A fissura crescente entre os EUA e a China

15/05/2019
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EUA e a China
Foto: Reprodução/The Nation
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Se ignorarem as manchetes, vocês pensarão que os Estados Unidos e a China são grandes parceiros. Os estadunidenses continuam a depender de produtos feitos na China em suas casas, em seus escritórios e em seus bolsos. Se morarem perto de uma universidade, também podem cruzar com um dos 340 mil chineses estudando nos EUA. Também poderiam fazer aulas de língua chinesa patrocinadas por Pequim em qualquer um dos 104 Institutos Confúcio localizados em 46 estados.

 

E mesmo se não estiverem entre os 114.000 estadunidenses que trabalham nas 2.400 empresas chinesas no país, sua subsistência ainda assim depende da China. Como o maior parceiro comercial dos Estados Unidos e o maior credor estrangeiro de dívidas dos EUA, a China mantém a economia estadunidense em atividade. Economicamente, as duas nações são gêmeas siamesas.

 

Porém, em virtualmente todos os outros sentidos, a China e os Estados Unidos estão seguindo caminhos opostos, e essa fissura crescente pode ter consequências catastróficas.

 

“Estamos em guerra com a China em pelo menos duas frontes: tecnologia e comércio”, diz Michael Klare, um analista militar e correspondente de defesa do The Nation. “Esses não são tempos pacíficos da forma que estamos acostumados. Então as perguntas são quando, como, e se essa guerra entrará em novos campos”.

 

Washington e Pequim estão atualmente batalhando quanto a quem construirá a próxima geração mundial de infraestrutura digital, com os Estados Unidos tentando congelar gigantes chinesas de telecomunicação como a Huawei. Os Estados Unidos estão com medo de que, se aliados usarem a tecnologia chinesa, isso poderia representar um risco de segurança. Enquanto isso, uma guerra comercial de tarifas crescentes entre as duas maiores economias do mundo ameaça lançar os mercados no abismo.

 

E em uma mudança significativa em relação à versão de seu predecessor, a Estratégia de Segurança Nacional do governo Trump retrata a China como um poder “revisionista” que quer “moldar um mundo antitético em relação aos valores e interesses dos EUA”. Este documento “sugere que onde quer que a China esteja ativa, os Estados Unidos devem fazer pressão contra”, explica Melanie Hart, uma especialista em China do Centro para o Progresso Estadunidense. “Onde quer que a China esteja desenvolvendo uma cooperação com outras nações, isso equivale a uma ameaça aos Estados Unidos. A Estratégia de Segurança Nacional retrata isso em termos emergenciais”.

 

Similarmente, a elite da política externa nos Estados Unidos deslocou-se para longe do meio-termo. Enquanto os debates acalorados entre observadores da China anteriormente eram marcados por aqueles a favor do engajamento contra aqueles que defendiam a contenção — os “abraçadores de panda” contra os “matadores de dragão” — o consenso agora deslocou-se para uma direção mais combativa.

 

“Eu vi pessoas que eram geralmente positivas sobre as relações EUA-China mudando todas para uma posição mais agressiva”, observou Jennifer Turner, uma especialista sobre a China e o meio ambiente do Wilson Center. “A atmosfera geral em Washington é que as coisas não estão indo bem”.

 

Essa mudança no consenso da elite, que se estende ao parlamento também, tem sido extraordinária em sua velocidade e impacto. Apesar de preceder os esforços divisivos do atual governo, a postura mais intransigente sobre a China da classe dos especialistas garantiu que as iniciativas de Trump em relação à China não gerassem o tipo de resistência associada a, por exemplo, a saída do acordo nuclear com o Irã por parte do presidente ou a suas relações mais próximas com a Arábia Saudita.

 

Assim como nos estágios iniciais de uma discussão de divórcio, os dois lados estão trocando acusações sobre cada faceta do relacionamento: comércio, segurança, direitos humanos, tecnologia. Ambos os lados também reconhecem o quão custoso este conflito pode ser. Portanto, por enquanto, contentaram-se com uma coabitação tensa pontuada por vozes altas e ameaças imponderadas.

