“Marxismo cultural”: a pós-verdade no palco da crise mundial capitalista (I)
- Análisis
Recentemente, o discurso de que haveria um “marxismo cultural” dominando o Brasil, embora esvaziado de qualquer constatação real ou racionalidade, tomou de braços a grande parcela reacionária que compõe as pouco cultivadas classes médias do país.
O fenômeno é sintoma de nosso empobrecido cenário cultural: novamente (des)montado pelas elites antinacionais em conluio com generais e a mídia corporativa, como em 1964, por meio de um golpe (gestado desde o agravamento da crise da economia mundial que estoura em 2008). Um cenário em que as classes dominantes já não se envergonham de promover a exacerbação da violência estatal e da ignorância histórica, como forma de preservar da depressão econômica seus dividendos, às custas da miséria de dezenas de milhões de brasileiros.
As ruas do centro de São Paulo intransitáveis – repletas de pedintes e crianças anoitecendo nas calçadas frias do inverno –, ou o metrô superpoliciado em que audaciosos ambulantes tentam sobreviver sob a pilhagem regular praticada por agentes tucanos, são um retrato da crise social reinventada por nossas classes privilegiadas, como não se via há mais de década.
Moro, criminoso confesso (dadas as provas evidentes), segue solto e no poder; o reformista Lula, a que o ex-juiz bolsonarista encarcerou (sem provas para além de sua própria “convicção” de líder de quadrilha), segue preso. E o Brasil segue, em seu eterno retorno ao subdesenvolvimento, modernamente vira-lata.
Assim, perigosas noções irracionalistas, como a de “pós-verdade” (cuja tolice de “marxismo cultural” é apenas um dos sintomas), ganharam o espaço grã-midiático, infectando rapidamente o senso comum. Com sua abilolada recusa de qualquer valor de “verdade” ao conhecimento científico ou filosófico, os defensores dessa doutrina idiotizante desprezam os saberes e valores humanos construídos ao longo de milênios por diversas civilizações do planeta em perene intercâmbio.
Tal espécie de “vale-tudo discursivo” serve como desculpa para uma rejuvenescida ideologia do mais forte: a versão neoliberal da conhecida “lei do cão”, desprovida de humanismo, de ética e mesmo de uma mínima lógica (seja econômica, social ou ambiental).
Sensacionalismo e ódio ao Outro: a aliança liberal-fascista chega à Funarte
Forjado de modo sensacionalista e promotor do ódio ao Outro (a população pobre, o sem-terra, o índio, o negro, o transexual, o imigrante...), esse discurso reacionário tem por objetivo apavorar (e logo, armar) os estratos médios conservadores da sociedade – essas crianças grandes que em sua equilibrada mescla de ingenuidade e perversidade são dos seres mais desligados do real, e dos mais ligados no esquema veja-globo-estadão-folha de informação rasa.
No nosso minúsculo brasil bolsonaro, a extrema-direita apadrinhada por neoliberais (das contra-reformas Trabalhista e Previdenciária) vem se usando desse artifício argumentativo disparado intensamente pelas redes sociais para vender o blefe de que estamos sob um amplo e generalizado estado de “conscientização marxista” (ou algo assim); o que, aliás, seria formidável para uma evolução humana da espécie, não fora um disparate, um absurdo sem nenhum embasamento na realidade histórica.
Para comprovar essa farsa, basta ver a enorme proporção de professores universitários reacionários nos maiores dos “redutos marxistas”, tal como o são efetivamente (embora em minoria) as grandes universidades públicas (USP, Unifesp, UFRJ, UFBA, etc). Ou observar o baixo nível de boa parte dos dirigentes dos grandes espaços públicos de arte e cultura (teatros, museus, centros culturais), tradicionais locais de contestação, mas contraditoriamente dominados por “artistas” (ou antes “profissionais das artes”) conservadores, alçados a cargos diretivos por suas “obras” submissas, enlatadas no padrão de consumo de maior liquidez: o modelo comercial hollywoodiano.
São estes os gerentes do capital no “negócio” da cultura, da educação, da ciência, sempre prontos a segregar e asfixiar os projetos de mensagem progressista: vide dentre os recentemente exterminados, as revistas Retrato do Brasil e Caros Amigos, ou coletivos autônomos como o Teatro de Narradores.
