A caridade humanitária do intervencionismo e o ataque das corporações
- Análisis
A ajuda humanitária proposta pelos Estados Unidos para abrandar a crise econômica e social que existe em Caracas foi precedida por um programa orientado a disciplinar a República Bolivariana e toda a região, com o objetivo final de evitar caminhos soberanos alternativos ao neoliberalismo.
Além das controvérsias sobre a existência ou não de responsabilidades na gestão e/ou ineficiência das políticas do chavismo na situação interna da Venezuela, a fingida ajuda humanitária impulsada pela força militar do Comando Sul do Pentágono não se ajusta aos protocolos demandados pelos organismos de cooperação internacional, e portanto não pode ser catalogada como uma contribuição destinada a aliviar o sofrimento dos venezuelanos.
No dia 10 de fevereiro, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha afirmou em um informe público que a tal ajuda carece de todo carácter humanitário, já que não está sendo enviada por organismos específicos dedicados a esse tipo de cooperação. Aliás, também lembra que ela é oferecida pelas forças militares que ameaçam invadir um território soberano.
Tanto a Assembleia das Nações Unidas quanto o seu Conselho de Segurança – os pilares da arquitetura institucional global – rechaçaram por maioria, a intervenção nos assuntos internos da Venezuela. Entretanto, os países que foram derrotados nas votações de ambas as organizações multilaterais, incluindo os Estados Unidos e uma parte dos integrantes da Comunidade Econômica Europeia, mantiveram a ofensiva intervencionista, desconhecendo os acordos internacionais e o princípio de não intromissão presente na carta fundacional da ONU.
Talvez por isso, o presidente estadunidense Donald Trump abandonou o anunciado isolacionismo prometido em sua campanha eleitoral e anunciou que não descarta a intervenção militar ou a colaboração com as forças militares dos países limítrofes da Venezuela, que estejam dispostas a contribuir com a missão de liquidar a resistência chavista.
Na última semana, o mandatário colombiano, Iván Duque, viajou a Washington para conhecer os planos decididos pelo Departamento de Estado. Em forma paralela, o ex-embaixador dos Estados Unidos em Caracas, William Brownfield, afirmou que “talvez a melhor solução seja acelerar o colapso da economia” (pode-se ver sua declaração aqui: https://youtu.be/Cn-4D4JK8js). Portanto, a Casa Branca assume que trabalha para isolar o país e produzir uma crise terminal da população venezuelana. Por sua parte, o chanceler russo Serguei Lavrov acusou Trump de dissimular uma intervenção militar na Venezuela através da chegada de ajuda humanitária. Destacou que os Estados Unidos tentam “camuflar provocações com o envio de ajuda humanitária, como meio para desestabilizar a situação na Venezuela e obter o pretexto para uma intervenção militar direta”.
O posicionamento da Rússia é idêntico ao da China e de dois terços dos países membros da ONU. Por parte da União Europeia, nem todos os membros desconhecem o governo de Maduro. Países como Itália, Grécia, Romênia, Irlanda, Bulgária, Chipre, Malta e Eslováquia se resistem em reconhecer a legitimidade de Juan Guaidó. Em total, somente 40 países dos 193 que formam parte das Nações Unidas apoiaram o autoproclamado. O porta-voz da Secretaria Geral da ONU, Stephan Dujarric, assegurou que o organismo reconhece a legitimidade do presidente constitucional da Venezuela, Nicolás Maduro, como única autoridade da nação. Logo, o secretário António Guterres tomou a decisão de rechaçar as demandas estadunidenses para o reconhecimento do deputado Juan Guaidó, que assegura ser o presidente encarregado do país.
Humanismo do açoite
A Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR), uma das vozes mais representativas a respeito de emergências internacionais, reporta sete situações de gravidade humanitária no mundo durante 2018: Iraque, Nigéria, República Democrática do Congo, Síria, Sudão do Sul, Iêmen e Myanmar (o comunicado pode ser avaliado neste link: https://www.acnur.org/emergencias.html). Em todos esses cenários há denúncias de massacres, deslocamento massivo da população e crimes contra a humanidade.
Em três deles (Iraque, Síria e Iêmen) as acusações de matanças contra a população civil envolvem as forças militares dos Estados Unidos, seja por bombardeios da sua força aérea e/ou por assessoramento, financiamento e provisão de armamento aos grupos envolvidos nos respectivos crimes massivos. No caso específico da Síria, houve operações realizadas por grupos fundamentalistas islâmicos (como o ISIS), repetindo o modelo de apoio à Al Qaeda no Afeganistão, no marco da guerra contra a antiga União Soviética, nos Anos 80.
A última emergência internacional reconhecida pela ACNUR ocorre hoje muito perto da costa dos Estados Unidos e afeta cerca de 50% da população do Haiti, que sofre com uma situação de violência interna, fome e possíveis pandemias, capazes de atingir perigosamente a sua vizinha República Dominicana. Nos últimos dias, os escritórios das Nações Unidas instalados na capital haitiana produziram informes que falam em 52 mortos e quase 300 feridos, em uma confrontação social que inclui o pedido de renúncia do mandatário ditatorial, Jovenel Mouse – curiosamente, apoiado pelo Departamento de Estado, e que chegou ao poder graças a uma fenomenal fraude eleitoral planejada em Washington (como descreve este artigo: https://www.miamiherald.com/news/nation-world/world/americas/haiti/artic...).
As denominadas “guerras democratizadoras”, impulsadas por Washington desde 1945 impuseram ditaduras em países como a Coreia do Sul, ou geraram milhões de mortes, como no Vietnã, Afeganistão, Iraque, Somália e Líbia. A pretendida ajuda humanitária é a fase atual de um processo de longa duração, que se iniciou em 2002, com o golpe de Estado ao então presidente Hugo Chávez.