 

O divórcio não é inevitável. Mas com a previsão da China ultrapassar os Estados Unidos em produção econômica total na próxima década — e com a competição bilateral aprofundando-se em relação a mercados, recursos e vantagens geopolíticas — Pequim e Washington podem ainda sucumbir a diferenças inconciliáveis.

 

Mesmo se o conflito não se desenvolver em uma guerra armada, uma profunda crise nas relações EUA-China pode significar uma crise econômica global, a desconstrução da ordem multilateral ou o fracasso do último esforço intenso para parar a mudança climática — ou ainda uma perfeita tempestade formada por todos os três casos. As duas maiores economias do mundo, que de longe têm as maiores influências quanto ao carbono, têm ideias diferentes sobre como o mundo deve ser estruturado. Se não conseguirem alcançar um acordo sobre o comércio, o meio ambiente e as práticas globais de boa convivência, o divórcio destruirá o que ainda resta da comunidade internacional.

 

O efeito Trump

 

O início do relacionamento EUA-China teve um ponto de início bastante público: a visita de uma equipe de jogadores estadunidenses de pingue-pongue à China em abril de 1971, seguida pela revolucionária visita de Richard Nixon em fevereiro do ano seguinte. Ao longo das décadas seguintes, os Estados Unidos aplicaram dois princípios às suas relações com Pequim. O governo dos EUA, a comunidade de negócios e o setor de ONGs fizeram várias aberturas pacíficas à China. Ao mesmo tempo, o Pentágono consistentemente tentou conter o alcance e a influência da China.

 

O declínio dessa abordagem de “conexão e engajamento” é mais difícil de definir. O governo Obama certamente tentou ajustar este modelo com sua “virada para o Pacífico”, uma tentativa de mudar o foco do Pentágono para longe do Oriente Médio e posicioná-lo na Ásia Oriental. Entretanto, a guerra da Síria e a ascensão do ISIS em grande parte evitaram essa reorientação militar. Os componentes econômicos da virada ganharam maior tração: Obama mediou um acordo de livre comércio para a região, a Parceria Trans-Pacífico (TPP), que diretamente excluía a China.

 

Depois de Donald Trump inesperadamente vencer a eleição de 2016, ele adotou uma abordagem muito mais agressiva em relação à China, começando com sua equipe. O ex-conselheiro chefe Steve Bannon encorajou preparações para uma futura guerra entre os Estados Unidos e a China “expansionista” no Mar da China Meridional. “O tipo de pessoas que assumiram altas posições em comércio e segurança nacional são falcões contra a China mais ávidos para confrontar a China”, diz Dennis Wilder, que foi diretor do Conselho de Segurança Nacional sobre a China de 2004 a 2005.

 

Em relação ao comércio, Trump reclamou sobre o yuan subvalorizado, barreiras para entrar nos mercados chineses e o roubo de direitos de propriedade intelectual. Mas no terceiro dia de sua presidência, Trump retirou-se do TPP. Independentemente dos prós e dos contras deste acordo, a saída dos EUA forneceu uma oportunidade para a China aprofundar ainda mais seus vínculos econômicos na região.

 

A obsessão de Trump com destruir acordos mediados pelo governo Obama mais frequentemente trouxe Washington para um cenário de conflito com Pequim do que o oposto — em relação ao acordo nuclear com o Irã, por exemplo, ou à mudança climática. Entretanto, a ações de Trump em relação à China suscitaram uma surpreendente quantidade de elogios vindos de pessoas que comumente não têm nada de bom a dizer sobre o presidente. Como Thea Lee, presidenta do progressista Instituto de Política Econômica, reconhece, “a única coisa que as ações referentes a tarifas mostraram foi que a influência funciona. Elas atraíram a atenção do governo chinês” (apesar de que deve ser reconhecido que as recomendações de Lee sobre como usar essa influência — para defender direitos trabalhistas mais fortes na China para se construir uma classe média — não são exatamente prioridades do governo Trump).

