa, desarmada, serve para cobrir a atuação de grupos armados.
A aliança e convivência, mais ou menos hipócrita, entre liberais e extremistas de direita, neoconservadores e neofascistas. “Jovens defensores dos direitos humanos” que fazem vigílias e métodos de “não-violência” na tradição de Gene Sharp e das Revoluções Coloridas convivem com mercenários, contras e fascistas – é o que vimos das “redes democratas” na Ucrânia dando guarda chuva de legitimidade para os fascistas.
Os grupos de choque, grupelhos políticos e facções que fazem o serviço sujo do golpe só estão fazendo um serviço, não estão propriamente conquistando o poder, mas abrindo o caminho. Os grupos de choque não são como grupo guerrilheiros, mas somente focos de desestabilização que cumprem uma função limitada e específica.
O golpe é maior do que os golpistas, seguindo uma lógica política e histórica que pode ser considerada maior até mesmo que o maior dos lobos que é Exército. O golpe não é para Añez, nem para Mesa e nem mesmo para Camacho (mesmo que ele seja o que tem mais a ganhar, por isso apostou mais alto); todos esses são figuras que ocuparam um lugar e que são facilmente descartáveis.
Num plano político e histórico, a negatividade é a marca principal do golpe, no caso: destruir Evo Morales e o processo liderado por ele, destruir o masismo. A orientação positiva dos golpes acaba sendo voltada para o exterior, para a hegemonia dos Estados Unidos e das instituições de mercado e o caos abre as portas para o neoliberalismo impessoal e acima de partidos políticos.
Os militares preferem agir sob uma aparência de constitucionalidade e neutralidade. Nada disso os impede, no entanto, de escorar a ação de grupos radicais ou conduzir operações de repressão contra movimentos populares.
O controle de vias de comunicação é importante – o que parece um tanto óbvio na particularidade boliviana de geografias variadas e terrenos difíceis, mas pensamos nisso por naturalizar o nível de integração rodoviária no Brasil e esquecendo o estrago que foi feito pelo movimento dos caminhoneiros. As vias de comunicação são um foco para os golpistas por impedir a mobilização do masismo e pelos bloqueios serem uma forma clássica de resistência.
Como em golpes “clássicos” (conforme descrito por Malaparte), o controle de meios de comunicação cumpre um papel fundamental. Nesse caso, as manifestações tiveram cobertura especial e preferencial em dois canais televisivos, mas os crimes estavam sendo expostos ao lado de uma contra-narrativa na Bolivia TV, que foi tomada. Ademais, as manifestações dependem de um sistema de agitação e criação de redes via WhatsApp, que também foi usado por grupos de choque para articular ataques rápidos. A resistência, por sua vez, acusou o governo de ter suspendido acesso em áreas críticas como El Alto. A título de exemplo, os fascistas italianos quando tomaram o poder não precisaram de nada parecido com o momento revolucionário do Biênio Vermelho (quando fábricas foram ocupadas e bairros tomados por socialistas italianos), só precisam de um cenário em que haviam reprimido as mobilizações socialistas e de um movimento rápido que incluiu ocupar as redações de jornais importantes.
Outra consideração clássica (de Luttwak) é de que o mais importante para um golpe é neutralizar oposição de forma antecipada nos primeiros momentos. Assim, uma das preocupações da violência golpista foi evitar que os apoiadores de Evo conseguissem se mobilizar e ocupar as ruas (derrotaram o movimento do 21F em 2017 assim) e, depois que o presidente caiu, reprimir com o máximo de violência. Ainda pela consideração clássica de como ter sucesso em um golpe de estado, é fundamental que forças políticas permaneçam neutras ou vacilantes, o mesmo se aplicando com importância às figuras de autoridade do estado e da burocracia repressiva. Um levantamento militar não precisa de maioria, só precisa de não-oposição. A neutralização antecipada da resistência faz parte do processo de “comprar quem deve ser comprado” no aparato, buscar garantias e oferecer recompensas, assim como ocupar posições que neutralizem e intimidem os adversários inconciliáveis (Luttwak falando de um golpe hipotético na França nos anos 60 trata da importância de se decapitar a liderança do Partido Comunista, para evitar que ele organizasse a resistência através de seus quadros e da CGT).
