Relatório sobre Governo Bolsonaro: 100 dias
- Opinión
FATOS RELEVANTES
O primeiro ano de todo governo é tempo de produzir respostas aos que confiaram em suas propostas, de tranquilizar os que não se manifestaram e, mais vigorosamente, de manter quietos aqueles que não concordaram com suas ideias. Algumas datas, emblemáticas, estabelecem limites para este trabalho. A primeira chega aos 100 dias da posse. Nesse período, o governante tem que apresentar sua pauta inicial e angariar respaldo institucional e parlamentar para aprovar estas metas.
Nesta primeira parada, precisará entregar resultados, para não cair em descrédito com a Nação. Se não houver coisas concretas, pelo menos, é preciso manter a esperança por dias melhores. Qualquer sinal de despreparo ou incapacidade para entregar os produtos vendidos no ano eleitoral a confiança será substituída por movimentos mudancistas, tanto das ideias apresentadas, como das pessoas empossadas para cumprir as tarefas.
Não cumpridas as tarefas ou desorganizado o trabalho, tem-se o início do fim da lua de mel entre o presidente eleito e seus eleitores. Encampa este desamor, mesmo que veladamente, o establishment nacional. Do povo, em sua maioria mais acostumado a desilusões eleitorais, ainda terá um tempo maior para anúncios positivos.
O governo do presidente Jair Bolsonaro cumpre estes 100 dias no dia 10 de abril. Seguindo o roteiro, no primeiro grande momento de seu mandato apresentou, em 23 de janeiro, uma “Agenda de 100 dias de Governo”, elencando 35 “Metas Nacionais Prioritárias”. Trabalho ousado este: na média, um obstáculo administrativo a ser vencido a cada dia do ano.
Entre uma e outra medida, anunciadas via Twitter e lives no Facebook, manteve motivada a plateia que o colocou no cargo de maior responsabilidade do país. Aproveitou os mesmos canais para comandar a administração pública federal, destratar desafetos, angariar e subtrair votos no Congresso Nacional. Um modo, no mínimo, peculiar, de conduzir as angústias dos brasileiros.
MEDIDAS PROPOSTAS
Medida Provisória – MPV nº 870
Para dar forma, estrutura e vazão a essas 35 medidas, editou a Medida Provisória (MPV) nº 870, no primeiro dia de governo, estipulando órgãos, funções e atribuições suficientes para compor seu time. Na MPV cumpriu ideias vendidas como consenso no período eleitoral, reduzindo o número de ministérios de 35 para 22, sete a mais do que o prometido em campanha.
Neste desenho, extinguiu o Ministério do Trabalho, dividindo as funções desta pasta entre os Ministérios da Justiça e Segurança Pública e da Economia. Esta medida indica a opção deste governo pelo Capital em detrimento da força de trabalho.
Colocou, ainda, órgãos conflitantes em suas políticas na mesma estrutura. o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) saiu do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura (MAPA). Enquanto o SFB é responsável pela ampliação e recuperação da cobertura florestal, o Ministério da Agricultura vai em direção oposta desta agenda, ao defender a expansão, em boa parte descuidada de sustentabilidade, do agronegócio brasileiro.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2000 e 2010, a devastação de áreas florestais no Brasil teve como maior responsável a expansão de atividades agrícolas. Entre 2010 e 2012, o crescimento da área plantada foi responsável por 68% de todo o desflorestamento no país. De 2014 a 2016, mais de 62 mil km² do território nacional sofreu alteração em seu bioma, seja por meio de redução de áreas de vegetação natural, seja pela expansão das áreas agrícolas ou da silvicultura. Colocar o SFB dentro da pasta da Agricultura ampliará essa devastação florestal. Pior, legitimará tal dano.
Com propostas trocadas, igualmente, transferiu para o mesmo MAPA, a função de identificar, delimitar e demarcar terras indígenas e quilombolas, principais trabalhos realizados, respectivamente, pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), esvaziando-os. Certamente o presidente da República cumprirá o que prometeu em campanha: não demarcar um centímetro a mais de áreas indígenas ou quilombolas. Penaliza, como de regra, os mais frágeis socialmente.
