A era dos medíocres

09/01/2017
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Foto: montagem Trump, Temer e Sartori.
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Durante muito tempo Maquiavel foi desconsiderado pela teoria política. Chegou a ter a sua obra queimada pela Inquisição, sendo tratado como um mero interesseiro, preocupado em garantir a proteção de nobres e a sua sustentação pessoal. Diga-se de passagem, muitas pessoas resumem o trabalho do autor florentino a apenas um de seus livros, “O Príncipe” (De Principatibus), dedicado à Lourenço de Médici (Lourenço II), onde é apresentado um manual prático de ação. Contudo, ao contrário do que muitos pensam, Nicolau Maquiavel sempre foi republicano, o que está evidente na sua maior obra, “Comentários sobre a Primeira Década de Governo de Tito Lívio”.

 

Mesmo assim, “O Príncipe” sempre foi uma obra extremamente relevante, e muito maior do que uma leitura menos detida pode permitir. O sentido comumente atribuído ao adjetivo “maquiavélico” em nada combina com Maquiavel. Este era um grande teórico, sagaz, com uma visão apurada do mundo e por isso deve ser muito respeitado.

 

Coube ao também italiano Antônio Gramsci, um dos mais notáveis teóricos do pensamento marxista, devolver o autor renascentista ao seu verdadeiro espaço no panteão da teoria política, o de mestre. Por sinal, ao lermos “O Príncipe” já encontramos a gênese de uma das principais teorias desenvolvidas por Gramsci, a da “hegemonia”, numa correta avaliação sobre os governos que possuem o poder concentrado em uma única pessoa, e das sociedades governadas com o poder distribuído, mas esta é uma pauta já tratada em outras publicações e que precisa de uma análise mais detalhada.

 

Nos seus “Cadernos do Cárcere”, Gramsci promove uma mutação hermenêutica ao considerar como “príncipe” um ator coletivo. Pautado por princípios e valores revolucionários, o autor marxista vê o “partido revolucionário” como o verdadeiro príncipe, formulando conceitos importantes para a ação política da esquerda atual, especialmente àquela que pretende atuar em um ambiente democrático. Desta forma, além de redimir Maquiavel de séculos de perseguições religiosas, Gramsci também oportunizou novos instrumentos de avaliação.

 

Para avançar ainda mais na construção teórica de Nicolau Maquiavel, nunca podemos deixar de considerar um dos elementos chaves por ele trabalhado que é a virtuosidade dos grandes líderes, dos príncipes. Afinal, os homens de fortuna não podem sobreviver apenas em razão da própria sorte, pior ainda, da sorte ou do azar de outrem, pois mais adiante vão encontrar dificuldades e “perder os seus reinos”.  O bom príncipe também deve ser dotado da chamada “virtu”.

 

E no que consiste esta tão elementar qualidade dos grandes líderes, a “virtu”? É importante observar que a atuação daqueles que conduzem as suas ações inspiradas pela própria virtu são realmente capazes de exercer o poder com legitimidade e com justiça, estabelecendo um equilíbrio entre os “populares” e os “exércitos”, termos que extraímos do próprio livro do escritor florentino.

 

Poderíamos traduzi-la, a “virtu”, simplesmente como virtude ou virtuosidade. No entanto, este conceito vai além, e inclui a atuação com valores, com princípios, com dignidade, com honra, com sabedoria. Nas palavras do próprio Maquiavel, para evitar o desprezo e o ódio às ações do príncipe o povo deve testemunhar “grandeza, elevação de espírito, gravidade e fortaleza”.

 

Neste sentido, a crítica de Maquiavel aos soldados mercenários é lapidar, pois é uma síntese da corrupção na política. O bom príncipe deve construir os seus próprios exércitos, com sentimento de pertencimento, com envolvimento coletivo, com honradez. Os mercenários trocam de posição conforme seus próprios interesses, pois não são guiados por valores e princípios e, em muitos casos, são meros aduladores que visam se manter no poder aproveitando-se da fragilidade moral do príncipe.