 

“Trump é um louco, mas eu quero dar a ele e seu governo o crédito que lhes é devido”, admite Orville Schell, um jornalista que cobriu a China por décadas e agora é diretor do Centro de Relacionamento EUA-China na Asia Society. “Não podemos continuar jogando em um campo desnivelado e aceitar promessas que nunca são cumpridas. É, na verdade, hora da China responder, e estão há muito atrasados”.

 

Trump é presidente durante o desafio mais assertivo em décadas de Washington em relação à China, e é um confronto bipartidário. Mas o que os Estados Unidos dizem é somente parte da história.

 

O efeito Xi

 

Até muito recentemente, a China estava aparentemente satisfeita em ser um sócio minoritário — ou, ocasionalmente, um adversário minoritário — dos Estados Unidos. Nos anos 2000, autoridades da China falavam de “crescimento pacífico” do país, como se estivessem interessados somente em manter boas relações.

 

Isso mudou com Xi Jinping. Sendo o primeiro presidente chinês nascido depois da revolução de 1949, Xi conduziu o país em uma direção diferente desde que assumiu em 2012. Depois de usar uma campanha anticorrupção para eliminar seus rivais, Xi embarcou em uma gama de reformas que consolidaram seu poder, modernizaram o exército, e enfatizaram novamente o controle estatal da economia. Ao fazer isso, ele refez o próprio conceito de liderança — a sua própria na China e a de seu país no mundo.

 

“Em termos da direção para a qual Xi levou o governo chinês, é uma mudança — e uma bastante drástica — em relação à reforma de Deng Xiaoping e às políticas de abertura”, Wilder comenta. “E não somente em relação a reforma e abertura, mas também a manter o perfil discreto dos dois sucessores de Deng, Hu Jintao e Jiang Zemin. Xi é um tipo diferente de líder: ele é mais autocrático e acredita na reafirmação do Partido [Comunista] em todos os aspectos da sociedade e da vida chinesa”.

 

O distanciamento mais marcante da anterior “abordagem de perfil discreto” tem sido a maior assertividade da China no Mar da China Meridional. Pequim declarou posse sobre quase tudo que fica além das águas territoriais dos países no entorno. Esse não é um pequeno território de transporte aquático: um terço do transporte global passa pelo Mar da China Meridional.

 

Sob Xi, a China começou a construir na região ilhas artificiais, essencialmente criando 3.000 novos acres de território chinês para cimentar suas reivindicações. Outros países resistiram, especialmente as Filipinas, que processou a China em uma corte marítima internacional. Em 2016, um tribunal criado pela ONU deliberou contra a China, uma decisão que Pequim energicamente criticou como “destinada a chegar a lugar nenhum”.

 

“Mais do que qualquer coisa, o que mudou, pelo menos em termos da opinião especializada, foi a construção de ilhas artificiais por parte da China no Mar da China Meridional e o desrespeito ao tribunal permanente de mediação em relação a isso”, comenta Robert Daly, diretor do Instituto Kissinger sobre a China e os Estados Unidos do Wilson Center.

 

Então, novamente, no 19º Congresso do Partido Comunista em 2017, Xi “assumiu uma abordagem extremamente nacionalista, essencialmente definindo as influências ocidentais como o inimigo”, disse J. Stapleton Roy, um ex-embaixador dos EUA na China. Xi instruiu o partido “a olhar para dentro e prover orientação sobre tudo — política, economia, matemática, filosofia, think tanks. Tudo isso, e mais, devem ter características chinesas”.