A decisão de manter, de acordo com a MPV 870, a Comunicação no mesmo ministério que Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI(C)), sacrifica as últimas em função da primeira. Comunicação manteve duas secretarias no ministério – Radiodifusão e Telecomunicações, além da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), dos Correios e da Telebrás. Com o peso de sua estrutura e o poder de conceder outorgas de rádio e televisão, o setor de comunicação domina o ministério e relega CT&I a segundo ou a nenhum plano. Sem a garantia anteriormente conferida a CT&I, que a excluía da limitação de empenho, condição excepcional para execução de políticas públicas autorizada pelo Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (art. 9º, § 2º), e a preservava, orçamentária e financeiramente de cortes, a Pasta perdeu R$ 2,1 bilhões em sua programação orçamentária para este ano, através do Decreto nº 9.741/19, editado em 29 de março. É o réquiem da pesquisa, produção científica e inovação no Brasil.
Os direitos humanos foram atingidos por enorme retrocesso com a MPV 870. O Ministério de Direitos Humanos passou a ser Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e excluiu a população LGBTI de suas diretrizes, institucionalizando o preconceito.
É, por fim, inconstitucional a MPV, posto que contraria o artigo 3º, IV, da Constituição Federal, que expressa, como objetivo republicano, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Corrobora essa ideia o artigo 5o da Carta: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. A medida 870, quando exclui qualquer indivíduo de seu rol de atenção e direitos, contraria gravemente a Lei Maior do país.
A MPV 870 é flagrantemente inconstitucional ao contrariar o inciso II do artigo 5º, quando confere à Secretaria de Governo da Presidência da República, a função de “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e organizações não governamentais no território nacional”. Sem muita discussão o texto viola, frontalmente, o disposto no artigo 5º, XVIII da Constituição Federal: “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”. Ora, é vedada a interferência do Estado no funcionamento de associações nacionais, resumidamente. A interferência em organismos internacionais é também muito grave, posto que a presença destas entidades em solo brasileiro e sua respectiva imunidade decorre de tratados firmados e ratificados pelo Brasil. De resto, enquanto vigentes, os tratados estão acima da lei local, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ou, quando tratarem de direitos humanos e foram aprovados pelo Congresso, equivalem a emendas constitucionais (1).
As 35 metas prioritárias
Em relação às 35 “Metas Prioritárias” previstas para consecução em 100 dias, nenhuma surpresa. Em sua grande maioria, além de serem irrelevantes estrategicamente, genéricas conceitual e materialmente, não provocam nenhuma interferência no enfrentamento das reais demandas nacionais. A maioria, aliás, já é realizada regularmente. Outras, mais, apenas receberam outro desenho na sua solução.
Exemplo típico é a Ação 4, no âmbito do MCTI(C). Pretende a Ação implantar um “Centro de Testes de Tecnologia de Dessalinização” (CTTD). Tal CTTD será responsável por “mapear tecnologias em sistemas de dessalinização nas condições de operação no semiárido”. Segundo o MCTI(C), ficará ancorado no Instituto Nacional do Semiárido (INSA), Unidade de Pesquisa do ministério, e utilizará a estrutura do Laboratório de Referência em Salinização (LABDES), da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). De concreto, o ministério editou, em 7 de março, a Portaria n° 888/19, instituindo o “Programa de Apresentação de Unidades de Dessalinização e Purificação de Águas Salobras e Salinas para Teste e Análise de Desempenho”. Como é programa novo precisa de rubrica orçamentária e recursos, por ora inexistentes. Mais rápido seria incluir, simplesmente, o estudo no próprio INSA, que dispõe de R$ 1,7 milhão no Orçamento de 2019 para quatro pesquisas, ou em outras unidades suas, como no Contrato de Gestão do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos – CGEE (Organização Social) ou no Centro de Tecnologias Estratégicas do Nordeste – CETENE (Unidade de Pesquisa), que dispõe de dotação para apoiar dez pesquisas (2). Já teria iniciado o mapeamento e concluído esta Meta em 11 de abril. No ritmo que anda, com corte orçamentário e a incidência da EC nº 95 (“Teto de Gastos”) atingindo fortemente a Pasta, tardará a ter qualquer resultado.