 

Weber observou uma qualidade essencial aos grandes líderes, que era o carisma. Gramsci foi mais longe, e evitou a limitação do príncipe a uma pessoa individual, transformando este num agente coletivo.

 

Outro aspecto importante, os príncipes que chegam ao poder sem honra, por mera conspiração ou com a utilização de exércitos mercenários, só conseguem manter-se pela maximização da violência e com a destruição de tudo o que foi construído por seus antecessores, mas normalmente são derrotados. Aliás, a famosa assertiva maquiaveliana de que é “melhor ser temido a amado”, deve sempre ser relativizada, pois o príncipe frívolo, tímido, volúvel, acovardado, irresoluto, em síntese, sem “virtu”, fracassa por mais legítimo que tenha sido o seu caminho.

 

E aqui chegamos a outro ensinamento importante: chegar ao poder pode ser fácil, mas manter-se no poder nem sempre é. Exatamente por este motivo que Trotsky fez a diferenciação entre tática e estratégia. Tática é uma ação simples, como ganhar uma eleição, por exemplo. Estratégia é um projeto de longo prazo, consistente, planejado, com vistas ao futuro. Assim, é possível ganhar mesmo na derrota, construindo hegemonia.

 

Se trouxermos a teoria de Maquiavel para os tempos atuais, vamos observar uma escassez, quase inexistência de políticos virtuosos. Aliás, os que ainda demonstram estas características vem de um outro tempo, e formaram-se com base em uma luta histórica. E mesmo quando grandes, sempre fizeram a sua construção política dentro de um ambiente coletivo. Podemos citar os exemplos mais próximos de Mandela, Lula, Fidel, dentre outros. Por outro lado, temos aqueles que se julgaram acima do coletivo e se mantiveram no poder apenas com o uso de violência desacerbada, como Stalin, Idi Amin, Charles Taylor, dentre outros. Todos estes, mais cedo ou mais tarde, fracassaram, e entraram para a história pela porta dos fundos.

 

Diga-se de passagem, se fizermos uma leitura rápida e observarmos a chegada de quadros de segundo nível ao poder, como Trump, Temer e Sartori, notamos um crescimento da mediocridade política, o que é profundamente temerário se pensarmos com foco no futuro.

 

Trump, por exemplo, é um grande pacote de marketing montado em um discurso simplório e preconceituoso, que ainda contou com a fragilidade e falta de carisma da adversária eleitoral, igualmente conservadora. No confronto entre iguais, venceu o mais bizarro e mais facilmente administrável pela mídia.

 

Temer, por seu turno, para citar o exemplo brasileiro, chegou ao poder por meio de uma conspiração golpista. Trata-se de um político especializado em manobras de bastidores, sem nenhum apelo social ou carisma, que sempre ocupou o espaço típico da mediocridade. Aliás, é o exemplo mais evidente de que a única forma dos conspiradores tentarem manter o poder é a destruição de tudo que foi construído por seus antecessores, além da aplicação indiscriminada da violência.

 

Outra marca evidente de Temer, como um político fraco, é o apego aos aduladores e o uso do exército mercenário da mídia e de parlamentares, igualmente ocupantes do segundo nível da política.

 

O apego aos aduladores é outro exemplo negativo de ação política, pois estes jamais conseguem projetar algo novo. A sua vantagem, para políticos sem “virtu”, é o fato destes manterem-se sempre um nível abaixo, sem nenhuma perspectiva de evolução.  Chamo isto de “política dos espelhos”, porque nestes casos os dirigentes se apegam à reprodução estanque da sua própria imagem, da sua visão de mundo, à ausência de crítica, por mais construtiva que esta seja. Os espelhos reproduzem facilmente a imagem que queremos ver, mesmo que distorcida, mas são apenas isto, espelhos. Não possuem potencial de crescimento, mas também não constroem e não transformam o mundo de forma positiva.

 

Talvez, por isto, a nossa sociedade encontre-se tão carente de alternativas…

 

- Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, analista político, mestre em ciências sociais.

 

https://sustentabilidadeedemocracia.wordpress.com/2017/01/07/a-era-dos-mediocres/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/182709?language=en
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