Forças policiais podem se sublevar. A sublevação pode começar a partir de uma pauta econômica e corporativa, para depois ser direcionada politicamente.
É irrelevante e errôneo dizer que os militares só estão interessados em aposentadorias e benesses materiais e que por isso não participam de golpes de estado. Não é preciso de uma maioria ativa, comprometida, e mesmo a minoria comprometida pode estar fechada com o golpe precisamente pelos seus interesses materiais. O general Williams Kaliman, que foi a face do golpe na Bolívia, logo se aposentou e foi morar nos Estados Unidos.
A cobertura internacional cumpre um papel central na legitimação do golpe, em especial quando ele não tem face ou programa claro.
É importante a existência de um fato político que sirva de estopim, um escândalo ou, nesse caso, a histeria com a acusação de fraude.
No que diz respeito à atuação dos Estados Unidos em específico, vemos algumas características frequentes:
Exigências enérgicas.
Mobilização diplomática.
Financiamento de grupos.
Articulação com os golpsitas para o “Dia D”.
Vínculo histórico com os golpistas.
A atuação de senadores como articuladores de interesses do império e mediadores de interesses dos golpistas.
Utilização de seus títeres regionais para operar o golpe ou agressão (no caso o Brasil).
Fidelidade questionável aos golpistas, mas a pretensão imediata de pautar o golpe (“é necessário que a Bolívia para se estabilizar faça….”).
A falência política do liberalismo
Apesar da Bolívia ser um livro aberto nas técnicas de golpe de estado, nós vimos a mídia corporativa e uma parte da intelectualidade progressista, junto dos centristas liberais, colocando todos seus esforços para negar isso. No mesmo dia do golpe apareceram esquerdistas dizendo que Evo caiu porque “perdeu as massas” e cretinos democratas reproduzindo o discurso de que o populista ambicioso foi derrubado por uma revolta popular; outros, os cretinos mais refinados, tentaram se distinguir da canalha cravando a bandeira na Coreia do Centro: nem Evo, nem extrema direita!
E o que a sua sensibilidade artística, democrática, cultural, intelectual, superior, idônea e assentadas nos cumes da moral tem a ver com a realidade do golpe de estado?
Os piores sócios do golpismo dentro da esquerda boliviana, brasileira e internacional, fecharam seus discursos com a narrativa golpista (por exemplo: a organização recém surgida mas com o ambicioso nome de “Coordinadora Nacional de Defensa de los Territorios Indígenas Originarios Campesinos y Áreas Protegidas”). Alguns, os inocentes e os irresponsáveis, até lavaram as mãos na operação do golpe, mas se assustaram com o surgimento de figuras como o “Macho Camacho”. Outras organizações, na quintessência da lógica pequeno-burguesa, fizeram criativas considerações oportunistas para igualar os dois lados da contenda, cumprindo o papel de provocadores associados ao golpe de estado – “Evo Morales e Camacho, dois machistas!”.
Uma parte desses elementos tendem a mudar de posição gradualmente, humilhados pelas imposições da realidade e pela força da extrema-direita boliviana.
Na esquerda, existem alguns “críticos” e “radicais” que creem que sua negação pode ser fundamentada a partir de uma crítica de Evo – ressentidos, se sentem radicais por negar a discussão do golpe de estado. O cretinismo oportunista confunde as coisas: ele confunde os erros, desvios ou “reformismo” do governo Evo Morales com o problema da caracterização do golpe.
Os alternativos que criam “desculpas de terceira via” e tiram o corpo fora cumprem um papel que já mencionamos que é crítico nos golpes de estado: neutralizar a possível oposição.