Causa descrédito, na opção adotada em relação à política ambiental apresentada na MPV 870, a proposta a cargo do ministério do Meio Ambiente para Ação 17: “Aprimorar o Sistema de Recuperação Ambiental”, aperfeiçoando o procedimento de conversão de multas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Por “procedimento de conversão de multas” entenda-se criar Comissão de Conciliação Ambiental no ministério (não no IBAMA) para avaliar, alterar valor e, no limite, anular notificações de multas. Durante o processo de análise, enquanto não for decidido sobre o apenamento, ou não, ficam sobrestados prazos e punições ao infrator.
Implantada esta Comissão um resultado será imediato: ausência de decisão, frente à inoperância da Comissão e enormidade de processos (cerca de 16 mil anuais, em média) e, consequentemente, liberação de multa para os infratores. A medida, na prática, já vem ocorrendo. Em janeiro e fevereiro de 2018 foram aplicadas 1.580 multas pelo IBAMA. No mesmo período de 2019 esse número diminui em 27,9% (1.139 multas).
Suspendeu-se, ademais, a contratação de 34 projetos de recuperação ambiental, à conta de R$ 1 bilhão, valor que seria pago a título de compensação ambiental, por meio das empresas que tenham produzido, em virtude de empreendimentos, algum dano ambiental, a exemplo de supressão vegetal. Esse pagamento seria realizado através do Sistema de Recuperação Ambiental que a meta 17 pretende “aprimorar”.
A instalação da Comissão Conciliatória, associada ao impedimento que Organizações Não Governamentais participem dos projetos de recuperação, por meio da modalidade chamada “conversão indireta”, ficando a realização da recuperação tão somente nas mãos das empresas, provocará, diferentemente do pretendido pela Ação, um esgotamento da “Recuperação Ambiental” e ampliação dos efeitos de desastres naturais e profusão do agronegócio descontrolado.
De real impacto na vida das pessoas, principalmente na vida das mais pobres, na economia de pequenos municípios brasileiros e nas contas nacionais, a concessão do 13º salário no cronograma de pagamento do Bolsa Família, foi incluída na Ação 2 (“Expandir a transferência de renda para as 14 milhões de famílias atendidas pelo Programa Bolsa Família”), através do ministério da Cidadania. Para cobrir o impacto fiscal dessa despesa extra será necessário, entretanto, transferir à Pasta mais R$ 2,5 bilhões, por meio de crédito suplementar (números do ministério). Somado a isso o Bolsa Família precisa de mais R$ 6,6 bilhões, contabilizados hoje como despesas condicionadas, a serem passadas por meio de outro projeto de crédito, quando confirmada sua arrecadação. Junto aos R$ 23,5 bilhões já previstos, a conta final do Programa Bolsa Família, contabilizado o 13º, será de R$ 32,6 bilhões. Fazendo uma leitura paralela ao texto da PEC da Previdência, que penaliza os mais necessitados, a transferência de recursos vai naufragar, mesmo representando apenas 4,8% do PIB brasileiro.
Embora genérica, mas relevante, a Ação 9, na carga do ministério da Economia, propõe a “intensificação do processo de inserção econômica internacional” do Brasil. Tal avanço no intercâmbio negocial com o mundo seria alcançado através de “medidas de facilitação do comércio, convergência regulatória, negociação de acordos comerciais e reforma da estrutura tarifária nacional”.
Nestes 100 dias, todavia, tem sido contraditória a ação da trupe deste governo. Enquanto a área econômica tem esta pauta para cumprir no período, a trinca composta pelo presidente da República, parentes e o vergonhoso chanceler brasileiro, miram outros horizontes. Tanto a intensificação na inserção internacional e a política externa atabalhoada do governo Bolsonaro são nefastas.
Olharam, nestes 100 dias, com dissabor, desdém, viés ideológico, o “marxista” mercado chinês. Ora, os negócios brasileiros na China são positivos para o Brasil, subtraídas exportações de importações, em US$ 29,5 bilhões(3) (2018). Representam 26,8% do que é destinado de produtos brasileiros para o exterior (1ª posição).