 

Na verdade, Xi pode ter sido ainda mais ambicioso: se bem-sucedidos, seus esforços garantirão que toda a região do Pacífico asiático tenha características chinesas. Sua Iniciativa Cinturão e Rota é um grande programa de infraestrutura que aspira a reconectar a China com o Oriente Médio e a Europa através de uma nova Rota da Seda, junto com um programa marítimo que aumenta os recursos dos vizinhos litorâneos de Pequim. O projeto envolve cerca de 70 países e até US$ 1 trilhão em financiamento (apesar de alcançar essa soma somente daqui a alguns anos). Xi também criou estruturas econômicas, como o Banco de Investimento em Infraestrutura Asiática para financiar o crescimento regional. Essas estruturas podem um dia servir como o centro de uma economia global alternativa. Afinal, os empréstimos chineses para o desenvolvimento já rivalizam com aqueles do Banco Mundial.

 

Ao mesmo tempo, o milagre econômico da China, que tirou um número sem precedente de pessoas da pobreza, está desacelerando. O crescimento econômico do país caiu a um baixo nível de 6 a 6,6% este ano — e pode ainda cair mais. “Há uma imensa dívida privada e pública de cerca de US$ 34 trilhões”, destaca o sociólogo Walden Bello, um ativista de direitos humanos e ex-membro do Congresso das Filipinas. Dentre outras coisas, a Iniciativa Cinturão e Rota é uma grande aposta cuja meta é preparar o impulsionamento econômico da região e inflar novamente o crescimento econômico chinês.

 

A maior assertividade de Xi — sua “China dos sonhos” de um “grande rejuvenescimento da nação chinesa” — gerou uma resposta recíproca de muitos países, especialmente dos Estados Unidos com o próprio sonho de ressurgimento nacional de Trump. No que é talvez o melhor cenário, duas superpotências cada vez mais nacionalistas com imenso poder militar e economias sobrecarregadas podem ficar satisfeitas em manter suas próprias esferas de influência. Mas a China quer expandir sua esfera, e os Estados Unidos estão relutantes em desistir de sua presença no Pacífico ou de suas ambições globais.

 

Há uma outra fonte de conflito. Os Estados Unidos não querem simplesmente conter a China; eles também querem mudar a China de dentro para fora.

 

Suposições equivocadas

 

Durante os anos de “conexão e engajamento”, uma suposição básica espreitava muitas análises dos EUA sobre o comportamento da China: ao se introduzir o capitalismo de mercado e gradualmente liberalizar sua política e cultura, a China se tornaria mais ocidental. Durante o debate sobre a ascensão da China na Organização Mundial do Comércio, o então presidente Bill Clinton argumentou na época que o acordo “moverá a China na direção correta. Promoverá as metas que os Estados Unidos trabalharam para alcançar na China nas últimas três décadas... Ao associar-se à OMC, a China não está simplesmente concordando em importar mais produtos nossos; está concordando em importar um dos valores mais queridos de nossas democracias: a liberdade econômica”.

 

Como Kurt Campbel, ex-secretário de Estado assistente para assuntos da Ásia Oriental e do Pacífico, e Ely Ratner, um ex-oficial do Departamento de Estado, disseram em um ensaio influente em Foreign Affairs no ano passado: “a hipótese de que vínculos comerciais, diplomáticos e culturais mais profundos transformariam o desenvolvimento interno e o comportamento externo da China tem sido uma base da estratégia dos EUA. Mesmo aqueles círculos políticos dos EUA que eram céticos quanto às intenções da China ainda compartilhavam a crença estrutural de que o poder e a hegemonia dos EUA poderiam rapidamente moldar a China aos caprichos dos Estados Unidos”. Quando a China se provou não ser tão maleável, os observadores estadunidenses começaram a questionar as virtudes do engajamento.

 

Reinvidicações da China sobre o Mar da China Meridional

 

Os chineses, por sua vez, também tinham suposições básicas sobre a estabilidade e coerência da política dos EUA, e a conduta errática de Trump deixou-os muito confusos. Porém, mesmo antes de Trump ou Xi, a crise financeira de 2008 foi um alerta. “Eles acreditavam de verdade que éramos os mestres do universo financeiro”, diz Roy. “Ficaram desiludidos com a crise financeira internacional”.