Enquanto esses intelectuais falam, o golpe teve a preocupação primária de neutralizar a resistência de antemão, decapitando as lideranças do MAS, sequestrando seus familiares, aterrorizando as bases, fazendo linchamentos. Os que fazem essas brilhantes invenções ou que estão na lista de pagamento de ONGs não são alvos prioritários.
Os intelectuais cobram “calma”, pedem para olhar para as nuances. Toda vez que ocorre alguma ofensiva imperialista em alguma parte do mundo, de imediato se alistam intelectuais progressistas para a tropa do nuance.
Alguns falam de “dissidentes do MAS”, “dissidentes de esquerda”. É claro que é legítimo que forças políticas no Brasil, ou qualquer pessoa que tenha seus valores e queira formular uma opinião, defenda dissidentes do MAS, ex-aliados de Evo Morales ou qualquer movimento alternativo. Mas isso deveria ser acompanhado por uma linha política, ou no mínimo uma linha argumentativa, e não um apelo moral e propagandístico.
Por que a ruptura de fulano-de-tal-que-era-do-MAS foi uma ruptura pessoal que não acompanhou os movimentos ou, na direção contrária, levou uma parte considerável dos movimentos? São questões válidas de se fazer.
O que a boa razão não pode aceitar é a tática sorrateira, típica de uma esquerda pequeno burguesa, de simplesmente legitimar as posturas internacionais hegemônicas com um “lavar de mãos” que aponta para alguma figura de esquerda como argumento final contra um Evo Morales.
Essas evocações de “esquerda” são algumas dentre várias estratégias argumentativas de legitimação. São exposição de imagens midiáticas para consumo. Isso ocorre em posições distintas (isto é, dentre os que apoiam Evo também), mas eu não me adiantaria em falar de “dois lados” criando uma falsa dicotomia e um falso bipolarismo quando de fato existe um tipo de narrativa hegemônica.
O apelo à nuance, por incrível que pareça, é às vezes uma forma de simplificar a realidade (que vira uma teoria cinzenta). A nuance se transforma em névoa, espalha a confusão e cria falsas dicotomias sugerindo que existe “equilíbrio” onde não há, ao passo que o apelo à “razão” e à “objetividade acadêmica” se torna uma forma de policiar o dissidentes do discurso hegemônico. A abstração pode criar a ilusão de que o masismo e a oposição são iguais enquanto categorias, dois objetos ou sujeitos do mesmo tipo, mas com posições diferenciadas, quando na realidade são fenômenos constituídos em bases diferentes participando de uma mesma realidade.
Sim, existem nuances, é verdade: várias nuances de um golpe de estado, e hoje em dia é indispensável que o golpismo na América Latina tenha nuances de esquerda. São várias tons de capitulação, diversionismo, oportunismo e cumplicidade com o golpe.
Os “críticos” ironizam dizendo que “as massas são boas no Chile e no Equador, mas más na Bolívia e na Venezuela?”, o que é um atestado de abandono da dialética e uma profissão de fé contra o simples bom senso. Nenhum processo pode ser reduzido à presença de “massas” ou manifestações de rua, já que mesmo se isolarmos estudos nos fenômenos de protestos vamos encontrar diferenças (dias diversos de Junho de 2013, o movimento contra a Copa, o movimento pelo impeachment, o movimento contra o golpe, o movimento Fora Temer, o movimento contra a reforma da previdência, o movimento em solidariedade às ocupações estudantis de São Paulo, o passe livre, o movimento contra os cortes na educação brasileira – todos são distintos entre si não só por suas razões políticas, históricas e ideológicas, mas por sua presença e operacionalidade na rua).
Basta pensar um pouco antes de querer ser o gênio impressionista da Coreia do Centro: o que aconteceu no Chile e na Bolívia?
No Chile nem a OEA e nem os Estados Unidos se apressaram em qualquer coisa parecida com mudança de regime.
A organização das manifestações, sua orientação política e seus métodos são distintos. Como vimos, na Bolívia os grupos de choque realizaram uma campanha de ataques em pontos específicos contra a infraestrutura eleitoral, o MAS e os movimentos populares. No Chile não existe sequer o ódio generalizado na forma de pogrom contra o partido de Piñera. Os manifestantes chilenos saíram com uma pauta econômica e quando assumiram a pauta política acolheram uma pauta democrática, tendo como ápice o objetivo de uma assembleia constituinte.