Na contramão do próprio discurso “Brasil acima de tudo”, posam de serviçais para os comandantes do comércio com os Estados Unidos. Ora, os negócios com os EUA são negativos para o Brasil em US$ 193,7 milhões. Representam apenas 12% do total exportado pelo país (12ª posição).
Rejeitam, igualmente, os persas do Irã, país embargado pelo governo estadunidense, orientador das práticas comerciais locais. Ora, o Irã rende ao Brasil US$ 2,2 bilhões. Festejam, na contramão, Israel. Ora, Israel não significa nada economicamente ou politicamente para o Brasil, somente problemas se o país entrar nas suas pendengas regionais. Essa relação traz ao Brasil, um prejuízo anual de US$ 847,4 milhões. Transferir a embaixada brasileira para Jerusalém contraria o que sempre defendeu o Brasil – que a fixação definitiva na capital deveria advir de acordo entre Israel e Palestina, pautado pela Teoria da Coexistência dos dois estados. Sem este acordo, é prudente manter distância desta celeuma. Nem mesmo um Escritório de Negócios em Jerusalém é adequado. Colocará o país numa briga que não é sua, e em possível confronto com estados árabes. Somente os árabes do Oriente Médio significam um lucro comercial para o Brasil de US$ 3,7 bilhões. Eles negociarão com outros países, caso esse provincianismo diplomático e negocial seja levado a cabo.
De forma irresponsável, questionam o Mercosul, que confere ao Brasil um superávit comercial de US$ 3,6 bilhões (fora Argentina) e relegam, no Bloco, o comércio com os argentinos, que traz ao Brasil outros US$ 3,9 bilhões (3ª posição mundial).
Administrativamente, propõem ao ministério das Relações Exteriores (MRE), a Ação 23 para os 100 dias, voltada a promover “Redução Tarifária do Mercosul”, aperfeiçoando instrumentos ao setor produtivo por meio da redução tarifária, mais exportação e serviços ao cidadão. Caso concreto desta pauta, de modo contrário à meta, o governo adota medidas que enfraquecem o Mercosul, como liberação para cota de importação de 750 mil toneladas de trigo dos EUA sem pagamento de alíquota de 10%, acordo firmado pelo presidente da República em sua viagem recente àquele país. Tal medida trará um desequilíbrio na pauta de exportação da Argentina para o Brasil, item importante nos acordos aduaneiros do Mercosul, posto que o produto rendeu ao país vizinho US$ 1,3 bilhão no ano passado, atrás apenas de automóveis.
Na pauta de Relações Exteriores, não menos desconforto provocaram as decisões de tirar o país do Pacto Global sobre Migração, ratificado pela Assembleia Geral das Nações Unidas e apoiado por 152 países. Figuram contra o Pacto apenas EUA, Hungria, Israel, República Tcheca e Polônia. Números do Relatório Internacional de Migração do Departamento Econômico e Social das Nações Unidas (2017) estimam que cerca de 258 milhões de pessoas vivam em um país diferente do de seu nascimento. De brasileiros, 1,6 milhão de pessoas. O Pacto, além de ser norma multilateral de equilíbrio e proteção transfronteiriça de migrantes em seus direitos, serve à gestão do trabalho nacional da migração, sem interferir na decisão soberana de cada parte para tratar o assunto ou permitir migrações indiscriminadas, princípio tradicional das Nações Unidas.
Junta-se esse erro incalculável a outros insanos exageros do chanceler – e dos que o patrocinam, o presidente e seus familiares – ao defender, em parcos 100 dias, o uso de força militar contra Venezuela, a instalação de base estadunidense no país, a adesão à OTAN, a mudança da embaixada brasileira para Jerusalém, negar o golpe de 64 e vincular nazismo e fascismo a grupos de esquerda.
Pauta central do governo empossado, liderada e defendida vigorosamente pelo establishment nacional, sem a qual não haverá salvação nacional e o estado falirá, a Proposta de Emenda à Constituição PEC nº 6 de 2019, que trata da Reforma da Previdência, foi apresentada em 20 de fevereiro. Inobstante ser continuidade da PEC nº 287/16, editada ainda no governo Temer, o texto atual é mais severo com as pessoas mais frágeis e pobres do país, exatamente para aquelas que o tripé Saúde, Assistência Social e Previdência, num regime de repartição solidário de Seguridade Social, veio a socorrer com a Constituição de 1988. Tripé este que está insculpido como base para cumprimento das premissas da CF: construção do estado do bem estar social; extenso do rol de direitos e garantias individuais; e ampliação da previsão e proteção de direitos sociais.