 

Como Jian Yong, diretor do Centro de Estudos de Segurança Econômica dos Institutos da China de Relações Internacionais Contemporâneas, escreveu na época: “o agravamento da crise de hipotecas de alto risco dos EUA coloca os enormes bens da China em dólares dos EUA e seu mercado financeiro em abertura em tremendo risco. Também faz com que mais chineses pensem em maneiras de evitar que crises financeiras se espalhem pelo mundo em meio à globalização”.

 

Para a economia chinesa continuar a crescer, em outras palavras, Pequim não podia mais assumir com segurança a existência de um sistema global em bom funcionamento. Não podia mais sentar-se confortavelmente no assento de passageiro e esperar uma viagem tranquila. Com sua Iniciativa Cinturão e Rota, suas estruturas financeiras alternativas, suas inciativas ambientais e seus esforços para se tornar um líder global em tecnologia, a China tomou o volante. Mais precisamente, Pequim está usando seu poder recém descoberto para mudar as regras da estrada.

 

Essa emergente alternativa econômica chinesa, com sua ênfase no papel do Estado, “é positiva como um tipo de contrapeso para as instituições neoliberais, com todas as suas condicionalidades sobre como os países devem se desenvolver seguindo as regras dos mercados ocidentais”, diz Bello. “Entretanto, essas instituições e empréstimos chineses também tiveram seus próprios problemas”.

 

Um desses problemas são as altas taxas de alguns dos empréstimos da China, assim como o Sri Lanka recentemente descobriu. Ao final de 2017, incapaz de pagar suas várias dívidas, o governo do Sri Lanka deu um aluguel de 99 anos para Pequim de seu porto Hambantota, que foi construído com financiamento chinês. É um porto comercial, mas poderia ser usado para propósitos militares com o consentimento do Sri Lanka.

 

China: mais má e mais verde?

 

No campo de segurança, a China aumentou seus gastos militares em dois dígitos por muitos anos, apesar de ter caído a 7,5% em 2019. “Claramente, a liderança chinesa pretende que a China se torne uma grande potência, que imponha respeito, que sepulte o século de humilhação sobre o qual ainda são sensíveis”, disse o historiador Andrew Bacevich. “Porém, o que se segue a isso é o desejo de dominar o mundo e criar um império global?”

 

Lyle Goldstein, professor do Colégio de Guerra Naval dos EUA, contesta a ideia da “agressão chinesa”. Ele diz que a China pode pressionar países menores, mas geralmente demonstrou considerável comedimento. “Se há uma coisa que a China fez que é tão horrível nos últimos 10 anos, que tenha chocado as pessoas no campo da segurança nacional, seria seu comportamento no Mar da China Meridional”, diz Goldstein. “Não penso que seja tão ameaçadora aos Estados Unidos. Não penso que esteja ameaçando países como as Filipinas e o Vietnã. O que isso mostra? Proezas de engenharia chinesa. Uma preocupação com suas raias marítimas. Eles não mataram ninguém, recorrendo na maior parte das vezes a empregar cúteres da guarda costeira com canhões de água. Esse é um histórico razoável de moderação para uma grande potência”.

 

A única área onde a China tornou-se uma liderança inquestionável é o meio ambiente, especialmente se forem levados em conta os passos para trás que o governo Trump deu. “A China está se tornando muito mais que um verdadeiro ator global”, diz Turner. “Dez ou 15 anos atrás, em muitas dessas conferências ambientais, eles simplesmente diziam não. Na conferência de pesca, eles diziam, ‘Não, precisamos pescar’. O que a China quer fazer hoje em dia é estabelecer as normas”.

 

Barbara Finamore, diretora estratégica sênior da Ásia no Conselho de Defesa de Recursos Naturais, reconhece que a China ainda tem um longo caminho pela frente para deixar de depender da energia suja e “tornar mais verdes” seus projetos de desenvolvimento no exterior. Mas a China em grande parte manteve-se no caminho da energia limpa, argumenta ela, “porque é parte de seu próprio interesse fazer isso. O motivo para sua transformação de um fator de atraso climático para um defensor de uma governança climática global é que ela vê as ações em relação a energia limpa e o meio ambiente como fundamentais para ser bem-sucedida economicamente e para colocar sua economia em um caminho sustentável nos anos à frente”.