A conversa da “revolução democrática” – e a versão tímida e oportunista que reduz a um problema de “visão”, “opinião”, a nuance – é destruída quando vemos que foi negado aos movimentos populares e aos apoiadores de Evo ocupar as ruas para disputá-las com a oposição. Os golpistas fizeram de tudo para evitar isso desde o início, com uma orgia de violência que não poupou o uso de demagogia cristã e racismo anti-indígena. Usaram a técnica do sequestro, que já foi usada em Honduras e no Haiti. Muitos se esquecem, a propósito, que a OEA também atacou a legitimidade das eleições do Haiti em 2010-2011, promovendo os candidatos derrotados e uma série de distúrbios, não apresentando provas de fraude mas circundando com a referência geral a “irregularidades” um discurso de “fraude massiva” (que nunca foi demonstrada e contradiz a posição dos observadores internacionais).
Ainda que seja possível que existam agentes trabalhando nas manifestações do Chile, é bem certo de que eles não têm à sua frente – e às suas costas – os velhos capachos de Washington que atuam na Bolívia.
Talvez a comparação mais válida fosse com o Equador, devido ao papel central de coordenação indígenas e camponesas organizadas mais semelhantes ao masismo, e os mesmos questionamentos se aplicam lá. O problema é que não cabem longas comparações aqui, mas elas não deveriam ser necessárias: na Bolívia acabamos de presenciar uma campanha terrorista de extrema direita que se converteu em terrorismo de Estado.
A relutância da mídia corporativa em reconhecer isso é mais uma testemunha de que em momentos cruciais ela se converte em mídia oficial e cumpre um papel de guerra.
Em termos de figuras eleitorais: Rousseff derrubada, Kirchner atacada, Lula, Correa e Morales proscritos. Não aprenderam nada?
Na Bolívia, estamos falando de alguns dos piores mercenários dos Estados Unidos na América. Figuras como Carlos Sánchez Berzain, da rede do senador ianque Marco Rubio, que foi ministro da defesa do governo Sánchez de Lozada, responsável por 67 mortes nos protestos de 2003. É a gangue que servia a Washington no poder e correu para Washington quando caiu. Sánchez Berzain agora é “advogado e politólogo” que fala de “ofensiva castro chavista” na América Latina. O argumento central do seu tipo de oposição é atacar Evo Morales como um “narcotraficante”. A direita brasileira vem tentando converter o mesmo tipo de discurso político: um eixo narco-comunista-islamista, o que é defendido por Olavo de Carvalho já há tempos. Esse é o discurso para justificar o intervencionismo ianque.
Já fazem no Brasil sua ladainha patética: Duda Teixeira escreve na Crusóe que a resistência é de “sindicalistas e narcotraficantes ordenados por Evo Morales [que\ promovem o caos na Bolívia”. Isso também é uma senha, não é sobre Bolívia e não só fantasia dos direitistas, mas a tal “mentira que vira verdade”: a extrema-direita brasileira quer emplacar esse discurso de que lutam contra uma coalizão maligna.
Sim, o golpe foi recebido com resistência. E a resistência é que vai transformar algumas posições nos próximos tempos, a começar pelos democratas centristas e os oportunistas de esquerda que vão tomar consciência de sua omissão vergonhosa. O golpe mostra a face e os oportunistas trocam as máscaras.
A história não acabou, ela sempre continua. A política é um campo de criação e de exceção – os conflitos sociais são irredutíveis à abstração formal legalista, e em alguns momentos a exceção predomina, se avulta em detrimento do equilíbrio de forças, e nesses momentos é necessário ser decisivo. Esses momentos são momentos constituintes, que formam novos equilíbrios e estabelecem novos regimes, e todo momento excepcional é um momento de disputa pela decisão. O livro Carta no Coturno – A volta do Partido Fardado no Brasil pode ser voltado para a realidade brasileira, mas expõe essas dinâmicas e aponta para uma realidade internacional. Se a Bolívia nos ensina a fazer um golpe de estado, também nos dá valiosas lições sobre como resistir.