Como exemplo do poder da mediocridade na direção da cultura nacional (ao contrário da propagada influência absoluta do marxismo), veja-se o espaço que adquiriu na mídia corporativa o tal R. Alvim, decadente escrevinhador de teatro comercial que nos últimos anos, vinha sendo curiosamente desenterrado pela crítica “especializada” (aquela patrocinada pelos “experts em arte” da indústria de cosméticos, automóveis, armas, gado).
Há alguns dias, nas capas de jornais pôde-se perceber os motivos por trás do notável mau-gosto crítico paulistano: o tal “diretor”, ou antes copista-dramático, cujos dramas nonsense não passam de cópias resumidas de ingleses “pós-modernos” (dramaturgos que com forma renovada floreiam suas mensagens conservadoras, ora liberais, ora fascistas), acaba de ser nomeado para o projeto fundamentalista da “nova Funarte”, na qual pretende atrincheirar um exército cultural paramilitar, segundo mugiu o próprio Alvim em recente entrevista.
O “marxismo cultural” de gorilas e carecas: morrem do medo as criancinhas
A desonestidade de informação contida na ideia de “marxismo cultural” pode ser comparada àquela usada por militares entreguistas e empresários, em 1964, para instaurar seu regime de terror.
À época deste anterior golpe das classes dominantes unidas, a lenda dizia que os brasileiros estávamos à beira da “revolução comunista dos comedores de criancinhas”.
Um discurso construído por militares vendilhões (submissos, como documentado, às ordens estadunidenses), em aliança com a elite interna brasileira (a sócia menor do “centro” capitalista – EUA e UE).
As duas principais correntes de pensamento reacionário no século XXI
Para se elucidar alguns enganos presentes nesse debate, que afeta diversos estratos do ideário raso de espírito, é preciso antes entender um pouco acerca do pensamento marxista. E ainda, entender algo sobre as duas principais correntes de pensamento reacionário – cientificismo moderno e relativismo pós-moderno – que, aliadas, são patrocinadas pelas elites sempre controladoras dos três poderes, opondo-se “culturalmente” ao desenvolvimento das melhorias sociais e direitos humanos propostos pela “cultura marxista”, ou mais precisamente, pela “cultura socialista” de maneira geral (visto que nem toda a esquerda é marxista).
Comecemos por alguns traços dessas duas correntes anti-socialistas, atualmente submetidas como um todo ao imperialismo.
Nascidas do esforço da intelectualidade burguesa, no processo de consolidação da modernidade capitalista, inicialmente tiveram (algumas) intenções subversivas e aspectos sociodesenvolvimentistas (de viés anti-aristocrático).
Hoje, contudo, são nitidamente dirigidas e bancadas pelo sistema (de modo a “conservar” os privilégios do jeito que estão). O “cientificismo moderno” e o “relativismo pós-moderno” são correntes ideológicas aliadas entre si – e alinhadas ao projeto de poder do capital.
Apesar da retórica do “crescente poder marxista” (o que é uma paulatina verdade, mas que se dá de forma bem mais lenta de que a propagada), essas duas correntes conservadoras são as que de fato se mantêm ainda hegemônicas no poder global (militar, econômico, político). Suas pesquisas acadêmico-culturais são patrocinadas por megacorporações, segundo interesses, não pautados pela necessidade humana, mas por vantagens mercadológicas ou de dominação “cultural” de mentes incautas.
Tratam-se de duas linhas extremistas: uma de ilusão perfeccionista e temas restritos (técnicos, matemáticos, mecânicos), que desprezam questões propriamente humanas; outra descompromissada, cômoda, sem temas certos, voltada ao diversionismo... ou não.
Em seu tempo, e em certa medida, ambas trouxeram contribuições ao pensamento humano e ao próprio marxismo. Mas hoje não passam de “âncoras culturais” do capital; instrumentos que atrasam o desenvolvimento das ciências e filosofia, com vistas à manutenção do poder geopolítico nas mãos dos atuais 0,00001% de megamafiosos: algumas centenas de famílias depredadoras (dentre bilhões de homens e mulheres) que se apressam em fazer “consumir” gente e natureza, num vicioso ciclo autodestrutivo.
[*Continua na próxima coluna]
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