 

PIB dos EUA x PIB da China

 

Pouco disposta a esperar que a “mão invisível” do mercado aloque os recursos para a energia limpa, o governo chinês, por exemplo, investiu grandes somas em produção de energia eólica e solar. Como resultado, empresas chinesas monopolizaram o mercado global de produção de células solares, e a China tem mais capacidade de energia eólica do que qualquer outro lugar do mundo.

 

Em outros campos de governança global, a impaciência da China com as regras da ordem mundial liberal tem implicações menos positivas. “Se formos analisar profundamente as convocações de Xi para a China liderar uma reforma do sistema global, o que ele está dizendo é aterrorizante”, argumenta Hart, do Centro pelo Progresso Estadunidense. “Eles querem fazer com que o sistema mundial se torne mais autoritário de forma que a China possa se integrar sem ter que enfrentar preocupações políticas”.

 

Hart destaca a preferência da China por Estados que restringem a liberdade da internet dentro de suas fronteiras. Similarmente, Pequim quer definir o que os direitos humanos significam dentro da China e reescrever, em vez de consentir, leis e regulamentos globais. Pequim é bastante surda para os protestos globais sobre a situação em Xinjiang, onde autoridades colocaram cerca de 1,5 milhões de uigures mulçumanos em “campos de reeducação” e expandiram um intrusivo sistema de vigilância doméstica. “O Tibet tem servido como um campo experimental brutal para o controle social há décadas”, diz Marin Ping, cofundadora da Re:Public, um coletivo progressista de política externa, “e os campos de concentração em Xinjiang podem constituir o maior crime contra a humanidade atualmente sendo orquestrado e executado por atores do Estado”.

 

A China não está sozinha em sua insistência quanto a um entendimento de soberania típico do século XIX, especialmente em termos dos direitos humanos. Donald Trump nos Estados Unidos, Viktor Orbán na Hungria, Recep Tayyip Erdogan na Turquia, Rodrigo Duterte nas Filipinas e Vladimir Putin na Rússia são todos depreciativos em relação à “interferência” da comunidade internacional. “A China está começando a parecer e a agir de uma forma que reflete uma noção de que as coisas estão vindo naturalmente de encontro a ela em relação à área dos direitos humanos”, conclui Bello.

 

Como Washington deve responder?

 

Os Estados Unidos não são mais a única superpotência mundial. A angústia que acompanha a percepção dos estadunidenses sobre o relativo declínio da influência global dos EUA produziu diversos sintomas: a eleição de Trump, uma preocupação com fronteiras e imigração, apoio bipartidário no parlamento para mais gastos militares — e uma fixação no crescente poder da China.

 

“Com o desespero dos estadunidenses de pensamento liberal com o que está acontecendo com seu próprio país e seu sistema político, o crescimento da China sob o punho autoritário de Xi induz um medo e angústia que estão tão relacionados com os Estados Unidos quanto com a China”, destaca por e-mail John Delury, historiador de China moderna da Universidade Yonsei.

 

Susan Shirk, ex-vice-assistente da secretaria de Estado durante o governo Clinton adverte contra inflar esses medos e impor restrições contraproducentes ao povo e negócios chineses que venham aos Estados Unidos. “Isso poderia levar a uma versão anti-China da Ameaça Vermelha”, observa ela.

 

Enquanto isso, os Estados Unidos lançaram uma tentativa potencialmente destruidora do orçamento para manter a supremacia militar sobre a China (e sobre todo o resto do planeta). O governo Trump quer aumentar o orçamento do Pentágono a US$ 750 bilhões por ano, com grande parte disso focado na China: um aumento de quase 5% no orçamento da marinha, a modernização da força nuclear dos EUA e a ressurreição da produção de caças. Como o Secretário de Defesa interino Patrick Shanahan lembrou aos funcionários do Pentágono em seu primeiro dia no trabalho: China, China, China.”