Implicitamente, a Constituição também prevê o princípio da vedação do retrocesso social (4), perda de garantias e condição socioeconômica, retrocesso este que prepondera na PEC em questão, notadamente para os que trabalham mais e recebem menos. Cabe destacar que a proposta de idade mínima de 65 anos para homens e 62 para mulheres colocada na PEC praticamente impede que os mais pobres tenham acesso à aposentadoria, porque estes trabalhadores e trabalhadoras começam a vida laboral mais cedo e têm menor expectativa de vida.
Dentre outras supressões de direitos dos mais vulneráveis estão a redução do direito ao abono salarial, salário família e auxílio reclusão para segurados com renda de até um salário mínimo (R$ 998,00), aposentadoria compulsória para empregados de estatais (Regime Geral – RGPS/INSS), obrigatoriedade da cobertura de riscos não programados ser atendida, concorrentemente, pelo RGPS e pelo setor privado, assim como a exclusão do direito de quem se aposentar continuar a receber depósitos do Fundo de Garantia (FGTS) e acesso ao direito à multa de 40%, em caso de demissão.
Para o trabalhador rural sobram sacrifício e impossibilidade de acesso à aposentaria com as condições propostas, a exemplo da contribuição obrigatória sobre produção comercializada para ter acesso a benefícios, contribuição mínima, anual, de R$ 600,00 por grupo familiar e exclusão da atividade rural, futura, do cálculo para efeito do benefício, caso não haja contribuição. Hoje, trabalhadores inscritos como Microempreendedores Individuais – MEI, com receita de até R$ 81 mil ano, que contribuem este mesmo valor anual para o INSS, penam para manter o pagamento de R$ 50,00 mensais. No país, a média de inadimplência com o INSS dos MEI é de 45%. Tomados apenas os estados do Amazonas, Roraima e Amapá esta média alcança 65%. É o que ocorrerá, igualmente, com os trabalhadores rurais. Não aposentarão.
Para idosos, enquadrados como Beneficiários de Prestação Continuada – BPC (pessoa com deficiência inabilitada para o trabalho e idoso em condição de “miserabilidade”): recebimento de R$ 400,00, a partir dos 60 anos, e um salário mínimo, apenas quando completar 70 anos; exclusão do benefício para ambos, quando casal; e vedação de acumulação com outros benefícios previdenciários ou assistenciais.
A Previdência brasileira é, hoje, o maior programa de distribuição de renda do mundo, com mais de 30 milhões de benefícios mensais pagos pelo INSS. É uma forma de proteção social e de amparo, especialmente para os idosos. As contribuições dos que ganham mais ajudam a pagar os benefícios dos que ganham menos. A Previdência redistribui a renda no país, isto é, transfere recursos para pessoas e regiões mais necessitadas(5). A maior parte desse modelo de repartição de renda será desconstituído, uma vez aprovada a PEC da Previdência. Se instituído o regime de capitalização, substituindo o de Solidariedade, a ruptura será mais drástica. Hoje, no Chile, 37 anos após a implantação do modelo de capitalização simples (1981), no qual cada trabalhador tem sua conta individual, administrada por Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs), e procura poupar, sem contraprestação patronal, por longos anos para alcançar a aposentadoria, apenas 5 destas AFPs detém 70% do PIB do país. E os benefícios médios, de cada aposentado chileno, giram em torno de 30% do seu recebimento enquanto trabalhador ativo. Tal redução tem levado os idosos chilenos à miséria e muitos cometem suicídio, devido à falta de recursos.
De impacto social tão grave quanto as medidas anteriores, foi a edição, em 15 de janeiro, do Decreto n° 9.685/19, item constante das 35 metas para os 100 dias do governo federal (Ação 14). Para “garantir ao cidadão brasileiro a integralidade do direito constitucional à legitima defesa da vida e do patrimônio”, o referido Decreto propõe a “facilitação da posse de armas”.