A grande lição política, no entanto, é a da falência da cultura política liberal, que tenta se afirmar agora como referência para as esquerdas em oposição ao assim chamado “populismo”, uma universalização de princípios sociais que tentam se reduzir a um espírito de moderação, defesa do estado de direito, liberdade negativa e esvaziamento da política (esvaziada de valores e confrontação, é a mediação a partir da técnica). Um liberalismo romântico tenta hegemonizar o discurso de esquerda.
Não me entendam mal: direito, liberdade, leis, voto, nada disso foi inventado pelo liberalismo – o liberalismo é um fetiche, uma lógica individualista e de mercado transposta à política, e o reducionismo técnico que deriva de uma concepção mecânica da realidade que se converte em uma forma de universalismo reificado (o liberalismo é “natural” e tudo que não é liberal é atraso, excesso ou desvio).
O liberalismo quer conquistar as nossas inseguranças em mundo repleto de mudanças, cristalizando uma abstração formal surgida das revoluções burguesas – sobre liberdade, igualdade, indivíduo, humanidade – que se concretiza nas formas do direito e no positivismo jurídico, transformando as instituições – a lei, o parlamento, o mercado – em artigos de fé universais descolados da realidade concreta. A capacidade criadora do ser humano fica amarrada nesses artigos de fé. A sociedade deixa de ser vista como formada por humanos, seres morais e culturais em situações de conflito e antagonismo, para ser tratada como uma matéria regida por uma lógica mecânica que pode ser controlada pelo governo da técnica (jurídica e econômica). Quando enxergam os humanos, os veem como indivíduos atomizados frente à ordem jurídica, agentes racionais e utilitários que fazem trocas em um mercado.
Como o liberalismo entende a política como um mercado regulado pela pureza da lei, o liberal perde de vista a origem da política na guerra e as dinâmicas de conflito bélico, existencial, que se manifestam na política. Por isso o liberal está paralisado para responder a uma situação como a boliviana – o liberalismo se volta para si mesmo e não consegue dar respostas decisivas para os grandes momentos e as grandes questões constituintes, pois ele aspira a uma espécie de neutralidade em um espírito dominado pela moderação. O liberal atua em uma lógica da normalidade, do mercado, mas a exceção irrompe e exige uma decisão que não é guiada por uma lógica de normalidade – o direito se volta para seu estado anterior, pré-jurídico, no momento constituinte em que se impõe a necessidade humana de se fazer escolhas valorativas (não técnicas – por isso, é uma práxis enquanto o liberalismo é a anti-práxis). O fetiche do positivismo jurídico liberal é pressupor um universo jurídico que tem a constituição como axioma e um direito que é ex nihil, originado no nada.
É claro que os liberais, que nunca se cansam do auto-elogio, vão novamente enquadrar os acontecimentos em uma narrativa que clama por mais liberalismo. No fim, a culpa deve ser de Evo Morales e os acontecimentos não guardam relação com luta de classes ou com predadores neocoloniais, mas com a “falta de instituições sólidas”, “falta de uma cultura liberal”, falta de compromisso político, etc.
Pelo menos a título de pensamento podemos nos perguntar se Evo Morales não cometeu erro confiando na oposição, propondo negociações, aceitando a decisão da OEA como vinculante e chamando novas eleições. O liberal pode responder que bastava Evo Morales não ter se candidatado de novo. Bastava? “Conforme a lei”? É um fetiche acreditar que essa situação estava dada pela lei. A lógica da exceção e da decisão como resposta aparece a todo momento, de forma reiterada. Como dissemos anteriormente, a cláusula de limitação aos mandatos veio de uma oposição que ameaçou dividir o país em dois.
