Mea-culpa
- Opinión
Entre o fígado e a alma me assoberba a percepção do desastre brasileiro na sua espantosa dimensão. Contribuem para tanto prepotência, arrogância, hipocrisia, características notórias dos senhores da casa-grande e dos seus apaniguados, sequiosos por devolver o País à condição de colônia dos Estados Unidos. Sobreleva, porém, algo mais, mais forte, mais imperioso, mais determinante.
Já escrevi a respeito da naturalidade da demência ao registrar, ingenuamente, e por isso me penitencio, a insensatez de um golpe que trai os interesses do Brasil. Agora, em meio ao tormento, pergunto aos meus botões se estes interesses são os mesmos da casa-grande, cujos inquilinos certamente se declaram patriotas.
Encaram-me os botões com um misto de incredulidade e de comiseração. Estão certos, entendo ao cabo de um silêncio constrangedor: os interesses brasileiros são opostos àqueles dos golpistas. Raymundo Faoro costumava me lembrar da competência da direita reacionária diante de uma esquerda ainda em busca de um papel.
Sem contar a sempre eficaz aposta dos senhores na ignorância e na puerilidade do povo nativo, inclinado à festa e à resignação. A casa-grande precisa da senzala como garantia da sua própria tranquilidade, senhora da situação sem os mais tênues percalços.
Que pretende o golpe ainda em andamento? De saída, detonar toda forma de resistência, a começar pelo PT e seu líder, Lula. Mas os sindicalistas que exercem dignamente sua função indispensável que se cuidem, dias de perseguição virão.
Tudo o mais já se faz para manter de pé a senzala e cair nos braços de Tio Sam, a imitar Fernando Henrique Cardoso ao se precipitar no afago de Bill Clinton. A pauta fala claro, desde a PEC até o já iniciado afastamento dos BRICS, que logo mais serão apenas os RICS.
Um regime de exceção está em pleno vigor, e quem não o percebe não enxerga a si mesmo, até quando se mira no espelho. O fato de sermos vítimas de uma quadrilha de criminosos de denominação de origem controlada e garantida não é consolo. Esclareço: uso a expressão que enobrece algumas garrafas, pois os metralhas de uns poucos anos para cá passaram a tomar vinho, embora prefiram guaraná.
De resto, somos vítimas de figuras mais graúdas, ministros coniventes do Supremo e pequenos magistrados fanáticos do Apocalipse treinados nos Estados Unidos, a contarem com a pronta intervenção de uma polícia capaz de substituir os tanques de 1964 na capacidade de intimidação.
Não esqueçamos o empresariado rentista, tecnicamente bisonho, salvo raríssimas exceções, que insistem em produzir bens e serviços em lugar de dinheiro em espécie. E dulcis in fundo, a mídia nativa. Ela é mentirosa e velhaca, humilha a língua portuguesa e mergulha na vulgaridade, apoia-se, contudo, em quantos a consideram “grande” e lhe repetem invenções, inverdades, mentiras. Somos todos vítimas, poucos, entretanto, têm condições de entender.
Escrevi também, mais de uma vez, sobre a maior gravidade deste golpe em relação ao de 52 anos atrás, e a respeito citei várias razões. Outra me escapou. Há toda uma história de golpe, desde aquele que derrubou o imperador, mas este que nos vitima é o mais autêntico, exposto, clamorosamente direto: a casa-grande o assume sem disfarces, ou seja, sem se esconder atrás de um aparato bélico.
Vivemos uma ditadura, feroz e, receio, duradoura, a despeito das incertezas que cercam o presidente da República, Michel Temer, mesmo porque ele não é o ditador. Sobre sua cabeça, a espada de Dâmocles (perdoem o lugar-comum) do poder verdadeiro, difuso e compacto, contemporaneamente, e invencível. Um fato chama minha atenção, a vitória-passeio de João Doria em São Paulo.
Sei que o estado e sua capital são a porção mais reacionária do Brazil-zil-zil. Nem por isso, deixo de me surpreender se a senzala vota neste cidadão tão lustroso e engomado, sonhador de um país onde todo cidadão poderia comprar uma camiseta polo Ralph Lauren.
Este editorial é um mea-culpa. A casa-grande não é demente, sabe o que faz, e quer um Brasil medieval, entregue a um desequilíbrio social monstruoso, onde a maioria, alcançada pelas piores pregações, não sai do limbo.
P.S.: Deliciosa entrevista da esposa de Doria, Bia, publicada pelo Estadão e pelo Folhão. Digna de Maria Antonieta, rainha da França e mulher de Luís XVI, como observa uma arguta leitora de CartaCapital. Só faltou falar em brioches para substituir o pão. Bia se diz artista plástica por copiar Krajcberg, o qual, irritado com a desfaçatez, nunca mais pisou terra paulistana.
17/10/2016
http://www.cartacapital.com.br/revista/923/mea-culpa
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