 

Mais à frente neste caminho está a insolvência, argumenta Klare: “Superar o ISIS nunca nos levará a falência. Superar a Rússia e a China sim”.

 

Dada esta nova realidade, há dois tipos de opção para uma nova concepção progressista das relações EUA-China. Uma delas é a abordagem mínima, que reconhece que o governo dos EUA e a comunidade de política externa tornaram-se desconfiados de um engajamento de grande escala, e somente oferece a cooperação caso a caso. “Nossa política deve ser uma parceria cooperativa que engaje a China em todos os níveis já que buscamos trabalhar com a China para solucionar problemas”, defende Goldstein, do Colégio de Guerra Naval dos EUA. “Eles são uma potência status-quo com a qual podemos trabalhar em diversas frentes: Coreia do Norte, Mianmar, pandemias, Cinturão e Rota, mudança climática”.

 

Esse engajamento pode ainda se estender a assuntos difíceis como direitos humanos. “Deve-se defender os próprios princípios em questões de direitos humanos, mas também compreender suas limitações, já que não é possível para Estados estrangeiros interferir na situação dentro da China”, diz Rajan Menon, professor da Universidade da Cidade de Nova York. “É um equilíbrio delicado entre defender o que os progressistas acreditam, mas também ter cautela para que esses assuntos não sejam usados para um confronto contra a China”.

 

Essa abordagem mínima fica no meio-termo entre a estratégia de “conexão e engajamento” do passado e a criação de diversas esferas de influência. Não é nem um divórcio nem uma renovação dos votos do casamento; é mais como o provérbio chinês de “mesma cama, sonhos diferentes”. Há espaço para cooperação, mas também para conflitos consideráveis.

 

Enquanto isso, a abordagem máxima seria uma carga mais pesada. Ela requer que os Estados Unidos e a China discutam a tensão estrutural de seu relacionamento sobre duas visões diferentes de governança global. Um debate similar ocorreu em 1945 entre o mundo capitalista e o comunista, e produziu os compromissos das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Hoje em dia, a discussão cobriria o equilíbrio entre Estado e mercado no desenvolvimento econômico, a tensão entre soberania nacional e direitos humanos universais e a reestruturação de instituições internacionais para melhor refletir o novo equilíbrio de poder global. A República Popular da China, que não existia em 1945 mas que agora alcançou o status de superpotência, espera desempenhar o mesmo papel em remodelar o sistema internacional que os Estados Unidos desempenharam depois da Segunda Guerra Mundial.

 

Em vez de engajar a China em uma conversa sobre tal transformação — ou mesmo simplesmente cooperar com ela em um sistema ad hoc, assim como o governo Obama fez — o governo Trump está simultaneamente desafiando Pequim e eximindo-se do fardo da liderança global. Essa mensagem confusa está enfraquecendo o casamento por conveniência entre Washington e Pequim que tem dominado a ordem mundial desde o final da Guerra Fria.

 

Como envolve a economia global, o meio ambiente, conflitos militares e as tecnologias mais recentes, o relacionamento EUA-China deveria estar no centro do debate público. Mesmo assim, ninguém em Washington ou entre os candidatos presidenciais de 2020 está discutindo novas formas de se engajar com a China. Os riscos, entretanto, não poderiam ser maiores: se este casamento se dissolver, podemos dizer adeus a uma ordem mundial que atualmente depende em certa medida da amizade EUA-China.

 

- John Feffer é o autor do romance distópico Splinterlands (um original da Dispatch Books) e o diretor de Foreign Policy In Focus no Instituto de Estudos de Políticas. Seu novo livro, Aftershock: A Journey into Eastern Europe’s Broken Dreams (Zed Books), acabou de ser publicado. Ele é um regular do TomDispatch.

 

*Publicado originalmente no The Nation | Tradução: equipe Carta Maior

 

14/05/2019

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Poder-e-ContraPoder/A-fissura-crescente-entre-os-EUA-e-a-China/55/44085

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/199844?language=es
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