É certo que a revogação do Estatuto do Desarmamento, concedendo condições para “legítima defesa”, não preservará vida alguma, através da defesa pessoal armada. Eliminar o Estatuto é aumentar a quantidade de armas em circulação, facilitar mortes por incidentes e provocar e ceifar vidas de civis despreparados e inseguros no manuseio de armamentos. O ideal seria, sim, o oposto: que o Estatuto fosse implementado em sua integralidade.
Outra medida de grande gravidade é o pacote apresentado pelo ministro Sérgio Moro, em discussão na Câmara dos Deputados em conjunto com outro projeto apresentado anteriormente. Dentre uma série de medidas que reduzem as garantias individuais e tendem a ampliar os instrumentos persecutórios do Estado, vale destacar as que permitem a ampliação da já imensa violência policiai, uma série de dispositivos que tendem a abrir espaço para a perseguição aos movimentos sociais, com destaque para a criação do tipo penal “resistência qualificada” e a adoção no Brasil dos mecanismos de negociação da pena entre acusado e Ministério Público que, a exemplo do que acontece nos Estados Unidos, tende a privar o acusado do direito a um processo legal e a ampliar o encarceramento em massa.
As medidas propostas por Moro não resultarão em uma diminuição da criminalidade como sustente o governo e sim na ampliação do uso do direito penal como um mecanismo da gestão dos indesejáveis e de perseguição a adversários políticos.
ANÁLISE CRÍTICA
Esses 100 dias iniciais do atual governo federal devem estar sendo desanimadores até mesmo para aqueles eleitores de boa-fé, que acreditaram nas suas propostas e fingiram não conhecer o limitado deputado, que cumpriu mandatos por 28 anos sem propostas ou entabular qualquer ideia consistente no Congresso Nacional. Para o establishment oportunista, igualmente está desanimador, pois já notaram que a conta do apoio prestado na campanha, – aposta inoportuna e frágil -, frente à insignificância e despreparo do candidato, tosco na essência, não será paga tão breve. Além de um quadro ou outro mais preparado, independentemente das posições políticas e sociais, montou na sua rasa compreensão de país, pessoas e mundo, uma equipe que disputa com o próprio presidente em termos de mediocridade.
Recuos em medidas divulgadas são comuns. Brigas com o Congresso Nacional ocorrem todos os dias da semana. Posturas e palavras, desprovidas da liturgia que exige o cargo de presidente da República, e envergonham brasileiros de todos os cantos, são oferecidas a todo momento nas paragens brasileiras ou no exterior. O descontentamento da população já aparece nas pesquisas de opinião: o Ibope (em março) mostra queda de quinze pontos percentuais na avaliação positiva do governo Bolsonaro desde a posse. Em janeiro, Bolsonaro tinha 49% de avaliação positiva, caiu para 39% em fevereiro e para 34% em março, mesma parcela que considera a gestão como regular. A avaliação negativa do governo subiu de 11% em janeiro, para 19% em fevereiro e 24% em março. Nesse ritmo, quanto tempo resistirá este governo?
Notas
1 Acórdão ADIN 5240/SP (Supremo Tribunal Federal). Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10167333.
2 Lei Orçamentária Anual 2019, Comissão Mista de Orçamento (Câmara dos Deputados). Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR2019/red_final/Volume_IV.pdf.
3 Comex Vis, Valores FOB (ministério da Economia, Indústria, Comércio Exterior e Serviços). Disponível em: http://www.mdic.gov.br/comercio-exterior/estatisticas-de-comercio-exterior/comex-vis.
4 Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo 639.337, de 23/08/2011 (Supremo Tribunal Federal): O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=627428.
5 Lei Orçamentária Anual 2019, Comissão Mista de Orçamento (Câmara dos Deputados). Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR2019/red_final/Volume_IV.pdf.
por Fundação João Mangabeira, Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, Fundação Claudio Campos , Fundação Leonel Brizola-Alberto Pasqualini, Fundação Mauricio Grabois , Fundação da Ordem Social e Fundação Perseu Abramo
10/04/2019
https://www.observatoriodademocracia.org.br/2019/04/10/relatorio-sobre-governo-bolsonaro-100-dias/
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