A ofensiva se complementou com uma campanha midiática orientada a soterrar as decisões soberanas do governo venezuelano, processo que incluiu a proteção aos empresários denunciados por Caracas que encontraram refúgio em Miami. A campanha de desestabilização se completou com a aceitação, por parte dos organismos de controle de Washington, de uma gigantesca operação de fuga de capitais, canalizada pelas entidades bancárias offshore que administram capitais estadunidenses e britânicos assentados nas ilhas del Caribe e no Estado de Delaware. As etapas posteriores incluíram um progressivo bloqueio econômico, que impediu a importação de medicamentos e alimentos, e uma tentativa de magnicídio contra o presidente Nicolás Maduro através da utilização de drones explosivos.
As máscaras se derretem
A atual fase da promovida ajuda humanitária envolve a tentativa de duplicidade do Poder Executivo venezuelano, com o reconhecimento do auto erigido presidente Juan Guaidó. A estratégia inclui um bloqueio do acesso da Venezuela aos mercados financeiros internacionais, impedindo o país de renovar seus títulos de dívida pública ou solicitar novos. Também impossibilita a compra de petróleo cru leve para o refino da matéria prima, o que leva a fortes quedas na geração de divisas. Um processo fomentado pelos Estados Unidos para forçar o colapso.
Nos escritórios dos congressistas estadunidenses circulam anedotas a respeito da crise humanitária, que significaria a perda de negócios por parte dos empresários norte-americanos, pois eles ficariam ser os benefícios da maior reserva certificada de petróleo do mundo, a oitava maior de gás, a terceira de ouro, a quinta de minério de ferro e a hipótese de contar com as jazidas de coltan mais importantes a nível global – o mineral é vital para a elaboração das futuras baterias dos dispositivos eletrônicos necessários para a quarta revolução industrial.
As piadas que ecoam no Capitólio passaram a ser mais ácidas quando se difundiu a informação de que o chefe da comissão de Assuntos Exteriores da Câmara de Representantes, o democrata Eliot Lance Engel, descartou a autorização para que a sua bancada, que possui a maioria dos votos, aprovasse uma intervenção militar na Venezuela, como sugeriu reiteradamente o presidente Donald Trump.
Os argumentos foram justificados a partir da intervenção da congressista Alexandria Ocasio-Cortez, que se referiu recentemente ao rol das corporações multinacionais monopólicas, e sobretudo as petroleiras e as fábricas de armamentos, para corromper o sistema político estadunidense e alcançar o respaldo às intervenções militares e invasões dirigidas a obter vantagens estratégicas no acesso a matérias primas e controle logístico territorial. Ocasio-Cortez também apelou ao humor para desmascarar o mecanismo pelo qual parlamentares e membros do poder executivo buscam vantagens baseadas na corrupção corporativa e empresarial. Diante de um comitê de especialistas em ética, convocados em uma audiência da comissão da vigilância do Congresso, ela explicou as motivações por trás das tentativas de desestabilização da Venezuela – o vídeo do discurso de Alexandria Ocasio-Cortez sobre a corrupção institucionalizada nos Estados Unidos foi o mais visto da história do Twitter, com 40 milhões de reproduções, e pode ser visto aqui: https://youtu.be/8xBUJGdy3GU.
No final do Século XX, Hugo Chávez inaugurou uma etapa de enfrentamento ao neoliberalismo, que teve reflexos e alianças em vários países da América Latina. Esse processo se condensou em 2005, na cidade argentina de Mar del Plata, com o “Não à ALCA”, que significou um freio à intromissão de Washington na região. A irrupção do supremacista Trump aprofundou a guerra de baixa intensidade, baseada em sanções financeiras, na pretendida dualização e nas restrições para se recuperar reservas de ouro e divisas depositadas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.
Segundo uma pormenorizada análise recente, divulgada pela CELAG (Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica), o isolamento humanitário – que poderia ser chamado de “asfixia programada” – levou à perda de 350 bilhões de dólares em produção de bens e serviços entre 2013 e 2017. “Desde que Nicolás Maduro assumiu a Presidência, em 2013, o setor público venezuelano deixou de receber, em termos líquidos, fluxos que, no quinquênio 2008-2012, chegariam a mais de 95 bilhões de dólares, o equivalente a 19 bilhões anuais”.
O bloqueio econômico e a ameaça da guerra civil para gerar o colapso, a imposição de um imaginário justificador da existência de um poder dual e a invasão estadunidense que se anuncia entre os opositores, com a data precisa de 23 de fevereiro e dissimulada no cavalo de troia da suposta ajuda humanitária: tudo para terminar, de forma exemplificadora, com o vírus da Revolução Bolivariana.
Anos atrás, um importante funcionário da chancelaria argentina participou em Washington da apresentação do libro de Henry Kissinger, “Ordem Mundial: Reflexões Sobre o Carácter das Nações”, naquele então um best seller mundial. Após os rasgados elogios de dois comentaristas e uma pausa para as declarações do autor, houve uma rodada de perguntas dos presentes. O funcionário diplomático argentino inquiriu respeitosamente o autor: “qual é a razão, senhor Kissinger, de você falar sobre a América Latina de forma tangencial e exígua em seu texto?”. O ex-chefe do Departamento de Estado apelou a um sorriso dissimulado, mas logo respondeu: “porque a América Latina não é um problema de política exterior dos Estados Unidos. É uma questão doméstica do nosso país”. Com tal confissão, não é preciso mais provas.
Jorge Elbaum é sociólogo, doutor em Ciências Econômicas e analista sênior do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)
Tradução de Victor Farinelli
19/02/2019
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