Fidel Castro e os monstros de Benjamin
- Opinión
A morte de Fidel Castro, aos 90 anos, depois de ter atravessado toda a segunda metade do século passado – a partir de um pequeno país – como um dos líderes políticos mais importantes do mundo, certamente vai abrir um novo ciclo de reflexões da esquerda latino-americana, a respeito do nosso passado recente e das lutas travadas contra os regimes de força, que acompanham a nossa história, desde a época colonial clássica. Fidel tem o mesmo estatuto político de Mandela, De Gaulle, Isaac Rabin e Arafat. Foi um dos escultores do Século XX, no pós guerra e a sua sombra se projetou sobre o continente, para uns como um símbolo de libertação e igualdade e para outros como ameaça e insegurança. Como os demais citados, nos seus respectivos espaços de influência, os grandes não são neutros. Dividem e tem lado.
Fidel Castro, herói da Revolução Cubana e figura mítica da luta anti-imperialista, assim como Juan Manuel Santos, o atual presidente da Colômbia podem, porém, serem avaliados em conjunto – ainda que de forma contingente – pelos fatos que protagonizaram, recentemente, nas negociações de paz da Colômbia. Santos não tem o mesmo estatuto de Fidel e ainda tem um duro e longo percurso pela frente. Não é desarrazoado, todavia, dizer que ele – a seguir o caminho até agora traçado – passará para a história como um grande estadista latino-americano, que desafiou todos os dogmas da direita autoritária do seu país e lutou para encerrar a guerra fratricida, que inferniza a Colômbia, há cinco décadas.
Para um juízo mais “histórico” e comparativo entre ambos, todavia, é recomendável seguir a lição de Chou En Lai, quando foi solicitado – no aniversário de 200 anos da Revolução Francesa – a oferecer sua visão acabada sobre a mesma. Recusou-se, afirmando que dois séculos era “pouco tempo”. Não permitia um olhar mais profundo sobre aquele evento crucial para a futura utopia da República e da Democracia. Os juízos históricos – narrativas de longo curso com doses de previsibilidade excessiva – estão se mostrando cada vez mais frágeis. Benjamin disse algo como: entre o anoitecer e o outro dia que não raiou, procriam os monstros.
Levanto a hipótese que, quando Chou arquitetou aquela resposta, lhe veio à mente a comparação, de um lado, entre as barbáries do Terror, na Revolução Francesa – com as turbas celebrando cada descida da lâmina da guilhotina (a mesma que vitimou Danton e Robespierre) – e, de outro, a violência sectária dos jovens da Guarda Vermelha, na Revolução Cultural. Estes quebravam “discos” de Beethoven e, não raramente, jogavam das janelas, os professores que julgavam dotados de idéias “burguesas”. Nenhuma Revolução é um estuário de paz e negociações, mas é necessário incorporar, criticamente, o que elas tem de desumano e cruel, para melhorar o desenho do futuro. Não falo aqui do nazismo e do fascismo, porque estes não tem nem propósitos humanistas nem programas libertários. São a própria barbárie que quer se transformar em política de Estado.
Faço a fantasia que, quando Fidel se empenhou com mais energia na construção da paz definiu algo mais radical no julgamento do seu amigo, general Ochoa, ex-comandante das tropas cubanas em Angola. Neste processo, de duvidosa transparência – mesmo para os moldes da Justiça cubana à época – foi determinado o fuzilamento do Ochoa, por envolvimento com traficantes norte-americanos, dentro de uma complicada teia de contrainformação, que este dirigia. A minha fantasia é que precisamente ali, Fidel pensou que o seu modelo se esgotara e que agora a sua energia deveria ser orientada para fazer uma guerra contra todas as guerras. E que a Colômbia seria uma palco simbólico ideal para esta viragem.
Numa das conversas que tive com Fidel Castro, já alta madrugada nos idos de 2009, tive a ousadia de lhe interromper – dentro de um parênteses de trinta minutos no qual ele relatava as relações de Cuba com os governos de Felipe Gonzalez – para perguntar-lhe sobre a guerra da Colômbia, que, na época, estava, ainda, sob a presidência de Uribe. Mostrando as diferenças cruciais entre esta guerra e a que se travava em Angola (a da Colômbia, “guerra sem futuro” que estava destruindo a nação, e a de Angola, “luta defensiva para afirmação do Estado Nacional”), o Comandante disse, com todas as palavras: na Colômbia, a guerra só teria vencedores se ela terminasse, pois os vencedores estariam abrigados na ideia de construção da nação, através da paz. Segundo ele, esta questão “nacional” deveria preceder, ali, a questão da “luta de classes” (predominantemente camponesa pela reforma agrária), pois se a guerra prosseguisse, a morte e o caos econômico dissolveriam a ideia de nação e mesmo de território, para “todas as classes”.
A História não é uma sequência de lutas de lutas do “bem” contra a o “mal”. Nem a história “pura” dos interesses de classes. Ela é um turbilhão de violências, em nome da superioridade das “culturas”, da religião, das ocupações territoriais. São os estupros de nações fortes contra nações débeis, a rapina de riquezas e embates de ódios nacionais ancestrais, os “mega” fatos por dentro dos quais as classes – quando podem – vão moldando e construindo as suas sujeições e dominações. Os impulsos e as definições do Comandante contra a Guerra, vindo quem sabia guerrear e não teve medo de fazê-lo – dentro deste mundo que se constrói e se destrói a partir da violência – são o grande legado de uma longa e contraditória vida, devotada a lutar contra o império e contra os monstros de Benjamin . Como é a vida de todos os grandes: sejam eles, santos ou hereges. Como Fidel.
- Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
4/dez/2016
http://www.sul21.com.br/jornal/fidel-castro-e-os-monstros-de-benjamin/
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