Evo surgiu como um subproduto reformista de um movimento de insurreição contra a terapia de choque neoliberal na Bolívia. Sem o que alguns chamam de “caudilhismo”, “populismo” e “personalismo” entorno de um executivo forte sob a figura de Evo Morales, recorrendo muito a decretos e contando com o apoio popular, a Bolívia não teria passado pelas mudanças positivas que atribuem a seu governo, inclusive a drástica redução da pobreza, além de medidas como a nacionalização de recursos estratégicos. Todo o ethos legalista que é usado para contrapor o “populismo” é o verniz de uma cultura política de moderação, negociação e conservadorismo tecnicista, já que Morales não governou fora da lei quando tomou suas medidas mais ousadas. O que ele fez, sim, foi usar o peso dos movimentos populares e de sua figura para estabelecer um processo constituinte que deu origem a uma nova Constituição Política e criou o Estado Plurinacional da Bolívia.
Independente de suas limitações, a experiência boliviana – diferente dos governos de esquerda no Brasil e na Argentina – propõe um tipo de transição do capitalismo. Os caminhos da Bolívia desafiaram diretamente o liberalismo em sua visão de mundo, na sua forma de fazer política e, acima de tudo, no fato de que deve ser a experiência recente mais ambiciosa de pluralismo jurídico e organizacional (e bastante distinto do que os liberais entendem por pluralismo).
O liberalismo atua sobre a Bolívia e lá existe há quase 200 anos, se o entendermos de uma maneira ampla que contemple o legado iluminista republicano. Se considerarmos o primeiro legado republicano como uma distorção elitista, que demandava “liberais reformadores”, ainda assim teremos um largo período. Os liberais reclamam que a Revolução Boliviana de 1952 foi “populista” ou “socialista”, não liberal, mas isso reforça o argumento, já que então este “liberalismo puro” sequer foi capaz de realizar na ordem jurídica a emancipação básica para a população indígena (coube aos revolucionários “populistas”), e, na verdade, mal conseguiu livrar os bolivianos de forma geral das relações de casta: o liberalismo não guarda relação com a realidade. Ele se afirma sempre com uma ideologia perfeita a ser imposta contra as culturas.
Pelo contrário, o liberalismo pode ter se colocado em uma posição de “crítica permanente da realidade”, sempre em oposição, o que de longe pode parecer um compromisso filosófico com a liberdade e até algo revolucionário. Olhando mais de perto, no entanto, o vemos sendo usado como trincheira reacionária, contrarrevolucionária, conservadora. Se o liberalismo assume um sentido revolucionário, é somente na sua característica de marcha ideológica do capitalismo que tudo dissolve, que tudo destrói ou torna mercadoria – o capital que tudo devora.
O ponto de inflexão é que o liberalismo então se torna um projeto contra o indígena. E para todos os efeitos, quando critica a colonização, o faz com um culturalismo que não poupa tão pouco os espanhóis ou o catolicismo. O liberalismo então é a justificativa final da violência, mesmo quando em cores progressistas que não mascaram mas, pelo contrário, “alegram” a imagem de um ideal do mercado como organizador da vida humana.
Quando falam de “liberalismo”, ignoram exemplos históricos de liberais bolivianos como os oligarcas republicanos anti-populistas da Rosca (apelido do bloco oligárquico) e os liberais que aderiram à ditadura militar de Hugo Banzer, ou que fizeram parte do governo neoliberal de Sánchez de Lozada, para pensar exclusivamente nos “liberais progressistas”, na “esquerda” que atua em ONGs e coletivos. O problema é que esses também cumprem uma função conservadora em sua falsidade: a sua obsessão institucional e seu vínculo orgânico com o capital internacional cria uma posição de paralisia do movimento criativo na realidade (isto é, o poder constituinte e transformador dos movimentos políticos amplos, transformadores e menos formalizados na estrutura do imaginário liberal – os populistas, os rebeldes, o povo).
Por isso noções-alcunhas como populismo, caudilhismo e estalinismo são tão importantes para esses epígonos liberais “progressistas”, “libertários”, “autonomistas”, sejam acadêmicos ou militantes. Primeiro, como é reconhecido com mais facilidade, porque reafirmam um universo conceitual do liberalismo, de uma analítica liberal e a reafirmação de valores liberais na prática política. Segundo, e mais importante, essas alcunhas encarnam a negatividade de sua política, são alcunhas que servem para interditar, censurar, proibir – limites são impostos, monopólios criados e movimentos sólidos são demolidos. A função deles, a nível subjetivo, é interditar, criar indisposição, neutralizar.
As discussões sobre o “personalismo” de Evo Morales são esforços intelectuais supérfluos em detrimento do movimento do real. Se há um acerto de Evo Morales, é o de compreender a soberania popular para além da noção liberal, procedimental de soberania como participação em eleições competitivas, mas uma soberania que nasce da mobilização política – o movimento constituinte criador.
Existia um processo de mudança e uma certa tendência política. O golpe serviu para decapitar esse processo, não só retirando Evo Morales, mas atacando líderes e quadros, desorganizado e aterrorizando as fileiras. A Bolívia vive uma erupção de contradições sociais em suas formas políticas.
A resistência prossegue apesar disso e conta seus mortos. O massacre em Sekata, por exemplo, deixou nove mortos e 30 feridos. Sobre os massacres em Sacaba e Sekata, o ministro da defesa Fernando López – o que bradou a bíblia junto de Añez na “inauguração presidencial” – disse que das Forças Armadas “não saiu um tiro” e que se tratava na verdade das “hordas de masistas alcoolizados se matando entre si”. Insistiu que são “bêbados pagos”, mas também que o Exército não atirou. Ao mesmo tempo, o governo correu para promulgar com emergência o decreto 4068, que garante imunidade para militares e polícias que disparem contra o povo.
Foi essa resistência que colocou os movimentos populares em uma mesa de negociação com Añez. Evo havia concordado com a realização de novas eleições com um novo tribunal eleitoral – os masistas então tem poucas opções, a não ser aceitar a realização de novas eleições, ao mesmo tempo que se protegem e afirmam a própria força. A insurreição é um movimento constituinte do povo que ocupa a rua.
A lição final é que, no momento da exceção, a força se responde com força, e o golpismo se responde nas ruas. Foi necessária uma fibra inexistente nos liberais para enfrentar o golpe de estado e assumir as atitudes – e os métodos – que não têm nada de procedimentais, formais ou legalistas. É preciso reconhecer o momento de decisão como uma abertura para o caráter da ação criativa, que transcende o mercado e as estruturas jurídicas. É nas ruas e nas estradas, com palos e bandeiras, em meio à fumaça e à metralha, que a Bolívia vive e as vozes cantam o destino da América.
O liberal, cínico ou covarde, responde que isso é perder a segurança das leis e das normas, que é aceitar uma liberdade perigosa, compactuar com a violência e que tudo pode muito bem acabar em massas como essas que apoiaram o golpe de estado e a extrema direita – é arriscado, dizem eles o tempo inteiro sobre qualquer ousadia política. Mas já não aconteceu? Já não é a realidade? Sim, o momento da escolha é assustador, pois nos vemos responsáveis por nossa liberdade, nossos valores, nossas armas e nossa violência: somos obrigados a nos engajar, sem segurança nenhuma e sem saber qual é o futuro. Pode ser arriscado, o mal é sempre uma possibilidade – mas negar isso seria negar a nossa liberdade, que é o que pretendem os liberais com sua domesticação formalista, a sua má fé e sua covardia. O risco já existe, pois ele é a realidade que se impõe e nós temos que aprender. Navegar é preciso, viver não é preciso.
- André Ortega é fundador do site Realismo Político e co-apresentador do programa Posto Sul. Leitor ávido, foi correspondente da Revista Opera junto aos rebeldes no leste da Ucrânia em 2015 e escreve na "Coluna do Ortega."
novembro 27, 2019
https://revistaopera.com.br/2019/11/27/bolivia-licoes-de-um-golpe-de-estado-parte-2/
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